domingo, 18 de dezembro de 2022

Marcos - Jesus é João Baptista

 


O evangelho segundo Marcos é um texto escrito na perspectiva de um narrador omnisciente. O narrador omnisciente é o narrador em terceira pessoa que sabe tudo sobre a história que conta, inclusive sobre o mundo interior das personagens, revelando seus pensamentos e emoções mais profundas.

Normalmente, as obras de ficção têm um narrrador omnisciente.


Quem sabe que Jesus é Filho de Dues?

O evangelho começa assim:

Marcos 1:1 Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus;


O narrador declara logo no início que Jesus é Filho de Deus. O narrador "sabe" que Jesus é Filho de Deus. Quem mais "sabe" isto? 

O Espírito Santo e o próprio Jesus sabem, pelo menos desde o momento do baptismo.

Marcos 1:9-11 E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Galiléia, foi batizado por João, no Jordão. E, logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo.


Parece que também um "espírito imundo" que estava num homem endemoninhado, também "sabia" que Jesus pertencia ao mundo sobrenatural.

Marcos 1:23-26 E estava na sinagoga deles um homem com um espírito imundo, o qual exclamou, dizendo: Ah! que temos contigo, Jesus Nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus. E repreendeu-o Jesus, dizendo: Cala-te, e sai dele. Então o espírito imundo, convulsionando-o, e clamando com grande voz, saiu dele.


Mas, ao longo da narrativa, mais ninguém percebe que Jesus é Filho de Deus. Excepto no desfecho do evangelho, após a morte de Jesus:

Marcos 15:39 E o centurião, que estava defronte dele, vendo que assim clamando expirara, disse: Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus.


No fim de contas, entre os humanos, apenas um romano percebeu que Jesus era o Filho de Deus. Nem os apóstolos, que acompanharam Jesus em quase todos os eventos narrados, perceberam. 


João Baptista como principal ancoragem histórica

Logo a seguir à breve apresentação de Jesus, o narrador prossegue com a apresentação de João Baptista. O publico alvo de João Baptista era a Judeia, cuja capital era Jerusalém, e não a Galileia.

Marcos 1:4-8 Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados. E toda a província da Judéia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.


No entanto, o narrador "promove um encontro" entre Jesus da Galileia e João Baptista.

Marcos 1:9 E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Galiléia, foi batizado por João, no Jordão.


A seguir ao seu baptismo, Jesus foi, supostamente sozinho, para o deserto, mas o narrador sabe o que Jesus fez lá:

Marcos 1:12-14 E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ali esteve no deserto quarenta dias, tentado por Satanás. E vivia entre as feras, e os anjos o serviam. E, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de Deus,


Curiosamente, parece que Jesus esperou que João Baptista fosse preso para o substituir. Mais uma curiosidade aqui é que João baptista foi preso e Jesus também.


Herodes (Antipas, filho de Herodes o Grande) pensa que Jesus é João Baptista ressuscitado:

Marcos 6:14-16 E ouviu isto o rei Herodes (porque o nome de Jesus se tornara notório), e disse: João, o que batizava, ressuscitou dentre os mortos, e por isso estas maravilhas operam nele. Outros diziam: É Elias. E diziam outros: É um profeta, ou como um dos profetas. Herodes, porém, ouvindo isto, disse: Este é João, que mandei degolar; ressuscitou dentre os mortos.


As multidões, depois de Jesus lhes ter aparecido muitas vezes, pensam que Jesus é João Baptista:

Marcos 8:27-29 E saiu Jesus, e os seus discípulos, para as aldeias de Cesaréia de Filipe; e no caminho perguntou aos seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens que eu sou?

E eles responderam: João o Batista; e outros: Elias; mas outros: Um dos profetas.

E ele lhes disse: Mas vós, quem dizeis que eu sou? E, respondendo Pedro, lhe disse: Tu és o Cristo.


Apesar de ter prendido e executado João Baptista, Herodes admirava-o:

Marcos 6:20 Porque Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo; e guardava-o com segurança, e fazia muitas coisas, atendendo-o, e de boa mente o ouvia.


E, por seu turno, Pilatos admirava Jesus:

Marcos 15:5 Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira que Pilatos se maravilhava.


Herodes relutantemente ordenou a execução de João Baptista:

Marcos 6:25,26 E, entrando logo, apressadamente, pediu ao rei, dizendo: Quero que imediatamente me dês num prato a cabeça de João o Batista.

E o rei entristeceu-se muito; todavia, por causa do juramento e dos que estavam com ele à mesa, não lha quis negar.


Pilatos, também relutantemente, ordenou a morte de Jesus:

Marcos 15:15 Então Pilatos, querendo satisfazer a multidão, soltou-lhe Barrabás e, açoitado Jesus, o entregou para ser crucificado.


Depois de morrer, João Baptista foi depositado num túmulo:

Marcos 6:28-29 E trouxe a cabeça num prato, e deu-a à menina, e a menina a deu a sua mãe. E os seus discípulos, tendo ouvido isto, foram, tomaram o seu corpo, e o puseram num sepulcro.


Jesus também foi depositado num túmulo:
Marcos 15:43-46 Chegou José de Arimatéia, ... comprou um lençol... e, tirando-o da cruz, o envolveu nele, e o depositou num sepulcro...

Conclusão

Jesus tem uma história própria? Não! É a história de João Baptista revisitada.


O Vídeo




domingo, 30 de outubro de 2022

Judas da Galileia




Judas da Galileia


Em 6 EC, Judas da Galileia (ou de Gamala, nos montes Golã) liderou uma revolta quando a Judeia e Samaria passaram a ser governadas directamente por Roma; o novo governador Coponius, sob o procurador Quirinius, impôs novas taxas gerando a revolta; Josefo associa este nome à filosofia ultra-nacionalista dos zelotas.

Judas teve dois filhos, Tiago e Simão, que foram crucificados no tempo do governador Tibério Alexandre (46 a 48 EC).

Durante a Revolta dos Judeus (66 a 70 EC), Menachem e Eleazar, descendentes de Judas, foram protagonistas de episódios de rebelião.

Orígenes, no século III, disse que Judas da Galileia foi venerado como Cristo pelos seus contemporâneos.


Fontes

Flávio Josefo

A principal fonte é Flávio Josefo.

Em "Guerra dos Judeus", o autor Flávio Josefo dá-nos uma introdução sobre quem foi Judas da Galileia, que no contexto do censo de Quirinius de 6 EC originou uma revolta contra a taxação romana.

Flávio Josefo, 75 EC, Guerra dos Judeus, II.8.1

E agora a porção de Arquelau da Judéia foi reduzida a uma província, e Coponius, um da ordem equestre entre os romanos, foi enviado como procurador, tendo o poder de aplicar pena de morte colocado em suas mãos por César. Foi sob sua administração que um certo galileu, cujo nome era Judas, convenceu seus compatriotas a se revoltarem e disse que eles eram covardes se suportassem pagar um imposto aos romanos e, segundo Deus, se submetessem a homens mortais como seus senhores. Este homem era um professor de uma seita peculiar e não era nada parecido com o resto de seus líderes.


E ao escrever sobre outra figura messiânica chamada Menachem, que era filho (ou neto) de Judas, o galileu. Este Menachem é referido já no contexto da Guerra dos Judeus que iniciou em 66 EC.

Flávio Josefo, 75 EC, Guerra dos Judeus II.17.8

Entretanto, um certo Menachem, filho de Judas, chamado galileu, (que era um sofista muito astuto, e anteriormente havia repreendido os judeus sob Quirinius, que depois de Deus eles estavam sujeitos aos romanos), tomou alguns dos homens notáveis com ele, e retirou-se para Masada, onde ele quebrou o arsenal do rei Herodes, e deu armas não apenas ao seu próprio povo, mas também a outros ladrões. Estes ele usou como guarda e voltou no estado de um rei para Jerusalém; ele se tornou o líder da sedição e deu ordens para continuar o cerco;


Josefo, quando fala de Eleazar, outro descendente de Judas da Galileia, volta a descrever Judas no seu papel na resistência aos impostos romanos.

Flávio Josefo, 75 EC, Guerra dos Judeus VII.8.1

Foi um Eleazar, um homem poderoso, e o comandante desses Sicarii, que o agarrou. Ele era descendente daquele Judas que persuadiu grande parte dos judeus, como relatamos anteriormente, a não se submeter à tributação quando Quirinius foi enviado à Judéia para fazer um censo; pois foi então que os sicários se uniram contra aqueles que estavam dispostos a se submeter aos romanos e os trataram em todos os aspectos como se fossem seus inimigos, tanto saqueando-os do que tinham, expulsando seu gado e ateando fogo em suas casas; pois eles disseram que não diferiam em nada dos estrangeiros, traindo, de maneira tão covarde, aquela liberdade que os judeus consideravam digna de ser disputada ao máximo, e admitindo que preferiam a escravidão sob os romanos antes de tal contenção.


Em "Antiguidades Judaicas", Josefo volta aos mesmos temas sobre os quais já tinha escrito vinte anos antes, nomeadamente sobre o censo de Quirinius.

Flávio Josefo, 75 EC, Antiquidades Judaicas XVIII.1.1

Agora Quirinius, um senador romano e alguém que passou por outras magistraturas, e passou por elas até se tornar cônsul, e alguém que, em outras contas, era de grande dignidade, veio neste momento para a Síria, com alguns outros, sendo enviados por César para ser juiz daquela nação, e para tomar conta de seus bens. Copônio também, um homem da ordem equestre, foi enviado junto com ele, para ter o poder supremo sobre os judeus. Além disso, Quirinius veio pessoalmente à Judéia, que agora era adicionada à província da Síria, para fazer um censo sobre o território e dispor do dinheiro de Arquelau; mas os judeus, embora no início tenham entendido o censo de uma tributação de maneira hedionda, ainda assim não fizeram qualquer oposição a ela, pela persuasão de Joazar, que era filho de Beethus e sumo sacerdote; assim eles, persuadidos pelas palavras de Joazar, prestaram contas de suas propriedades, sem qualquer disputa sobre isso. No entanto, havia um Judas, um gaulonita, de uma cidade cujo nome era Gamala, que, levando consigo Sadduc, um fariseu, tornou-se zeloso em atraí-los para uma revolta, que ambos disseram que esse imposto não era melhor do que uma introdução à escravidão e exortou a nação a afirmar sua liberdade; como se pudessem lhes proporcionar felicidade e segurança pelo que possuíam, e um gozo garantido de um bem ainda maior, que era a honra e a glória que assim adquiririam por magnanimidade. Eles também disseram que Deus não os ajudaria de outra forma, senão ao se unirem uns aos outros em conselhos que pudessem ser bem-sucedidos e para sua própria vantagem; e isso especialmente, se eles fizessem grandes façanhas e não se cansassem de executá-las; então os homens receberam o que disseram com prazer, e essa tentativa ousada atingiu uma grande altura. Todos os tipos de infortúnios também surgiram desses homens, e a nação foi infectada com essa doutrina em um grau incrível; uma guerra violenta veio sobre nós após a outra, e perdemos nossos amigos que costumavam aliviar nossas dores; houve também grandes roubos e assassinatos de nossos principais homens. Isso foi feito com pretensão de fato para o bem-estar público, mas na realidade para a esperança de ganho para si mesmos; de onde surgiram sedições e deles assassinatos de homens, que às vezes recaíam sobre os de seu próprio povo (pela loucura desses homens uns para com os outros, enquanto seu desejo era que nenhum dos adversários pudesse ser deixado) e às vezes sobre seus inimigos; uma fome também vindo sobre nós, nos reduziu ao último grau de desespero, assim como a tomada e demolição de cidades; não, a sedição finalmente aumentou tanto que o próprio templo de Deus foi queimado pelo fogo de seus inimigos. Tais foram as conseqüências disso, que os costumes de nossos pais foram alterados, e tal mudança foi feita, como um peso poderoso para trazer tudo à destruição, que esses homens ocasionaram por sua conspiração conjunta; pois Judas e Sadduc, que excitaram uma quarta seita filosófica entre nós, e tiveram muitos seguidores nela, encheram nosso governo civil de tumultos no presente e lançaram as bases de nossas futuras misérias, por este sistema de filosofia, que éramos antes. desconhecidos, sobre os quais falarei um pouco, e isso porque a infecção que se espalhou dali entre os mais jovens, que eram zelosos por ela, levou o público à destruição.


No mesmo capítulo, Josefo explica que Judas da Galileia foi o autor da filosofia ultranacionalista dos zelotas.

Flávio Josefo, 95 EC, Antiquidades Judaicas XVIII.1.6

Mas da quarta seita da filosofia judaica, Judas, o Galileu, foi o autor. Esses homens concordam em todas as outras coisas com as noções farisaicas; mas eles têm um apego inviolável à liberdade e dizem que Deus deve ser seu único governante e Senhor. Eles também não valorizam a morte de nenhum tipo de morte, nem de fato prestam atenção à morte de seus parentes e amigos, nem qualquer tal medo pode fazê-los chamar qualquer homem de senhor. E como esta resolução imutável deles é bem conhecida de muitos, não falarei mais sobre esse assunto; nem temo que qualquer coisa que eu tenha dito sobre eles seja desacreditada, mas sim temo que o que eu disse esteja abaixo da resolução que eles mostram quando sofrem dor. E foi na época de Gessius Florus que a nação começou a enlouquecer com essa doença, que era nosso procurador e que ocasionou os judeus a enlouquecer com ele pelo abuso de sua autoridade por parte dele, e fazê-los se revoltar contra os romanos. . E essas são as seitas da filosofia judaica.

Finalmente, Josefo refere dois filhos de Judas da Galileia, Tiago e Simão, que foram crucificados no tempo do governador Tibério Alexandre (46 a 48 EC):

Flávio Josefo, 95 EC, Antiquidades Judaicas XX.5.2

Então veio Tiberius Alexandre como sucessor de Fadus; ele era filho de Alexandre, o alabarca de Alexandria, do qual Alexandre era uma pessoa importante entre todos os seus contemporâneos, tanto por sua família quanto por riqueza: ele também era mais eminente por sua piedade do que seu filho Alexandre, pois ele não continuou na religião de seu país. Sob esses procuradores, aquela grande fome aconteceu na Judéia, na qual a rainha Helena comprou milho no Egito a um grande custo e o distribuiu aos que estavam em necessidade, como já relatei. E além disso, os filhos de Judas da Galiléia foram agora mortos; Refiro-me àquele Judas que causou a revolta do povo, quando Quirinius veio fazer um relatório (censo) das propriedades dos judeus, como mostramos num livro anterior. Os nomes desses filhos eram Tiago e Simão, a quem Alexandre ordenou que fossem crucificados. Mas agora Herodes, rei de Cálcis, removeu José, filho de Camydus, do sumo sacerdócio, e fez de Ananias, filho de Nebedeu, seu sucessor. E foi então que Cumanus veio como sucessor de Tiberius Alexander; como também que Herodes, irmão de Agripa, o grande rei, partiu desta vida, no oitavo ano do reinado de Cláudio César. Ele deixou para trás três sons; Aristóbulo, a quem teve por sua primeira esposa, com Bernicianus, e Hyrcanus, ambos a quem teve por Berenice, filha dele de seu irmão. Mas Cláudio César concedeu seus domínios a Agripa, júnior.


Actos dos Apóstolos

É provável que o autor de Actos dos Apóstolos tenha usado a literatura de Josefo como fonte.
Em Actos relata-se que, pouco tempo depois da crucificação de Jesus, os apóstolos começaram a ser perseguidos e detidos pelas suas actividades proselitistas.

Quando estava reunido o Sinédrio para decidirem o que fazer dos apóstolos detidos no Templo, o famoso sábio Rabi Gamaliel fez um discurso para apelar à cautela do Tribunal:
Actos 5:34-38 ... acautelai-vos a respeito do que estai para fazer a estes homens. Porque, há algum tempo, levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; ao qual se ajuntaram uns quatrocentos homens; mas ele foi morto, e todos quantos lhe obedeciam foram dispersos e reduzidos a nada. Depois dele levantou-se Judas, o galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos após si; mas também este pereceu, e todos quantos lhe obedeciam foram dispersos.

Uma questão a considerar aqui é o anacronismo das declarações de Gamaliel, porque coloca Judas Galileu depois de Teudas. No entanto a cronologia geralmente aceite, segundo as crónicas de Flávio Josefo, é a seguinte:
-          Judas Galileu liderou uma revolta contra os romanos, no tempo do censo de Quirinius (6 EC);

-          Teudas liderou um conjunto de rebeldes durante a perfeitura de Cuspius Fadus (44 - 46 EC).


Judas da Galileia era o Cristo

Origenes

Orígenes, um patriarca da Igreja do século III EC, em suas "Homilias sobre o evangelho de Lucas" (entre 233-244 EC), escreveu:


Origenes, Homilias sobre Lucas, 25, 4

Por tudo isso, evidentemente, eles o amavam [a João Baptista] com muito bons motivos. Mas em sua caridade, não guardavam uma justa medida: cogitavam, com efeito, “se por acaso ele não era o Cristo”.

Precavendo-se contra esse amor desordenado e não espiritual, o apóstolo Paulo dizia a respeito de si mesmo: “Temo, porém, que alguém faça de mim uma ideia superior ao que se vê ou se ouve de mim; e que a grandeza das revelações não me encha de orgulho”, e o que se segue. Temendo incorrer também ele próprio nesse defeito, Paulo não queria revelar de si mesmo tudo o que sabia, para que alguém não tivesse dele um julgamento superior ao que pudesse observar e que, excedendo a medida da honra, dissesse o que fora dito sobre João: “Que ele fosse o Cristo”.

É o que, evidentemente, vários disseram também de Dositeu, fundador da seita herética dos samaritanos; mas outros também o disseram de Judas, o galileu. Finalmente, alguns prorromperam, em tamanho excesso no amor que imaginaram a respeito de Paulo, extravagâncias inauditas e sem precedentes.


Orígenes refere que João Baptista e Judas da Galileia eram considerados como Cristos e que Paulo teve receio de também ser considerado como Cristo.



domingo, 8 de maio de 2022

Aparições de Jesus: Galileia ou Jerusalém?




No tempo em que os evangelhos começaram a ser escritos (depois de 70 EC) é provável que os judeus da diáspora - aqueles que viviam muito longe da Palestina - olhassem para a Galileia como um local de pessoas livres, por a Galileia ter sido o berço de algumas revoltas inspiradoras (por exemplo, a revolta de Judas Galileu).

Por outro lado, Jerusalém não seria vista com os mesmos bons olhos. Jerusalém situava-se na Judeia, um território ocupado e governado diretamente pelos romanos desde 6 EC. O Templo seria talvez a única instituição que alegava preservar a identidade dos judeus, mas era visto como um foco de corrupção e de ganância.

A Galileia demorou mais tempo até ser governada diretamente por Roma. Herodes Antipas governou a Galileia de 4 AEC até 39 EC, sendo sucedido por Agripa I e Agripa II. Apesar de estes governadores herodianos serem obedientes a Roma, os habitantes da Galileia teriam talvez o sentimento de ter a sua identidade de alguma forma preservada.

Em 66 EC uma guerra de independência deflagra na Judeia e na Galileia. A disputa pelo Templo de Jerusalém (a maior fonte de riqueza da Judeia) levou a que a guerra de independência passasse a guerra civil, um fraticídio de judeus contra judeus. Muitos morreram nos combates entre os vários grupos rivais judaicos.

É provável, então, que Jerusalém fosse olhada com horror até pelos próprios judeus. Por outro lado, a Galileia seria olhada como um local onde as pessoas nãa tinham sido tocadas pela cobiça gerada pelos negócios do Templo.

Daí os evangelhos retratam Jesus recrutando apóstolos na Galileia. Jerusalém com o seu Templo era uma fonte de vergonha para os judeus no tempo em que os evangelhos começam a ser escritos - imediatamente a seguir à guerra que levou à destruição de Jerusalém.


O pós-ressurreição nos Evangelhos

Em todo o evangelho de Marcos, Jesus só passa uns dias em Jerusalém - os seus últimos dias. As mulheres que foram visitar o seu túmulo, são abordadas por um jovem que lhes diz que Jesus se dirigiu de volta à Galileia.

Marcos 16:7 Mas ide, dizei a seus discípulos, e a Pedro, que ele vai adiante de vós para a Galiléia; ali o vereis, como ele vos disse.


Em Mateus, encontramos narrativa semelhante, mas desta vez é o próprio Jesus que fala às mulheres.

Mateus 28:10 Então Jesus disse-lhes: Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão à Galiléia, e lá me verão.

E os discípulos regressam à Galileia para ver Jesus novamente.

Mateus 28:16,17 E os onze discípulos partiram para a Galiléia, para o monte que Jesus lhes tinha designado. E, quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram.


O autor de Lucas já não teria assim tanto horror a Jerusalém, pois teria escrito numa data em que as atrocidades cometidas em Jerusalém já teriam passado ao esquecimento. Depois de ressuscitar, Jesus encontra-se com dois discípulos que caminhavam de Jerusalém para Emaus. Depois deste encontro, estes discípulos retornam a Jerusalém e juntam-se aos onze apóstolos que lá permaneciam.

Lucas 24:33-34 E na mesma hora, levantando-se, tornaram para Jerusalém, e acharam congregados os onze, e os que estavam com eles, os quais diziam: "Ressuscitou verdadeiramente o Senhor, e já apareceu a Simão."


Pouco mais tarde, Jesus junta-se também aos onze apóstolos e diz para todos permanecerem em Jerusalém.

Lucas 24:49 E eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder.


Em João 20 Jesus aparece aos discípulos em Jerusalém. Primeiro revela-se a Maria Madalena, junto ao próprio sepulcro, e depois aos onze apóstolos que se encontravam fechados numa casa.

Em João 21, um claro acrescento ao evangelho de João, Jesus participa com os apóstolos numa pescaria na Galileia.

É curioso que Pedro estava nu e vestiu-se para, logo de seguida, lançar-se ao mar.

João 21:7 Então aquele discípulo, a quem Jesus amava, disse a Pedro: É o Senhor. E, quando Simão Pedro ouviu que era o Senhor, cingiu-se com a túnica (porque estava nu) e lançou-se ao mar.



domingo, 17 de abril de 2022

Pedro - Analfabeto?

 


Seria Pedro iletrado, analfabeto?

Se avaliarmos pelos evangelhos, Pedro era um pescador na Galileia. Assim, a probabilidade de Pedro ter aprendido a ler e escrever seria muito baixa.

E se avaliarmos pelo livro Atos dos Apóstolos, existe a confirmação de que Pedro era iletrado.

Atos 4:13 Então eles, vendo a ousadia de Pedro e João, e informados de que eram homens sem letras e indoutos, maravilharam-se e reconheceram que eles haviam estado com Jesus.


Mas se Pedro fosse iletrado, Paulo teria aproveitado isso para atacar Pedro no sentido que ele não teria a capacidade de entender as "escrituras" (a Bíblia Hebraica) tal como ele próprio, Paulo, tenta demonstrar que tem ao longo das suas cartas.

Paulo é claramente letrado. Nas suas cartas mostra muita facilidade em tecer uma complexa teologia com base nas escrituras judaicas. Por outro lado, Paulo, é um grande crítico de Pedro. Mas Paulo nunca aponta a Pedro uma falta de conhecimento das escrituras. Paulo acusa Pedro de ser hipócrita e nunca o acusa de ser analfabeto.

Gálatas 2:11 Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe na cara, porque era repreensível. 

Gálatas 2:14 Mas, quando vi que não andavam retamente conforme a verdade do evangelho, disse a Cefas perante todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, como é que obrigas os gentios a viverem como judeus? 


Então quem escreveu as cartas 1ª e 2ª Pedro?


Primeira Carta de Pedro

Bom, quem escreveu a Primeira Carta de Pedro poderá ter sido alguém com alguma ligação a esta personagem. E, se Pedro fosse conhecido como analfabeto, ninguém iria atribuir a autoria da carta a este.

Por outro lado, esta carta é endereçada a destinatários da Asia Menor (Anatólia), um público inesperado para alguém com origem na Galileia. Seria um público expectável para alguém sob a esfera de influência de Paulo.


Segunda Carta de Pedro

Quanto à Segunda Carta de Pedro, é evidente que foi um autor completamente distinto daquele que escreveu a primeira. Esta suspeita não é nova. Desde o século III que existe ceticismo em relação a esta autoria.


Ler também:

 - Outras Cartas Pseudo - Pedro, Tiago e Judas



domingo, 27 de março de 2022

Ha-Mashiach - O Cristo Escatológico?




Mashiach, Ungido, Cristo

Ao contrário do que muitas pessoas poderão pensar, "Cristo" não é o sobrenome de Jesus Nazareno. 

Mas o que significa a palavra grega "christos" (Χρήστος) ou a palavra "mashiach" (מָשִׁיחַ) no hebraico?

No Antigo Testamento, a palavra "mashiach" refere-se ao que era abençoado pela aplicação de óleo sagrado. Significa apenas "ungido" ou "consagrado". Não significa super poderoso, semideus, rei escatológico (dos "últimos dias") ou descendente de David. É apenas "ungido".

Esta palavra, "ungido" é até usada muitas vezes em muitos contextos no Antigo Testamento. 

Por exemplo:
1 Crónicas 16:22 Não toqueis em quem me é consagrado ["mashiach"], nem façais mal a meus profetas!
Aqui o texto obviamente não se refere a nenhum super rei poderoso nem a um cenário de "ultimos dias".

Vejamos outro texto:
Salmos 28:8 O Eterno é a força do seu povo, a fortaleza que salva o seu ungido ["mashiah"]...
Aqui, existe um "messias" que não vem salvar ninguém, mas alguém que necessita de salvação. 

Os objetos Cristo

Vamos ver também em Êxodo 40.
Êxodo 40:9 Tomarás do óleo da unção e ungirás a Habitação e tudo o que está dentro dela; tu a consagrarás com todos os seus acessórios, e ela será muito santa.
Êxodo 40:10 Ungirás o altar dos holocaustos com os seus acessórios, consagrarás o altar, e o altar será eminentemente santo.
Até os objetos podem ser ungidos. Aqui os sacerdotes fazem a consagração dos objetos do Tabernáculo. Sim, os objetos podem ser messias ou cristos.

Os reis Cristos

1 Samuel 10:1 narra a unção de Saúl, descrito como o primeiro monarca dos hebreus. A mesma tradição se repete em 1 Samuel 16:13 mas agora com David sendo ungido, consagrado como messias.

Reis supostamente escolhidos por Deus fazem o padrão de uma teocracia em que os sacerdotes têm de se mostrar favoráveis aos reis. Saúl e David são ungidos, são messias, são cristos. O autor de Samuel quer retroprojetar para o século X AEC (o suposto tempo de Saúl e David) que a aprovação dos reis era feita por sacerdotes seguindo ordens de Deus.

Avançando no tempo, passando para o século VI AEC, no regresso do exílio na Babilónia, Zacarias fala de Zorobabel, um alegado descendente de Davi, e do sumo-sacerdote Josué.
Zacarias 4:13,14 E ele me disse: "Não sabes o que significam essas coisas?" E eu disse: "Não meu Senhor" Ele disse: "Esses são os dois ungidos que estão de pé diante do Senhor de toda a Terra";
O texto refere Zorobabel e Josué que lideraram o povo no regresso do exílio babilônico de volta à terra prometida. Um descendente do Rei Davi e um sacerdote, governando Judá, são dois ungidos, dois messias.

Ainda no mesmo contexto da saída da Babilónia, Ciro da Pérsia é referido em Isaías como Cristo. Recordemos que Ciro derrotou os babilónios.
Isaías 45:1 Assim diz o Senhor (Yahveh) ao seu ungido (heb. לִמְשִׁיחוֹ֮, gr. χριστῷ), a Ciro, a quem tomo pela sua mão direita, para abater as nações diante de sua face; eu soltarei os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão.
Na Septuaginta, a versão grega do Antigo Testamento, a palavra usada em Isaías 45:1 é "cristo" ("χριστῷ").

Curiosamente, para complementar a questão do Ciro Cristo, temos Diodorus Siculus que afirma que Ciro foi crucificado:

Diodorus Siculus, 30 AEC, Biblioteca Histórica II.44.2
Por exemplo, quando Ciro, o rei dos persas, o governante mais poderoso de sua época, fez uma campanha com um vasto exército na Cítia, a rainha dos citas não apenas cortou o exército dos persas em pedaços, mas também fez Ciro prisioneiro e crucificou-o;

O Cristo, ha-Mashiach

Então "messias" quer dizer "ungido". Mas existe ha-Mashiach, que é "O Messias" esperado escatológico (dos último dias)? 

Não, na Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) não existe. Os textos que alegadamente profetizam o Messias escatológico, por exemplo, Isaías 11, Ezequiel 37, Miqueias 5, Jeremias, etc, todos referem para o retorno após o exílio na Babilónia. Estes versículos são aplicados a Zorobabel, quando falam de um descendente de Davi que iria governar o povo no retorno da Babilônia.

Mas, ao menos, existe a palavra ha-Mashiach (הַמָּשִׁ֛יחַ) na Bíblia Hebraica? Existe, mas não se refere a um descendente de David. Refere-se apenas ao sacerdote. Israel era uma nação sacerdotal. O foco da Bíblia Hebraica são os sacerdotes. Os reis são quase sempre descritos como patéticos.
Levítico 4:3-5 Se for o sacerdote ungido (ha-Mashiach) que pecar, trazendo culpa sobre o povo, trará ao Senhor um novilho sem defeito como oferta pelo pecado que cometeu. Apresentará ao Senhor o novilho à entrada da Tenda do Encontro. Porá a mão sobre a cabeça do novilho, que será morto perante o Senhor. Então o sacerdote ungido (ha-Mashiach) pegará um pouco do sangue do novilho e o levará à Tenda do Encontro; 
Podemos confirmar nos versículos 3 e 5 que a palavra ha-Mashiach refere-se ao sacerdote ungido.


O Cristo Escatológico

Eventualmente a ideia de ha-Mashiah, como sendo o Messias escatológico, surgiu no século II AEC, por volta do tempo dos Asmoneus/Macabeus. Mas isto já é numa fase em que o judaísmo já se encontrava sob grande influência do helenismo. 

O cristianismo surgiu a partir destes novos pensamentos do judaísmo. Paulo usa essa ideia para ensinar que Deus tem um filho e que esse filho é o Cristo.



domingo, 13 de março de 2022

Jesus - Quantos Jesus?




Existem muitos registos sobre personagens chamadas Jesus que, de uma forma ou de outra, se podem relacionar com o Jesus dos evangelhos. Aqui faremos uma revisão aos artigos que já foram colocados sobre os vários Jesus.


Os Jesus da Terra

Jesus ben Pandera - de Jerusalém e da Galileia

O manuscrito Sepher Toldoth Yeshu (Livro da Genealogia de Jesus, em hebraico) descreve um Yeshu ben Pandera (Jesus filho de Pandera) do tempo dos Asmoneus (até ao século I AEC), em moldes muito semelhantes àqueles usados para descrever Jesus Nazareno. No texto não é referido como Cristo, mas é descrito como Filho de Deus.

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Jesus ben Stada - de Lud (perto de Jerusalém)

O Talmude é um livro sagrado dos judeus, um registro das discussões dos Rabis sobre lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto fundamental para o judaísmo rabínico. No Talmud Sanhedrin, 67a está escrito que Jesus Ben Stada foi pendurado em Lud (Lydda, a pouca distância de Jerusalém), na véspera da Páscoa. A mesma passagem relaciona este personagem com Jesus ben Pandera.

Jesus ben Damneus - de Jerusalém

Tiago, irmão de Jesus ben Damneus, terá sido confundido com Tiago, irmão de Jesus Nazareno?  

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Jesus ben Ananias - de Jerusalém

Josefo menciona, numa passagem, um outro Jesus num episódio ocorrido no ano 62 EC (“quatro anos antes da guerra”). Esta personagem tem muitas semelhanças com o Jesus Nazareno mas, neste tempo, o Jesus dos evangelhos já deveria estar morto por quase 30 anos. Este Jesus não é referido como Filho de Deus nem como Cristo, mas faz parte de episódios muito semelhantes àqueles narrados acerca de Jesus Nazareno.

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Jesus ben Sapphias - da Galileia

Um "Jesus" que terá contribuído para a criação da personagem Jesus Nazareno, poderá muito bem ter sido Jesus filho de Sapphias (ou Saphat), descrito por Josefo em "Vida (Autobiografia)" e "Guerra dos Judeus". Josefo diz que conheceu este homem, por volta do ano 67 EC e refere-o como "lider de um bando de marinheiros (pescadores?) e pobres" da Galileia.

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Jesus da imaginação

Jesus das aparições

Nos evangelhos existe a narrativa de uma "transfiguração" de Jesus. Mas o que é isso de "transfiguração"? Não seria antes uma "aparição"?


Jesus, segundo Paulo, é Filho de Deus e Cristo

Paulo retrata Jesus como um ser celestial, filho de Deus, ao qual é atribuido um corpo forjado a partir da semente de David para que cumpra a profecia de um Messias (Cristo) com origem na realeza judaica.


Jesus, Filho da Mulher Celestial

Em Revelação 12 (Apocalipse) contém aquilo que parece ser a descrição do nascimento celestial de Jesus.



Jesus dos Evangelhos

O Jesus dos evangelhos pode ter resultado do Jesus imaginário combinado com algumas personagens chamadas Jesus. Será que teve uma evolução assim como esta?

  - Deus tem um Filho (ano 20 ou 30 EC) que chama-se Yeoshua (salvação) que revelou-se por aparições

  - o Filho de Deus é Cristo (anos 40 a 60 EC) - Cristo seria sinónimo de Rei Abençoado (ungido)

  - Jesus Nazareno é o Jesus Cristo (Marcos, anos 70 EC)

  - Jesus Nazareno é Jesus da Nazaré (Mateus e Lucas, anos 80 a 100 EC)

  - Jesus da Nazaré é Deus (Evangelho de João - 90 a 110 EC)



terça-feira, 1 de março de 2022

Paulo - Filho de Deus é o Cristo




Deuses sofredores e salvadores

Existiram cultos de deuses salvadores na antiguidade nos quais se pretendia adorar um herói divino com forma humana. Todos estes cultos tinham algum tipo de herói sobrenatural que teve alguma convivência com os humanos na terra. Não temos nenhuma razão para acreditar que qualquer um desses deuses salvadores existiu na forma de uma personagem da História. Mas em todos esses cultos salvadores os fiéis acreditaram que seu Senhor salvador, através de alguma forma de sofrimento ou sacrifício conquistou as forças da morte, assim garantindo uma vida abençoada, após a morte, aos seus seguidores. Para participarem no culto, os seguidores tinham rituais de batismo ou de refeições sagradas, entre outros. Pode-se observar essa tendência com os cultos de, por exemplo, InannaHérculesDionísosZalmoxis, Mitra e Rómulo.

Assim como não temos evidências de que qualquer um desses heróis realmente existiu também não podemos assumir que Jesus é mais histórico do que esses. 

Seria Jesus uma exceção à regra, o único deus salvador sofredor que realmente existiu? Precisamos de evidências de que ele foi uma exceção pois se parece com os outros, sendo uma versão judaica deles, a versão judaica do herói sofredor que conquistou a morte garantindo assim uma vida abençoada após a morte.

Na verdade, não há nenhum atestado claro de que Jesus realmente viveu por parte de qualquer fonte que viveu na época. Os únicos documentos que mencionam Jesus, escritos por alguém vivo na época, nunca o colocam claramente na história real, nomeadamente as cartas de Paulo, Hebreus e 1º Clemente.


Apóstolo Paulo

Como contemporâneo, Paulo estranhamente diz que só conheceu Jesus por visões e pelas escrituras (a Bíblia Hebraica, que Paulo conhecia pela versão grega Septuaginta).

Paulo repetidamente diz que tudo o que sabe sobre Jesus foi lhe dado a conhecer apenas pelas escrituras e revelações: Romanos 10:14-16;16:25-26, Gálatas 1, 1 Coríntios 15 e assim por diante. Paulo diz que recebeu seu conhecimento da ressurreição de Jesus e sobre a eucaristia de Jesus por "revelação diretamente do Senhor". Em outras palavras, Jesus falou diretamente com ele a partir do céu, Paulo não se informou com testemunhas humanas.

Paulo nunca se refere a alguém que tenha sido discípulo de Jesus. A palavra "discípulo" simplesmente não aparece em nenhum escrito de Paulo. E Paulo nunca conheceu Jesus. Paulo, no entanto, refere dois grupos que parece querer distinguir:

- "Apóstolos" - seriam todos os que tiveram uma revelação de Deus ou do Filho de Deus; 

- "Irmãos do Senhor" - seriam todos os crentes no Senhor, ou apenas aqueles que teriam atingido algum lugar de destaque.


Paulo nunca identifica uma mãe ou um pai de Jesus. Refere o seu nascimento apenas alegoricamente ou metaforicamente. Quando diz que Jesus nasceu de uma mulher, é no contexto de um argumento alegórico sobre as sementes alegóricas de Abraão e as suas duas mulheres. Paulo diz que todos nascem de Agar, enquanto sob a lei judaica, e depois de Sara quando salvos, libertos, beneficiando da ressurreição de Jesus. Mesmo que Paulo soubesse que Jesus teve uma mãe literal, ele nunca refere isso. 

Dentro da mesma linha de pensamento de Paulo, o livro de Revelação refere o nascimento cósmico de Jesus de uma mulher celestial.

É muito estranho o silêncio de Paulo sobre a vida de Jesus, ou sobre quem conviveu com Jesus, apesar de escrever dezenas de milhares de palavras sobre Jesus. Isso seria expectável se Jesus fosse de fato apenas conhecido na imaginação de Paulo, tal como ele alega, "em revelações". Paulo, no entanto admite que outros tiveram revelações antes dele, presumivelmente revelações de Deus ou do Filho de Deus. 


A ideia de um Filho de Deus

Na Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento), o deus dos judeus, Yahveh, não tem nenhum filho único ou primogénito. O Antigo Testamento refere em algumas passagens "filhos de deus", provavelmente uma herança de um anterior politeísmo judaico. Mas definitivamente Yahveh não tem um filho especial, único ou primogénito.

Filo de Alexandria, um importantíssimo filósofo judeu, não sendo cristão, revelou que as escrituras escondiam uma informação sobre um filho primogénito de Deus. Os termo usados por Filo são muito semelhantes aos encontrados em várias passagens do Novo Testamento.

A informação de que Deus tinha um filho primogénito seria uma novidade anterior a Paulo. Seria essa a revelação que Deus teria feito aos apóstolos que Paulo admite serem anteriores a ele.

A novidade que Paulo quer trazer é que o Filho de Deus é o Cristo. Paulo acredita que Jesus, a certo ponto, foi transformado em humano, feito a partir da semente de David. Na verdade, ele acredita que Jesus se tornou mortal, foi crucificado e ressuscitou. A questão é que Paulo nunca coloca nenhuma dessas coisas no mundo terreno. Ele retrata a crucificação e o sepultamento como algo que ele tomou conhecimento através das escrituras ou por revelações.

Paulo só refere a existência de testemunhas de Jesus apenas depois da ressurreição (1 Coríntios 15). Não há menção de Jesus aparecer ou ser visto por ninguém antes disso. Para Paulo, Jesus era um ser celestial, envolvido num drama celestial, e não um homem envolvido na história humana. Isto até à sua ressurreição - Jesus morreu e ressurgiu para poder se envolver nos dramas humanos.


O Cristo (ha-Mashiach)

Recuemos uns séculos. 

Com a extinção do reino de Israel, por volta de 724 AEC, a identidade israelita foi integrada na identidade de Judá, mas com a queda do reino de Judá, por volta de 587 AEC, as identidades judaica e israelita estavam ameaçadas e os descendentes destes povos ansiaram por um rei "ungido" (abençoado por Deus), eventualmente restaurando a "casa de David".

A palavra "ungido" é "mashiach" em hebraico e "cristo" em grego.

Com a queda do reino de Judá, a elite judaica foi exilada para a Babilónia, residindo aí por décadas. Entretanto, alguns homens trouxeram esperança na restauração da identidade e independência judaica:

Ciro da Pérsia - derrotou os babilónios, repatriando os judeus para os território original; em Isaías é referido como Cristo/Messias

-  Zorobabel - alegadamente herdeiro da "casa de David", criou a expectativa da restauração de uma linhagem real mas desapareceu sem se saber o seu destino; aparece numa profecia em que Deus declara-o como "escolhido",

 -  Josué (Jesus), filho de Jozadaque - um sumo-sacerdote, do tempo de Zorobabel, a quem Deus atribui uma coroa;


Entretanto, os judeus perdem novamente a sua independência, sendo sucessivamente submetidos a vários impérios.


Jesus Nazareno

A primeira vez que se refere Jesus numa declaração clara e definitiva de que ele foi um homem que andou pela Terra é nos evangelhos com a personagem de Jesus Nazareno. Mas os evangelhos são de autores desconhecidos que escreveram uma geração mais tarde, numa terra e língua alheias à Palestina, e não citam fontes. Os evangelhos também são manifestamente míticos em estrutura e conteúdo. De fato eles estão cheios de afirmações inacreditáveis e bizarras em cada capítulo e nenhuma das aparentes afirmações históricas sobre Jesus pode ser corroborada.

Todos os autores posteriores, cristãos ou não, tiveram os evangelhos como fonte. E os evangelhos não são fontes independentes. Mateus, Lucas e João são fortemente baseados na narrativa de Marcos.


Os Historiadores

Quanto a Josefo, Tácito, Suetónio e Plinio Jovem, não há nada que seja útil para o estabelecimento de um Jesus histório. Pelo contrário, ou existem claras adulterações ou grosseiros viés de interpretação dos respetivos textos.

Quanto a Hegésipo, para além de ele ser do final do século II, o que ele tem a oferecer são lendas e histórias ainda mais ridículas e absurdas que os evangelhos.


O Filho de Deus é o Cristo

Se Jesus Nazareno tivesse sido realmente histórico, deveria ser muito fácil provar a sua historicidade. Seria muito natural Paulo ter escrito sobre a a vida de Jesus e sobre pessoas que o conheceram em vida e não apenas sobre os que o conheceram apenas após a sua ressurreição. Os fieis das comunidades a que Paulo escrevia deveriam ter curiosidade suficiente para querer saber coisas sobre Jesus Nazareno. 

Paulo deveria ter-se ocupado a escrever argumentos a defender a ideia de um desconhecido da Galileia, Jesus Nazareno, ser Filho de Deus e também ser o Cristo esperado.

No entanto todo o esforço argumentativo de Paulo é tentar provar que o Filho de Deus é o Cristo - contra as espectativas judaicas que apontavam que o Cristo teria de ser um líder humano de linhagem da realeza, à imagem de Zorobabel.

Aparentemente, Paulo não tem de provar que Deus tem um Filho, pois esse trabalho já teria sido feito pelos apóstolos anteriores a ele.

O autor de Hebreus (que tem uma doutrina muito semelhante à de Paulo) prefere associar o Filho de Deus à figura de Josué (Jesus), filho de Jozadaque, sumo-sacerdote.



sábado, 26 de fevereiro de 2022

Século I - O Pastor de Hermas

 



O Codex Sinaiticus

Codex Sinaiticus é um antigo manuscrito bíblico, descoberto em 1844, pelo historiador alemão Von Tischendorf, num mosteiro na península do Sinai.

Escrito em grego, em meados do século IV, o Codex Sinaiticus é a versão completa mais antiga do Novo Testamento já encontrada.

Existem cópias mais antigas e fragmentos de livros individuais do Novo Testamento, mas esta é a compilação mais antiga dos mesmos 27 livros.

Importante para o assunto que vamos aprofundar aqui é que o Codex Sinaiticus inclui dois livros adicionais pouco conhecidos e que não são encontrados nas bíblias cristãs modernas: a Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas.


O Pastor de Hermas

O Pastor de Hermas foi um dos textos mais populares entre os primeiros cristãos. Importante o suficiente para ganhar um lugar no Codex Sinaiticus, junto dos Evangelhos e das cartas de Paulo.

É um livro longo e complexo. Manuscritos antigos normalmente o dividem em três secções.


Secção I - Visões

As visões têm como cenário Roma e arredores. Concentram-se no protagonista da narrativa, um ex-escravo chamado Hermas.

No início do livro, Hermas encontra sua antiga senhora, uma mulher chamada Rhoda, banhando-se nua no rio Tibre. Neste momento, Hermas tem um pensamento sobre ela, que o narrador descreve como sendo inocente mas, mais tarde, Rhoda aparece do céu e o repreende alegando que ele teve pensamentos lascivos, pecaminosos.

Este encontro fez com que Hermas entrasse numa ansiedade emocional questionando-se como poderia ser salvo ou se Deus iria perdoar os seus pecados. Então uma outra mulher aparece para lhe mostrar uma série de visões que ele deveria registar para que outros em Roma pudessem ler. Hermes pensa que ela é uma famosa profetisa de Nápoles, mas o leitor percebe que a mulher personifica a Igreja (eventualmente de Roma).

A visão que Hermas recebe da Igreja utiliza a imagem de uma torre em construção. Nesta visão, os crentes são descritos como pedras que são boas o suficiente ou não boas o suficiente para serem usadas na construção da torre. Algumas pedras estão prontas para serem adicionadas à torre, algumas precisam de ser retificadas e outras são descartadas. A chave para essa visão é que Deus oferece tempo para arrependimento ou mudança de mente para se remodelar e se ajustar para a construção da torre.

Este tema de arrependimento antes que o tempo se esgote ocorre repetidas vezes em todo o Pastor de Hermas.


Secção II - Mandamentos

Neste ponto, há uma mudança na narrativa. Ainda temos um narrador em primeira pessoa, mas ele não é mais explicitamente referido como Hermas. Este narrador anónimo é abordado por um novo parceiro de conversa divino, o anjo do arrependimento, com a aparência de um pastor, daí de onde vem o título do livro.

O pastor manda o narrador anotar todos os mandamentos e parábolas que vai lhe dar, pois serão edificantes e levarão ao seu arrependimento. O pastor discute uma enorme variedade de tópicos: crença em deus, sinceridade, pureza, casamento, raiva, autocontrole, profecias verdadeiras e falsas, desejos maus e bons.

Uma das imagens mais famosas dos mandamentos são os dois anjos, o anjo da justiça e o anjo da maldade, que podem viver dentro de uma pessoa e influenciar suas ações e comportamentos. Essa imagem evoluiu para o famoso anjo e diabo que se imagina guiarem as decisões pessoais.

Neste livro os crentes não são chamados de cristãos, mas são referidos como pessoas escravizadas a Deus, levantando questões sobre como os primeiros cristãos entendiam o que o relacionamento com o divino poderia ou deveria ser.


Secção III - As Similitudes (Parábolas)

As Similitudes também são conhecidas como parábolas. O pastor e o narrador anónimo continuam a sua conversa com parábolas sobre os crentes. Parábolas de árvores frutíferas e videiras e uma história muito parecida com as parábolas de Jesus sobre uma pessoa escravizada trabalhando numa vinha e recebendo a liberdade como recompensa por seu trabalho.

Também encontramos uma versão ampliada e remodelada da visão da torre que Hermas experimentou com a Igreja, mas desta vez ocorrendo numa região montanhosa na Grécia, de onde as pedras para a torre estão sendo extraídas.

O livro termina com um anjo ainda maior aparecendo, encorajando o narrador a espalhar a mensagem dos encontros que ele acabou de ter e que o Pastor permanecerá com ele para sempre para ajudá-lo a cumprir todos os mandamentos que recebeu. 


História

O livro mal se encaixa na narrativa típica que vemos noutras literaturas cristãs primitivas. Não há referência a Jesus. Há um personagem filho de deus em alguns pontos, mas até ele precisa ser salvo para fazer parte da torre (da Igreja). Não há citações ou referências à Bíblia Hebraica ou relação com outros textos do Novo Testamento. Em vez disso, há apenas uma citação para um livro do qual nunca ouvimos falar, o Livro de Eldad e Modot. Não há histórias dos apóstolos e suas aventuras. O único outro nome judaico ou cristão reconhecível é o anjo Miguel, que faz uma breve aparição.

Mas apesar de tão aparentemente desconectado de outra literatura cristã, este livro ocupou uma posição de destaque nas mentes e na vida ritual dos primeiros cristãos.

O Pastor de Hermas terá sido composto no final do primeiro ou início do segundo século, já que seu conteúdo parece depender um pouco das cartas de Paulo e é citado pela primeira vez por Irineu na década de 170. 

A autoria do Pastor também não é direta. É possível que parte do texto tenho sido escrita por alguém chamado Hermas. O texto não é claro nisso. 

O género do livro poderia ser rotulado como um texto apocalíptico porque investe em incitar seus leitores a se arrependerem antes do último dia (eschaton), como vimos naquela visão sobre ser incorporado à construção e conclusão da torre, mas o texto também tem muito material moralizante que é não tão claramente ligado ao conceito do fim dos tempos, parecendo mais um código de conduta para o dia-a-dia.


Provas materiais do livro

O livro terá sido escrito originalmente em grego, mas no século II foi traduzido para o latim no norte de África. Pelo século IV, cristãos egípcios traduziram para o copta (língua egípcia em cuja escrita se usa caracteres gregos) e espalharam o texto pelos mosteiros egípcios do sul. No século VI, o Pastor chegou a ser traduzido em língua etíope e permaneceu um texto proeminente entre os cristãos da Etiópia até à era moderna. Por volta dos séculos VII ou VIII, o Pastor também foi traduzido para o árabe, embora essa tradução infelizmente esteja perdida. Finalmente, foi traduzido para o persa médio e usado nas comunidades maniqueístas.

Apesar da versão original do Pastor ter sido a grega, as outras versões são úteis tanto para preencher as lacunas nos manuscritos gregos, que não possuem os últimos capítulos, quanto para revelar como os cristãos da Europa, África e Ásia usavam o texto.

Vemos indícios de como diferentes tradições deram sentido ao texto. Um manuscrito etíope afirma que Paulo o escreveu; a versão georgiana diz que Santo Efrém o escreveu, e um texto grego argumenta que a secção chamada de mandamentos foi dita pelo bispo de Alexandria Atanásio.


Uso do texto

Irineu, no livro "Contra Heresias", cita o texto como sendo escritura e autoritário. Cristãos alexandrinos proeminentes como Clemente e Orígenes também o consideravam autoritário.

No entanto, Tertuliano não concordou com a ideia de um longo prazo para um arrependimento: o texto dá aos humanos tanto tempo para se arrependerem que Tertuliano argumentou que a excessiva brandura poderia levar ao adultério e ao pecado. Portanto, já no segundo século, o texto era motivo de controvérsia.

Nos séculos IV e V, embora o cânon do Novo Testamento já estivesse praticamente solidificado, o Pastor ainda era muito importante. Escritores como Eusébio, Atanásio e Jerónimo notaram que o Pastor era usado nas igrejas e usado para educar novos cristãos.

Até mesmo no período medieval, ainda se faziam cópias por toda a Europa e Ásia. O Pastor era usado até mesmo como autoridade numa coleção medieval irlandesa (Hibernensis) de direito canônico que considerou os comentários do mandamentos sobre divórcio e novo casamento muito significativos.

Então, aparentemente, tanto os primeiros cristãos quanto os cristãos medievais acharam o conteúdo ético e as histórias do pastor benéficos para suas próprias vidas. E pelo menos alguns cristãos primitivos acharam suas histórias artisticamente valiosas também. Nas catacumbas de São Gennaro em Nápoles pode-se encontrar uma representação de uma cena do Pastor: três mulheres recolhendo pedras da pedreira para a construção de uma torre.

Tertuliano também menciona que alguns cristãos do norte de África gravavam imagens alusivas ao Pastor em seus cálices.


O esquecimento

O Pastor de Hermas caiu em desuso em diferentes momentos e diferentes lugares ao redor do Egito e do Levante, bem como em outras áreas do oriente de língua grega, o pastor tornou-se menos abundante nos séculos VII e VIII.

Inicialmente, grandes figuras como Irineu o consideraram como escritura, mas quando o cânon do Novo Testamento começou a solidificar, algumas autoridades da igreja o relegaram a um segundo status. Por exemplo, o patriarca Atanásio do século IV argumentou que o Pastor era um texto útil apenas para instruir novos fiéis.

Eusébio também relata que o Pastor foi contestado por muitos. As autoridades cristãs neste campo provavelmente trabalharam para manter o Pastor fora das compilações do Novo Testamento.

Contudo, na Europa Ocidental as versões latinas continuaram a circular até ao século XV e, na Etiópia, o pastor permaneceu um texto proeminente até ao século XVIII.


Referências:

 - http://www.earlychristianwritings.com/shepherd.html

 - http://monergismo.com/wp-content/uploads/Pastor_de_Hermas.pdf

 - https://www.youtube.com/watch?v=oX3Oi8j5AzY



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Paulo - A Semente de David




Paulo sobre a semente de David

Em Romanos 1:3, Paulo diz que Jesus "foi feito da semente de Davi segundo a carne”. 

Romanos 1:1-3 Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, o qual foi prometido por ele de antemão por meio dos seus profetas nas Escrituras Sagradas, acerca de seu Filho, que foi feito da semente de Davi segundo a carne...


Muitas vezes esta passagem é traduzida por "... que nasceu da descendência de Davi segundo a carne...".

Trata-se de uma tradução abusiva. Paulo usa a palavra γενομένου (genomenou) que não significa "nascer", mas qualquer coisa como "tornar-se".

Veja-se, no evangelho de Mateus, uma utilização de uma palavra da mesma família -  γένωνται (genontai):

Mateus 4:3 E chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães.


Mesmo sem a tradução abusiva, que diz que Jesus "nasceu da descendência de David", a passagem de Romanos 1:1-3 parece ser uma prova de que Paulo afirma que o Filho de Deus foi um homem que viveu na terra, eventualmente sob a identidade de Jesus Nazareno.

Mas qual a veracidade de Jesus Nazareno, um alegado pregador da Galileia, ter sido descendente de David? Nenhuma! Qualquer judeu iria estranhar essa alegação, pois havia séculos que a linhagem de David se havia extinguido. 

Segundo a profecia judaica entregue a David pela voz do profeta Natã, Deus disse que a casa de David governaria para sempre.

2 Samuel 7:12-13 Quando a sua vida chegar ao fim e você descansar com os seus antepassados, escolherei um dos seus filhos para sucedê-lo, um fruto do seu próprio corpo, e eu estabelecerei o reino dele. 13 Será ele quem construirá um templo em honra ao meu nome, e eu firmarei o trono dele para sempre.


Pensando em termos da crença judaica, para se cumprir a profecia de que o Cristo teria de ser descendente (da semente) de David, seria necessário que Deus ressuscitasse David ou algum antigo rei de Judá da sua linhagem de modo a ter um filho na Terra... Ou então, como Deus é omnipotente, porque não poderia Deus fazer um corpo para o Cristo usando a semente de David como matéria prima?


Paulo sobre a semente de Abraão

Também não podemos deixar de parte que Paulo poderia ter referido que o Cristo veio da semente de David em sentido figurado e não literal. Em Gálatas 3:29, Paulo diz que todos os crentes são da semente de Abraão.

Gálatas 3:29 E, se vocês são de Cristo, são da semente de Abraão e herdeiros segundo a promessa.


Paulo refere-se a todos os crentes, mesmo os que não eram etnicamente judeus para poderem ser considerados da "semente" literal de Abraão. Então os cristãos gentios eram também literalmente descendentes de Abraão? Não! Aqui Paulo usa a palavra "semente" no sentido figurativo.


Jesus como ser celestial

E se Jesus fosse imaginado como um ser celestial em vez de um homem que viveu na Terra?

Vamos ver a hipótese de que Jesus era imaginado por Paulo como um ser celestial. Paulo alegaria, então, que Jesus obteve um corpo (feito com o material do corpo ou semente de David) nos céus inferiores, que foi morto por poderes demoníacos e que ressuscitou, tudo no reino celestial e não na Terra.

Temos de ter em conta que os judeus criam que os seres celestiais podiam obter um corpo material (p.ex., Génesis 6, os filhos de deus que tiveram relações sexuais com mulheres).

É muito provável ter havido, inicialmente, a crença num Filho de Deus celestial. Combinando essa crença com a necessidade teológica de um Cristo descendente de David, então seria de esperar que os primeiros cristãos acreditassem que Cristo era um descendente de Davi, mesmo que acreditassem num Cristo celestial. Eles poderiam imaginar que o corpo de Jesus teria sido criado diretamente da semente de David preservada sobrenaturalmente nos céus inferiores.

O pensamento religioso não é necessariamente racional. Por isso qualquer crença, por mais bizarra que pareça, é possível. Pensadores religiosos têm criatividade ilimitada e os seus seguidores não costumam ser muito críticos. 


Receita para fazer um corpo

Na Carta aos Coríntios, Paulo refere como corpos podem ser feitos (não necessariamente nascidos).
1 Coríntios 15:35-49 
35 Mas alguém pode perguntar: “Como ressuscitam os mortos? Com que espécie de corpo virão?” 36 Insensato! O que você semeia não nasce a não ser que morra. 37 Quando você semeia, não semeia o corpo que virá a ser, mas apenas uma simples semente, como de trigo ou de alguma outra coisa. 38 Mas Deus lhe dá um corpo, como determinou, e a cada espécie de semente dá seu corpo apropriado. 39 Nem toda carne é a mesma: os homens têm uma espécie de carne, os animais têm outra, as aves outra, e os peixes outra. 40 Há corpos celestes e há também corpos terrestres; mas o esplendor dos corpos celestes é um, e o dos corpos terrestres é outro. 41 Um é o esplendor do sol, outro o da lua, e outro o das estrelas; e as estrelas diferem em esplendor umas das outras.

42 Assim será com a ressurreição dos mortos. O corpo que é semeado é perecível e ressuscita imperecível; 43 é semeado em desonra e ressuscita em glória; é semeado em fraqueza e ressuscita em poder; 44 é semeado um corpo natural e ressuscita um corpo espiritual.

Se há corpo natural, há também corpo espiritual. 45 Assim está escrito: “O primeiro homem, Adão, tornou-se um ser vivente”; o último Adão, espírito vivificante. 46 Não foi o espiritual que veio antes, mas o natural; depois dele, o espiritual. 47 O primeiro homem era do pó da terra; o segundo homem, dos céus. 48 Os que são da terra são semelhantes ao homem terreno; os que são dos céus, ao homem celestial. 49 Assim como tivemos a imagem do homem terreno, teremos também a imagem do homem celestial.

Paulo aqui explica como o corpo de Adão foi feito (tornou-se) e não nasceu. Jesus é referido como o último Adão - o seu corpo foi feito como o de Adão. Jesus não nasceu homem - Deus fez-lhe um corpo.

Na sua Carta aos Filipeneses, Paulo escreveu:
Filipenses 2:7 mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens.

Mais uma vez, o corpo de Jesus teve origem no céu.


Mas um Cristo celestial?

Revelação 12 refere o nascimento celestial de Jesus. Não seria uma ideia estranha para os primeiros cristãos Jesus ter nascido no céu.

Revelação 12:1-5 E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do Sol, tendo a Lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. E estava grávida e com dores de parto e gritava com ânsias de dar à luz... Então apareceu outro sinal no céu: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres e sete coroas nas cabeças. Sua cauda varreu um terço das estrelas do céu e as arremessou para a terra. O dragão parou diante da mulher que estava para dar à luz, para que pudesse devorar seu filho no momento em que nascesse. Ela deu à luz um filho, um menino, que ‘regerá todas as nações com cetro de ferro’”.


Paulo subiu ao terceiro Céu

Paulo diz em 2 Coríntios 12 que ele, o próprio Paulo, subiu ao céu para receber revelações e voltou.

2 Coríntios 12:1-4 Em verdade que não convém gloriar-me; mas passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos (se no corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe), foi arrebatado até ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, de que ao homem não é lícito falar.


Nesta passagem Paulo conta que ele próprio subiu ao céu em carne ou em espírito (ele diz que não se lembra). 

Portanto estar no céu em forma humana (em carne) não seria absurdo para Paulo. Para ele é aceitável a ideia de que se pode estar no céu em forma corporal.

Atenção: não há prova que Paulo cria naquilo que escrevia. Mas é claro que queria que os seus leitores cressem naquilo que escrevia.

Se ele achasse que seria absurdo alguém subir com corpo ao céu, ele teria dito que sem dúvida ele próprio subiu em espírito. Mas ele diz que pode ter sido em corpo, simplesmente não se lembra.

Paulo crê que Jesus fez-se carne. Mas podia ter-se feito carne sem sair do céu. Assim como Paulo pensa que subiu ao terceiro céu em corpo. Paulo poderia imaginar que Jesus esteve na forma carnal, foi morto e ressuscitou - tudo no céu.

É muito claro que Paulo não sabe nada sobre Jesus Nazareno. Muito menos saberiam os seus longínquos seguidores de Corínto, Tessalonica. Filipo, etc


Até os evangelhos!

Mesmo nos evangelhos de Mateus e de Lucas, o corpo de Jesus é fabricado por Deus - com a diferença que Deus fabrica o corpo de Jesus no útero de Maria. Os autores poderia ter tentado passar a ideia de que Deus teria colocado a semente de David no útero de Maria.

Os evangelhos de Mateus e Lucas inventaram genealogias para José para alegarem que ele seria descendente de David, mas ambos acabam por alegar que Jesus nasceu através de uma semente colocada por Deus em Maria.


Onde habitam Satanás e os seus demónios?

Ora Satanás e os seus demónios habitam a porção inferior dos céus, aquela logo abaixo do firmamento. Aquela porção do céu onde Jesus foi crucificado. Isto ficará para um próximo artigo! 



Referências:


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Século II - Suetónio

 



Suetónio

Sobre Crestus e a expulsão de judeus de Roma

O historiador Gaius Suetonius Tranquillus (c. 69 a 140 EC) escreveu, por volta 121 EC, sobre o imperador Cláudio:
Suetónio, Vidas dos Doze Césares, Livro V, Vida de Cláudio, 25, 4
... Porque os judeus faziam constantes distúrbios por instigação de Crestus, ele [Cláudio] expulsou-os de Roma.

Esta passagem é habitualmente usada, por apologistas cristãos, como tentativa de prova de existência de Jesus da Nazaré. Para além disto parece também confirmar um texto de Atos:
Atos 18:1-2 Depois disto Paulo partiu para Atenas e chegou a Corinto. E encontrando um judeu por nome Áqüila, natural do Ponto, que pouco antes viera da Itália, e Priscila, sua mulher (porque Cláudio tinha decretado que todos os judeus saíssem de Roma), foi ter com eles,...

Em relação a confirmar a passagem de Atos 18:1-2, não parece haver grande obstáculo em aceitar que uma expulsão de judeus por parte de Cláudio é uma alegação historicamente válida. A expulsão de judeus não era novidade para Cláudio. Já Tibério tinha, em 19 EC, forçado o exílio a 4000 judeus.

Mas como prova da existência de Jesus Nazareno, nesta passagem de Suetónio os problemas são:

-          Suetónio escreveu mais de oitenta anos depois da suposta morte de Jesus Nazareno;

-          não menciona cristãos, mas judeus; mesmo que falasse de cristãos, não constituiria prova da existência do Jesus Nazareno dos evangelhos;

-          não fala de Jesus nem de Cristo mas de Crestus, um nome latino vulgar, principalmente entre escravos;

-          o texto presume que este Crestus residia em Roma, um local sobre o qual nunca é dito que Jesus tenha visitado.


O Cresto de Cícero

Cícero (Marcus Tullius Cícero, 106-43 AEC), numa sua carta refere um homem chamado Crestus. 
Cicero, Carta aos Familiares, 2.8.1 
O quê? Você acha que eu confiei isso a você, que você deveria me enviar as composições dos gladiadores, para adiar suas fianças, e a compilação de Crestus


O Cresto de César

Existe também a evidência de um indivíduo chamado Cresto que era "lictor" (guarda-costas, segurança pessoal) de César.


Referência: Livius.org 


Vemos, então, que "Crestus" não é o mesmo que "Cristo". E mesmo que fosse, por que é que "Cristo" seria necessariamente sinónimo de Jesus Nazareno? 

Portanto, Suetónio não se refere a nenhum Jesus da Nazaré na sua passagem quando relata aquele incidente em que Cláudio expulsa os judeus de Roma (entre 41 e 52 EC).

Para além de ser usada como um nome próprio, a palavra chrestus (χρηστὸς), com o sentido de "bom", "melhor", "bondoso" é usada no Novo Testamento nos seguintes versículos: Mateus 11:30; Lucas 5:39;6:35; 1 Pedro 2:3.


Sobre a punição dos cristãos por Nero

Outra passagem de Suetónio, desta vez no livro "Vida de Nero", refere cristãos torturados por Nero.
Suetónio, Vidas dos Doze Césares, Livro VI, Vida de Nero, 16, 2
Nero infligiu castigo aos cristãos, um grupo de pessoas dadas a uma superstição nova e maléfica.

O problema aqui é que no tempo de Nero (até 68 EC) os cristãos não eram conhecidos. Confundiam-se facilmente entre os judeus.

No tempo de Suetónio, sim, os cristãos já começavam a ser conhecidos. Mas Suetónio está a falar do tempo de Nero.

Aqui o problema é semelhante ao que se encontra na passagem de Tácito sobre o Incêndio de Roma de 64 EC, embora Suetónio não relacione "os castigos aos cristãos" com Nero querer apontar os cristãos como culpados do incêndio.


Referências:


sábado, 12 de fevereiro de 2022

Paulo - Quem crucificou Jesus?




O que é que o apóstolo Paulo sabia sobre a crucificação de Jesus? Vejamos o que é que ele escreveu na sua Carta aos Coríntios.

1 Coríntios 2:6-10 (NVI-PT)

6 Entretanto, falamos de sabedoria entre os que já têm maturidade, mas não da sabedoria desta era ou dos poderosos desta era, que estão sendo reduzidos a nada. 7 Ao contrário, falamos da sabedoria de Deus, do mistério que estava oculto, o qual Deus preordenou, antes do princípio das eras, para a nossa glória. 8 Nenhum dos poderosos desta era o entendeu, pois, se o tivessem entendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. 9 Todavia, como está escrito:

“Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam” [Isaías 64:4];

10 mas Deus o revelou a nós por meio do Espírito. O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as coisas mais profundas de Deus. 


Então como é que Paulo soube que Jesus foi crucificado?

Paulo diz que foi Deus que revelou. Atenção que Paulo não alega apenas que Deus revelou que a crucificação de Jesus foi uma coisa planeada "antes do início das eras (aeons, mundos)". Parece estar implícito também que Paulo alega saber que Jesus foi crucificado porque Deus lhe revelou. Portanto, se é uma informação revelada é porque a crucificação ocorreu num mundo (aeon) fora do alcance dos humanos. Paulo parece usar aqui uma linguagem gnóstica.

E quem crucificou Jesus? 

Paulo refere que "poderosos (ἀρχόντων, archonton) desta era (αἰῶνος, aeonos, mundo)" crucificaram o "Senhor da glória" (1 Coríntios 2:8). Então todos os governantes do mundo mataram Jesus? Paulo não se refere necessariamente a poderosos humanos, mas certamente a poderes que regem "este mundo", ou aeon, desde as esferas sobrenaturais.

Paulo sempre alega ter duas fontes para o seu conhecimento: 

 - as escrituras (ou a Bíblia Hebraica, a que chamamos hoje de Antigo Testamento) - neste caso Paulo cita um verso de Isaías; 

 - a revelação celestial (de Deus e de Cristo) - foi Deus que lhe revelou sobre a crucificação de Jesus;


Na Carta aos Gálatas, Paulo diz:

Gálatas 3:1 (NVI-PT)

Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi diante dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?


Obviamente, Paulo não está a insinuar que os gálatas (da Galácia, atualmente pertencente à Turquia) presenciaram uma crucificação literal de Jesus. Paulo aqui fala figurativamente, referindo que os gálatas tomaram conhecimento da crucificação através dos ensinamentos dele.


Conclusão

Os evangelhos relatam que Jesus foi crucificado em Jerusalém por Pilatos. Mas Paulo refere que Jesus foi crucificado num mundo fora do alcance dos humanos por poderosos desse mundo.


Ler também:

 - Paulo - Sumário sobre Cristo

 - Século II - Gnosticismo - Valentinius