sábado, 15 de dezembro de 2012

João - Outras Curiosidades





Bodas de Caná

Que podemos dizer sobre a famosa festa de casamento onde Jesus transforma água em vinho?
João 2:1-11 Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galiléia, e estava ali a mãe de Jesus; e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento. E, tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. Respondeu-lhes Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora. Disse então sua mãe aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam duas ou três metretas. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima. Então lhes disse: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E eles o fizeram. Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho. Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.

Muitas questões se poderiam colocar acerca deste episódio:
-          Porque é que Maria fica preocupada com a falta de vinho? Segundo o mestre-sala, os convidados já tinham “bebido bem”!
-          Porque é que Jesus responde à sua mãe com palavras tão ríspidas (“que tenho eu contigo, mulher”)?
-          Porque é que Maria tinha poder para dar ordens aos servos da festa? Faria parte da organização do evento?
-          Quem viu Jesus a transformar a água em vinho? O texto sugere que apenas os servos poderiam assegurar que as talhas tinham água. Foi Maria que os obrigou a dizerem isso?
-          Quem tomou conhecimento do prodígio de Jesus? Todos os convidados da boda ou apenas os discípulos que vieram com Jesus ao casamento?



Judeus

No Evangelho Segundo João é impressionante a quantidade de vezes que é utilizada a palavra “judeu” para designar intervenientes na narrativa. Muitas personagens anónimas são referidas com a designação genérica de “judeu”. Podemos encontrar em João mais de sessenta referências com a palavra “judeu”.

João 1:19-20 E este foi o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és tu? Ele, pois, confessou e não negou; sim, confessou: Eu não sou o Cristo. 
João 2:6 Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam duas ou três medidas. 
João 2:13 Estando próxima a páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém.
João 5:10 Pelo que disseram os judeus ao que fora curado: Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito. 
João 5:14-18 .... Retirou-se, então, o homem, e contou aos judeus que era Jesus quem o curara. Por isso os judeus perseguiram a Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, ...
...

No contexto dos evangelhos este abuso da designação “judeu” torna-se um absurdo. Ainda mais absurdo de torna quando algumas das passagens ocorrem na Judeia, a pátria dos judeus! (seria a mesma coisa que escrever-se a biografia do rei Dom Carlos com frases do género “... certo dia, estando o rei Dom Carlos em Sintra, disse-lhe um português...”  ou “... ia o rei Dom Carlos de viagem para Lisboa quando alguns portugueses aproximaram-se para disparar sobre ele...”).

Em muitas destas passagens, os judeus são difamados e apresentados como pessoas detestáveis:
João 7:1 Depois disto andava Jesus pela Galiléia; pois não queria andar pela Judeia, porque os judeus procuravam matá-lo. 
João 7:11-13 Ora, os judeus o procuravam na festa, e perguntavam: Onde está ele? ... Todavia ninguém falava dele abertamente, por medo dos judeus. 
João 8:48-52 Responderam-lhe os judeus: Não dizemos com razão que és samaritano, e que tens demônio? ... Disseram-lhe os judeus: Agora sabemos que tens demônios. ... 
João 9:22 Isso disseram seus pais, porque temiam os judeus, porquanto já tinham estes combinado que se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga.
João 10:31 Os judeus pegaram então outra vez em pedras para o apedrejar.

Para reforçar este afastamento do judaísmo, em algumas passagens de João, Jesus faz questão de se demarcar da raça dos judeus quando fala sobre os antepassados destes:
João 6:49 Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. 
João 6:58 Este é o pão que desceu do céu; não é como o caso de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre.

Como Jesus diz “vossos antepassados” (ou “vossos pais”), não se inclui nessa linhagem. Isto contraria as genealogias de Mateus e Lucas onde se declara que Jesus era descendente do rei David, o que implicaria Jesus ser judeu.



Discípulo amado

O autor de João menciona ao longo do texto um “discípulo que Jesus amava”, como sendo uma personagem especial.

João 13:23-25 Ora, achava-se reclinado sobre o peito de Jesus um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava. A esse, pois, fez Simão Pedro sinal, e lhe pediu: Pergunta-lhe de quem é que fala. Aquele discípulo, recostando-se assim ao peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? 
João 19:26-27 Ora, Jesus, vendo ali sua mãe, e ao lado dela o discípulo a quem ele amava, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Então disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa. 
João 20:1-2 No primeiro dia da semana Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra fora removida do sepulcro. Correu, pois, e foi ter com Simão Pedro, e o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram. 
João 21:7 Então aquele discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: Senhor. Quando, pois, Simão Pedro ouviu que era o Senhor, cingiu-se com a túnica, porque estava despido, e lançou-se ao mar; 
João 21:20-22 E Pedro, virando-se, viu que o seguia aquele discípulo a quem Jesus amava, ... Ora, vendo Pedro a este, perguntou a Jesus: Senhor, e deste que será? Respondeu-lhe Jesus: Se eu quiser que ele fique até que eu venha, que tens tu com isso? Segue-me tu. ...

Que podemos saber acerca deste “discípulo amado”:
-          durante a última ceia, esteve deitado sobre o peito de Jesus;
-          esteve a falar com Jesus junto à cruz e foi viver com a mãe de Jesus depois de ele morrer;
-          recebeu, de Maria Madalena, a notícia que o corpo de Jesus tinha desaparecido do sepulcro;
-          estava com Pedro num barco, quando o ressuscitado Jesus apareceu-lhes (incidentalmente Pedro estava despido e vestiu-se para nadar!... mas... é só um pormenor...);
-          Pedro pergunta a Jesus qual o futuro deste “discípulo amado”.

Só no desfecho do livro é que o autor identifica-se como sendo este “discípulo amado”.

João 21:24 Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro.

Mas este discípulo permanece sempre misteriosamente anónimo. Para descobrirmos de quem se trata poderemos usar o raciocínio lógico e começar por analisar o seguinte texto:

João 19:25-27 Estavam em pé, junto à cruz de Jesus, sua mãe, e a irmã de sua mãe, e Maria, mulher de Clôpas, e Maria Madalena. Ora, Jesus, vendo ali sua mãe, e ao lado dela o discípulo a quem ele amava, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Então disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.

Ora, lendo a primeira frase, verificamos que, perto da cruz, estavam:
-          a mãe de Jesus;
-          uma tia de Jesus;
-          a Maria, mulher de Clopas;
-          a Maria Madalena.

Mas, na frase imediatamente a seguir temos Jesus a conversar com a sua mãe e com o “discípulo amado”. Por exclusão de partes, o “discípulo amado” teria de ser uma das seguintes mulheres:
-          a tia de Jesus;
-          ou a Maria, mulher de Clopas;
-          ou a Maria Madalena.

Mas, agora, para limitar o nossa lista de candidatas a “discípulo amado”, vamos eliminar mais uma pessoa da lista (quem será?... será a Maria?...). Vejamos o seguinte texto:

João 20:1-2 No primeiro dia da semana Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra fora removida do sepulcro. Correu, pois, e foi ter com Simão Pedro, e o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram.

Os fãs do Código Da Vinci de Dan Brown vão ficar desapontados, mas somos obrigados a eliminar Maria Madalena da lista dos candidados a “discípulo amado”, porque existe uma passagem onde Maria Madalena contracena com o “discípulo amado” (João 20:1-2). Teremos, então, uma final com as seguintes concorrentes:
-          a tia de Jesus;
-          ou a Maria, mulher de Clopas.

Eliminemos, agora, a tia de Jesus, porque não é mencionada em mais nenhum relato, e ficamos com a grande vencedora deste concurso:
-          Maria, mulher de Clopas.

Isto sim, faz sentido! Uma mulher casada teria de manter o anonimato. Não poderia divulgar o seu nome num livro onde declara ter-se deitado no peito de outro homem (mesmo que tenha sido o peito de um deus) e que tinha estado num barco com um homem despido!

Infelizmente, como o livro de João tem muito pouca consistência, não podemos tirar um real proveito do exercício de lógica que acabámos de realizar.



Nós não somos filhos daquelas ...

Durante uma longa discussão com judeus, estes respondem a Jesus que não são filhos de prostitutas.

João 8:39-41 Responderam-lhe: Nosso pai é Abraão. Disse-lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, fazei as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me, a mim que vos falei a verdade que de Deus ouvi; isso Abraão não fez. Vós fazeis as obras de vosso pai. Replicaram-lhe eles: Nós não somos nascidos de prostituição; temos um Pai, que é Deus.

Ora, uma resposta deste tipo implicaria um entre os dois seguintes pressupostos:
-          Jesus teria, em primeiro lugar, chamado filhos de prostitutas aos seus interlocutores, ou pelo menos teria insinuado isso de alguma forma – mas no texto não se encontra nada disso;
-          os judeus queriam insinuar que eram melhores do que Jesus por não serem filhos de prostitutas – e esta hipótese levaria a reflexões que seriam demasiado chocantes para serem consideradas.

O que dá a entender é que a resposta está completamente fora de contexto, como se dissessem uma coisa do género “porque é que temos de estar aqui a falar com este, se nós não somos filhos de prostitutas?”, terminando abruptamente a linha de raciocínio. De qualquer modo, esta longa discussão acaba numa tentativa de apedrejamento de Jesus (João 8:59).



Não me toques, toca-me

Quando Maria Madalena viu Jesus ressuscitado, Jesus não permitiu que ela o tocasse, argumentando “ainda não subi ao Pai”:
João 20:16-17 Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, virando-se, disse-lhe em hebraico: Raboni! - que quer dizer, Mestre. Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus.

Mas, poucos versículos à frente, vemos Jesus a insistir para Tomé tocar nas cicatrizes provocadas pela crucificação:
João 20:26-27 Oito dias depois estavam os discípulos outra vez ali reunidos, e Tomé com eles. Chegou Jesus, estando as portas fechadas, pôs-se no meio deles e disse: Paz seja convosco. Depois disse a Tomé: Chega aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; chega a tua mão, e mete-a no meu lado; e não mais sejas incrédulo, mas crente.


Jesus fez muitas coisas

No 2º fecho do livro de João, o autor afirma que se todas as coisas que Jesus fez fossem registadas em livros, estes não caberiam no mundo:
João 21:25 E ainda muitas outras coisas há que Jesus fez; as quais, se fossem escritas uma por uma, creio que nem ainda no mundo inteiro caberiam os livros que se escrevessem.

No entanto, o autor do livro de Actos, diz que escreveu sobre “todas as coisas que Jesus fez”:
Actos 1:1 Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo quanto Jesus começou a fazer e ensinar, ...

Será que o autor de Actos encheu “o mundo inteiro” de livros para escrever tudo o que Jesus fez?




João vs Sinópticos VI - Episódios recontados




O centurião e o escravo

Os sinópticos Mateus e Lucas contém um episódio sobre um centurião que se dirige a Jesus rogando-lhe que salve um seu escravo estimado que estava doente e Jesus cura o escravo sem se deslocar à presença deste (Mateus 8:5-13; Lucas 7:1-10).

Em João uma situação idêntica é descrita com um oficial do rei (presumivelmente o rei é Herodes Antipas) relativamente ao seu filho (João 4:46-54).


Mateus 8:5-13 e Lucas 7:1-10
João 4:46-54
Local
Cafarnaum
Caná
Homem que roga a Jesus
Centurião
Oficial do rei
Doente não presente
O escravo
O filho
Cura
Jesus cura o doente à distância
Jesus cura o doente à distância


Dois episódios diferentes? Ou duas tradições da mesma história?



Marta e Maria... e Lázaro?

Existe também indício de influência específica de Lucas: as irmãs Marta e Maria que foram introduzidas neste evangelho, reaparecem em João, mas agora com um irmão chamado Lázaro (Lucas 10:38-42; João 11:1-12:19).

É estranho “Lucas” ter descrito um episódio com Marta e Maria mas “esquecer-se” completamente de Lázaro o qual, segundo João, foi objecto do maior dos milagres realizados por Jesus - ressuscitar um homem sepultado há quatro dias. Este milagre é contado em João como um evento espectacular, presenciado por uma multidão:
João 11:14-46 ... Chegando pois Jesus, encontrou-o já com quatro dias de sepultura. ... E muitos dos judeus tinham vindo visitar Marta e Maria, para as consolar acerca de seu irmão. ... Então os judeus que estavam com Maria em casa e a consolavam, vendo-a levantar-se apressadamente e sair, seguiram-na, pensando que ia ao sepulcro para chorar ali. ... Disse Jesus: Tirai a pedra. ... Tiraram então a pedra. E Jesus, levantando os olhos ao céu, disse: Pai, graças te dou, porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves; mas por causa da multidão que está em redor é que assim falei, para que eles creiam que tu me enviaste. E, tendo dito isso, clamou em alta voz: Lázaro, vem para fora! Saiu o que estivera morto, ligados os pés e as mãos com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: Desligai-o e deixai-o ir. Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo visitar Maria, e que tinham visto o que Jesus fizera, creram nele. Mas alguns deles foram ter com os fariseus e disseram-lhes o que Jesus tinha feito.

Resumindo esta questão:
-          Marcos e Mateus não referem Marta, Maria nem Lázaro
-          Lucas narra um episódio com Marta e Maria, mas nada sobre Lázaro
-          João reformula o episódio com Marta e Maria e ainda narra um episódio onde Jesus ressuscita Lázaro, o irmão destas

Porque é que os outros três evangelhos ignoram completamente o episódio em que Jesus ressuscita Lázaro o qual já se encontrava morto por quatro dias? Este seria uma das maiores demonstrações de poder por parte de Jesus! 

Mas no evangelho de Lucas existe uma personagem chamada Lázaro, só que é referida numa parábola contada por Jesus!


Marta e Maria - Baralhar e dar de novo

Uma passagem relatada em João, ainda sobre Marta e Maria, demonstra o quão baralhado e reformulado foi este livro. Esta passagem contém uma fusão de três histórias encontradas nos sinópticos:
João 12:1-8 Veio, pois, Jesus seis dias antes da páscoa, a Betânia, onde estava Lázaro, a quem ele ressuscitara dentre os mortos. Deram-lhe ali uma ceia; Marta servia, e Lázaro era um dos que estavam à mesa com ele. Então Maria, tomando uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço, ungiu os pés de Jesus, e os enxugou com os seus cabelos; e encheu-se a casa do cheiro do bálsamo. Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, aquele que o havia de trair disse: Por que não se vendeu este bálsamo por trezentos denários e não se deu aos pobres? Ora, ele disse isto, não porque tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, subtraía o que nela se lançava. Respondeu, pois Jesus: Deixa-a; para o dia da minha preparação para a sepultura o guardou; porque os pobres sempre os tendes convosco; mas a mim nem sempre me tendes.

Vejamos os pontos principais desta passagem:


João 12:1-6
Local:
Betânia
Casa:
Marta, Maria e Lázaro
Mulher:
Maria
O que fez a mulher:
Deitou óleo dispendioso nos pés de Jesus e limpou com os cabelos
Reclamação:
Judas queixa-se que é um desperdício de dinheiro que poderia ser utilizado para caridade.
O que faz Jesus:
Explica que aquele gesto prenuncia o seu enterro.


Vamos comparar os pontos principais desta história com textos dos outros evangelhos, nomeadamente uma passagem de Marcos (que também encontramos em Mateus 26:6-13) e duas de Lucas:


Marcos 14:3-9
(o prenúncio de enterro)
Local:
(*) Betânia
-
Certa aldeia
Casa:
De Simão, o leproso
De um fariseu chamado Simão
(*) De Marta e Maria
Mulher:
Uma desconhecida
Uma “pecadora”
(*) Maria
O que fez a mulher:
Deitou óleo dispendioso na cabeça de Jesus
(*) Verteu lágimas nos pés de Jesus, limpou com os cabelos, deitou óleo nos pés
Maria ficou aos pés de Jesus a escutá-lo
Reclamação:
(*) Alguns discípulos queixam-se que é um desperdício de dinheiro que poderia ser utilizado para caridade.
O fariseu critica Jesus por tocar numa “pecadora”.
Marta reclama que Maria não a ajuda nas tarefas domésticas.
O que fez Jesus:
(*) Explica que aquele gesto prenuncia o seu enterro.
Perdoa a “pecadora”
Desculpa Maria, pois ela “escolheu a boa parte”


As partes assinaladas com um asterisco (*) são aquelas que fazem parte da história contada em João. Parece claro, que “João” fez uma mistura de três histórias de características semelhantes, embora com personagens e cenários diferentes, para criar uma nova.


Referências:
 - E. P. Sanders - A verdadeira História de Jesus

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

João vs Sinópticos V - Data da Morte de Jesus, Sinais




Data da morte de Jesus

Nos evangelhos sinópticos, Jesus come a refeição da Páscoa com os apóstolos, na noite anterior à sua morte. Essa refeição consiste num cordeiro sacrificado segundo a tradição judaica, para ser consumido no jantar de 14 do mês de Nisã. A morte de Jesus ocorre no dia seguinte, dia da Preparação (sexta-feira = preparação do sábado) dia 15 de Nisã, o dia a seguir à Páscoa.

Marcos
Mateus
Lucas
Marcos 14:12 Ora, no primeiro dia dos pães ázimos, quando imolavam a páscoa, disseram-lhe seus discípulos: Aonde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a páscoa?
Mateus 26:17 Ora, no primeiro dia dos pães ázimos, vieram os discípulos a Jesus, e perguntaram: Onde queres que façamos os preparativos para comeres a páscoa?
Lucas 22:7-9 Ora, chegou o dia dos pães ázimos, em que se devia imolar a páscoa; e Jesus enviou a Pedro e a João, dizendo: Ide, preparai-nos a páscoa, para que a comamos. Perguntaram-lhe eles: Onde queres que a preparemos?



Em João, a morte de Jesus ocorre no próprio dia da Páscoa, também uma sexta-feira, mas no dia 14 de Nisã.
João 18:28 Depois conduziram Jesus da presença de Caifás para o pretório; era de manhã cedo; e eles não entraram no pretório, para não se contaminarem, mas poderem comer a páscoa
João 19:13-14 Pilatos, pois, quando ouviu isto, trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado Pavimento, e em hebraico Gabatá. Ora, era a preparação da páscoa, e cerca da hora sexta. E disse aos judeus: Eis o vosso rei.

Podemos ler em João 18:28, que, no dia do julgamento (e morte) de Jesus, os sacerdotes evitaram entrar no palácio do governador para “não se contaminarem, mas poderem comer a páscoa”. Em João 19:13-14, na descriçao do julgamento de Jesus, lemos que era o dia da preparação da páscoa. Isto indica claramente que ainda não tinham celebrado a páscoa, isto é, ainda não tinham tomado a refeição nocturna da páscoa.

Por outro lado, Jesus é retratado por João Baptista como o próprio “cordeiro de Deus”, o último sacrifício de páscoa.

João 1:29 No dia seguinte João viu Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. 
João 1:36 e, olhando para Jesus, que passava, disse: Eis o Cordeiro de Deus!

Portanto a crucificação de Jesus seria considerada a última “refeição” de páscoa, porque seria considerada o sacrifício do “Cordeiro de Deus”. Toda esta narrativa está de acordo com o edifício doutrinal de João que começa com Jesus a afirmar que “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna” (João 6:53-56). A partir dali nunca mais seria necessário fazer sacrifícios animais para Deus para o perdão de pecados.

Na verdade, os judeus, ao ficarem privados do seu Templo em 70 EC, por causa da destruição causada pelos romanos, nunca mais fizeram sacrifícios animais (isto até hoje, século XXI). Tendo em conta que João foi escrito depois do ano 100 EC, esta doutrina seria bastante apelativa para os judeus, pois podiam enveredar por uma fé em que não era necessário fazer sacrifícios animais para o perdão dos pecados.



Quantos sinais?

Se Jesus seria o Messias, haveria quem pedisse provas concretas de que ele seria o tal. Vejamos qual a resposta de Jesus a esta solicitação:

Nenhum sinal
Um sinal
Muitos sinais
Marcos 8:11-12 Saíram os fariseus e começaram a discutir com ele, pedindo-lhe um sinal do céu, para o experimentarem. Ele, suspirando profundamente em seu espírito, disse: Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo que a esta geração não será dado sinal algum.
Mateus 12:38-39 Então alguns dos escribas e dos fariseus, tomando a palavra, disseram: Mestre, queremos ver da tua parte algum sinal. Mas ele lhes respondeu: Uma geração má e adúltera pede um sinal; e nenhum sinal se lhe dará, senão o do profeta Jonas;
Lucas 11:29 Como afluíssem as multidões, começou ele a dizer: Geração perversa é esta; ela pede um sinal; e nenhum sinal se lhe dará, senão o de Jonas;
João 2:11 Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.
João 2:23 Ora, estando ele em Jerusalém pela festa da páscoa, muitos, vendo os sinais que fazia, creram no seu nome.
João 4:54 Foi esta a segunda vez que Jesus, ao voltar da Judeia para a Galiléia, ali operou sinal.
João 6:2 seguia-o uma grande multidão, porque via os sinais que operava sobre os enfermos.    
João 12:37 E embora tivesse operado tantos sinais diante deles, não criam nele;


Temos aqui uma grande diferença de doutrinas nos vários livros:
-          Nenhum sinal: em Marcos, como temos uma doutrina de missão secreta, Jesus começou por afirmar que não daria nenhum sinal para provar que era realmente o Messias. Quem quisesse ser seguidor tinha é que decifrar a sua mensagem enigmática e acreditar nele.

-          Apenas um sinal: em Mateus e Lucas, descobrimos que Jesus indicou que iria mostrar um e um só sinal: o “sinal de Jonas”. Tal como Jonas esteve na barriga do peixe durante três dias, Jesus estaria na morte durante três dias. As pessoas iriam acreditar na mensagem assim que soubessem que ele próprio tinha ressuscitado da morte.

-          Muitos sinais: em João temos a surpresa que, afinal, os sinais que Jesus mostrou foram muitos e bem claros, pois foram presenciados por grandes ajuntamentos. O autor queria “provar” o quão “estúpidos” foram os judeus ao não acreditarem na mensagem de Jesus depois de assistirem a tão claros e expressivos sinais.


E, na verdade, é impossível perceber qual foi realmente o segundo sinal manifestado por Jesus, em João, porque:
-          em João 2:11 é declarado o primeiro sinal: a transformação de água em vinho;
-          em João 2:23 são declarados “muitos sinais” sem os especificar;
-          em João 4:54 é declarado o segundo sinal: a cura do filho de um oficial do “rei” (João chama “rei” a Herodes, quando o título oficial era tetrarca).


Ao longo do texto, são mencionados mais dos “muitos sinais” que Jesus realizou e mostrou (João 3:2; 4:48; 6:14; 7:31; 9:16; 11:47; 12:8; 20:30).

O sinal que “João” descreveu como sendo o primeiro de Jesus foi a transformação de água em vinho durante uma boda onde Jesus era convidado. Não nos debruçando sobre a futilidade deste episódio, porque o que Jesus consegue é apenas ultrapassar o incómodo da falta de vinho durante uma festa, o que interessava ao autor era mostrar que Jesus tinha tanto poder como Dionisos, o deus grego do vinho, ou que Jesus era o próprio Dionisos.




terça-feira, 11 de dezembro de 2012

João vs Sinópticos IV - Eucaristia




Eucaristia

Nos três evangelhos sinópticos, no final da última ceia, Jesus celebra a eucaristia. Esta celebração consiste em comer o pão e tomar o vinho simbolizando o corpo e o sangue do Cristo.

Em João não há relato da celebração da eucaristia na noite da última ceia. Existe apenas o relato de Jesus a lavar os pés dos discípulos, após a ceia, e a discursar longamente. No entanto, numa passagem anterior (fora do contexto da última ceia) é referido por Jesus que “só aquele que come a carne e bebe o sangue do Cristo é que tem salvação” sem haver uma ligação simbólica ao pão e ao vinho.
João 6:53-56 Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele.

Repare-se que nestas declarações não existe o simbolismo do pão e do vinho. Pelo contrário, a utilização do termo “verdadeiramente” reforça a noção que estas deveriam ser entendidas literalmente. No entanto, na sequência desta passagem, Jesus explica que a carne é o espírito e o sangue é a vida. Em todo o caso, “João” não fala em nenhuma celebração simbólica com recurso a pão e vinho, e também não existe qualquer ligação à última ceia. E podemos também dizer que esta doutrina de João foi muitas vezes entendida literalmente pelos perseguidores dos cristãos que, muitas vezes, acusavam estes de práticas canibalísticas.

Por outro lado, o (auto-proclamado) apóstolo Paulo, que conheceu Jesus apenas por visões, disse que recebeu as seguintes instruções para a eucaristia:
1 Coríntios 11:23-25 Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão; e, havendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo pacto no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim.

Esta carta, dirigida à igreja de Corinto, foi escrita antes dos evangelhos. Ora, Paulo não estava presente na última ceia com Jesus. Ele disse aos coríntios que foi o "Senhor" (pressupõe que foi por visão ou revelação) que lhe informou como se praticava a eucaristia (mas as visões só ensinam aquilo que uma pessoa já conhece de antemão...). Então, de onde foi Paulo buscar este ritual de comunhão?

O mitraísmo, originário dos persas, tornou-se um culto muito popular para os romanos nesta época. Em tempos, teve rituais que incluíam o sacrifício de um touro fazendo uso da carne e do sangue, mas posteriormente outros rituais eram acompanhados da seguinte frase ou dizer litúrgico: “quem não comer da minha carne e beber do meu sangue de modo a tornar-se parte de mim e eu parte dele, não terá salvação”. Ora havia um grande centro de culto do mitraísmo em Tarso, a cidade originária de Paulo, o que leva a crer que Paulo é que instituiu a eucaristia e não Jesus. Mas a reverência que os judeus tinham pelo sangue (Levítico 3:17; 7:26; Deuteronómio 12:16, 23) não permitia o seu consumo, como ditaria a liturgia, por isso o passo natural seria adoptar ingredientes substitutos, o pão e o vinho, mas mantendo a simbologia. A utilização de pão e vinho teria a vantagem adicional de ser menos dispendioso e mais discreto do que a utilização de um animal sacrificado.

Tendo em conta que a carta aos coríntios foi escrita por volta de 50 EC, imaginemos os cenários alternativos:
-          Jesus instituiu a eucaristia na noite da última ceia, por volta de 30 EC – então os apóstolos tiveram cerca de vinte anos para ensinar e propagar o ritual da eucaristia antes de Paulo escrever esta carta, e não faria sentido Paulo dizer que foi Jesus que lhe transmitiu numa visão;
-          Jesus não instituiu a eucaristia, Paulo é que instituiu – quando chegou a altura da escrita dos evangelhos, em 70 EC, a eucaristia já era um facto entre os cristãos, por isso foi incorporada no relato dos evangelhos;
-          nem Jesus nem Paulo instituiram a eucaristia – este ritual já era praticado antes pelos adeptos do mitraísmo, uma religião popular entre os romanos, e Paulo apenas a integrou no cristianismo.



Bebeu ou não bebeu?

Nos sinópticos, no final da eucaristia, Jesus promete aos apóstolos que não beberá mais nenhum “produto da videira” até ao dia em que se encontrasse no Reino de Deus.

Marcos
Mateus
Lucas
Marcos 14:25 Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da videira, até aquele dia em que o beber, novo, no reino de Deus.
Mateus 26:29 Mas digo-vos que desde agora não mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que convosco o beba novo, no reino de meu Pai.
Lucas 22:18 porque vos digo que desde agora não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus.


Nos sinópticos, Jesus é verdadeiro com a sua palavras, pois durante o seu caminho para a crucificação, é-lhe oferecido vinho, mas ele recusa.

Marcos
Mateus
Marcos 15:22-23 Levaram-no, pois, ao lugar do Gólgota, que quer dizer, lugar da Caveira. E ofereciam-lhe vinho misturado com mirra; mas ele não o tomou.  
Mateus 27:33-34 Quando chegaram ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer, lugar da Caveira, deram-lhe a beber vinho misturado com fel; mas ele, provando-o, não quis beber.    


No entanto, enquanto estava na cruz, é-lhe oferecido vinagre (vinho acre) para beber, mas, nos sinópticos, não fica claro se Jesus aceitou e bebeu ou se recusou esta oferta.

Marcos
Mateus
Lucas
Marcos 15:36 Correu um deles, ensopou uma esponja em vinagre e, pondo-a numa cana, dava-lhe de beber, dizendo: Deixai, vejamos se Elias virá tirá-lo.
Mateus 27:48-49 E logo correu um deles, tomou uma esponja, ensopou-a em vinagre e, pondo-a numa cana, dava-lhe de beber. Os outros, porém, disseram: Deixa, vejamos se Elias vem salvá-lo.
Lucas 23:36-37 Os soldados também o escarneciam, chegando-se a ele, oferecendo-lhe vinagre, e dizendo: Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.


Em João, fica explícito que ele tomou o vinagre, bebendo-o.
João 19:29-30 Estava ali um vaso cheio de vinagre. Puseram, pois, numa cana de hissopo uma esponja ensopada de vinagre, e lha chegaram à boca. Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. 

Se combinarmos a informação de João com os sinópticos então Jesus não cumpriu a sua palavra ao ter recebido o vinagre para beber, porque vinagre é um “produto da videira”. Mas, como em João não existe o episódio da celebração da eucaristia, também não houve a promessa que Jesus fez de não mais beber do produto da videira.




domingo, 9 de dezembro de 2012

João vs Sinópticos III - Cambistas, Burros e Demónios




Limpeza dos cambistas do templo

Em João é relatado que uma das primeiras intervenções de Jesus, durante a sua vida pública, foi a ida ao Templo de Jerusalém expulsar os comerciantes, por estarem a macular este espaço sagrado (João 2:13-17). A partir deste momento Jesus ainda teve pelo menos dois anos de actividade pública (mais duas páscoas).

Nos evangelhos sinópticos, a expulsão dos mercadores e cambistas do templo é descrita como sendo o caso que promoveu a perseguição de Jesus e a respectiva captura em poucos dias.

Não é verosímil que alguém pudesse entrar no Templo, derrubar mesas de cambistas, supostamente cheias de dinheiro, e não ser imediatamente detido pelos guardas. Isso significava que qualquer pessoa poderia entrar no Templo, assaltar os cambistas e os mercadores e saír tranquilamente. No Templo movimentava-se muito dinheiro e havia uma guarda armada para a protecção deste espaço.

Em João, depois deste episódio, parece que Jesus retorna frequentemente ao Templo e exerce aí a sua actividade (João 5:14; 7:14,28; 8:2,20; 10:23).


Entrada triunfal em Jerusalém

Nos sinópticos Jesus diz aos discípulos para irem buscar (na verdade pediu para eles irem furtar) um burro para ele montar numa entrada triunfal em Jerusalém (Marcos 11:1-6). Em João, é Jesus que acha o burro e monta nele (João 12:12-15).

João 12:12-15 No dia seguinte, as grandes multidões que tinham vindo à festa, ouvindo dizer que Jesus vinha a Jerusalém, tomaram ramos de palmeiras, e saíram-lhe ao encontro, e clamavam: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o rei de Israel!
E achou Jesus um jumentinho e montou nele, conforme está escrito:
Não temas, ó filha de Sião; eis que vem teu Rei, montado sobre o filho de uma jumenta. Respondeu a multidão: Tens demônio; quem procura matar-te?


Demónios e exorcismos

Em João, Jesus não efectua exorcismos, como nos evangelhos sinópticos. Pelo contrário, aqui a palavra “demónio” só aparece quando é utilizada pelos judeus contra Jesus.

João 7:20 Respondeu a multidão: Tens demónio; quem procura matar-te? 
João 8:48-52 Responderam-lhe os judeus: Não dizemos com razão que és samaritano, e que tens demónio? Jesus respondeu: Eu não tenho demónio; antes honro a meu Pai, e vós me desonrais. Eu não busco a minha glória; há quem a busque, e julgue. Em verdade, em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte. Disseram-lhe os judeus: Agora sabemos que tens demónios. Abraão morreu, e também os profetas; e tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra, nunca provará a morte! 
João 10:20-21 E muitos deles diziam: Tem demónio, e perdeu o juízo; por que o escutais? Diziam outros: Essas palavras não são de quem está endemoninhado; pode porventura um demónio abrir os olhos aos cegos?

Ao invés de andar a socorrer aqueles que estavam possuídos por demónios, Jesus é que é acusado, por diversas vezes, de ter demónios!



sábado, 8 de dezembro de 2012

João vs Sinópticos II - Apóstolos




Apóstolos

Em João não existe a distinção entre apóstolos e outros discípulos, todos os seguidores são chamados discípulos. A palavra “apóstolo” nunca ocorre mas existe a menção tímida da expressão “os doze” por quatro vezes:
-          no capítulo 6, em três versículos quase consecutivos (João 6:67, 70, 71) sobre Judas;
-          quando se refere a Tomé (João 20:24) como sendo um dos doze.

O autor nunca enumera quem são “os doze”. Não faz muito sentido que o autor mencione esta expressão sem enumerar quem são esses doze a não ser que a intenção do autor fosse escrever um livro que complementasse outro ou outros; um livro que contasse o que os outros ainda não contaram. Ou, então, o mais importante para o autor seria transmitir que Jesus estava rodeado por doze apóstolos, embora a maior parte destes fossem irrelevantes para a história, conferindo-lhe uma configuração zodiacal, como se rodeado pelos doze signos do Zodíaco.

Nem todas as personagens que nos evangelhos sinópticos são identificadas como apóstolos são sequer referidas em João. Apenas as seguintes personagens foram contempladas na composição de “João”:
-          Simão Pedro é referido em muitas situações;
-          André, irmão de Simão Pedro, é referido como sendo inicialmente discípulo de João Baptista;
-          Filipe também recebe muita atenção na redacção de João;
-          Tomé, é chamado de Gémeo (gr. Didymus, mas em aramaico Tomé significa “Gémeo” também), aparece como céptico sobre a aparição de Jesus;
-          Judas Iscariotes, como nos outros evangelhos, é referido no episódio da traição mas também em passagens anteriores (João 6:71; 12:4; 13:2) constantemente referido como “aquele que o iria traír”; para além disso Judas aqui é tesoureiro do grupo;
-          não há referências directas a Tiago e seu irmão João, sendo apenas referidos como “os filhos de Zebedeu” apenas num versículo que faz parte de uma provável inserção posterior (João 21:2).


Nas passagens onde estes discípulos são referidos, também surgem os seguintes, desconhecidos nos sinópticos mas aparentemente com a mesma importância:
-          Natanael de Caná;
-          um anónimo referido como “o discípulo que Jesus amava”;


Para defender a coerência entre João e os sinópticos, a tradição defende que Natanael é o apóstolo Bartolomeu, sintetizando o nome Natanael bar Tolomeu (filho de Tolomeu), e que o “discípulo que Jesus amava” é o apóstolo João filho de Zebedeu.

“João” conta de uma maneira muito diferente como é que André e Pedro foram recrutados. Diz que André e outro (anónimo) eram inicialmente discípulos de João Baptista e que se juntaram a Jesus. Depois, André foi buscar o seu irmão Pedro. Tudo isto passa-se em Betânia “além do Jordão” (na margem oriental do Jordão) e não na Galiléia. Nunca se menciona que alguns discípulos eram pescadores, a não ser no capítulo 21 (que pensa-se ser, todo o capítulo, uma inserção tardia no Evangelho de João) em que Pedro diz “Vou pescar”.
João 1:28-43 Estas coisas aconteceram em Betânia, além do Jordão, onde João estava batizando. No dia seguinte João viu Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. ...No dia seguinte João estava outra vez ali, com dois dos seus discípulos ... Aqueles dois discípulos ouviram-no dizer isto, e seguiram a Jesus.  ... André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram João falar, e que seguiram a Jesus. Ele achou primeiro a seu irmão Simão, e disse-lhe: Havemos achado o Messias (que, traduzido, quer dizer Cristo). E o levou a Jesus. Jesus, fixando nele o olhar, disse: Tu és Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro). No dia seguinte Jesus resolveu partir para a Galiléia, e achando a Filipe disse-lhe: Segue-me. ...

Para além disso, estes discípulos reconhecem instantaneamente Jesus como sendo o Messias, Filho de Deus e Rei de Israel. Não são nada semelhantes àqueles cépticos apáticos que aparecem nos primeiros capítulos de Marcos.

Os seguintes personagens, identificados como apóstolos nos sinópticos, são completamente ignorados por “João”:
-          Mateus (que no Evangelho Segundo Mateus é o cobrador de impostos);
-          Bartolomeu (sem considerar a tradicional identificação com Natanael);
-          Tiago, filho de Alfeu;
-          Tadeu; mas é mencionado um Judas “não Iscariotes” que aparece fazendo apenas uma pergunta a Jesus (João 14:22); este é, por tradição, o mesmo que o Judas filho de Tiago que aparece em Lucas no lugar de um Tadeu conforme os livros de Marcos e Mateus; estes dois nomes são sintetizados num só: Judas Tadeu;
-          Simão, o zelote (ou cananita);


Como atenuante para “João”, nesta lista de personagens omitidas, se exceptuarmos Mateus, estas têm pouca relevância nos sinópticos. Vejamos, em sinopse, uma comparação dos nomes dos apóstolos nos quatro evangelhos:

Marcos 3:16-19
Mateus 10:2-4
Lucas 6:14-16
João
(*) Simão Pedro 
(*) Simão Pedro
(*) Simão Pedro
(*) Simão Pedro, Cefas
(*) André, irmão de Pedro
(*) André, irmão de Pedro
André, irmão de Pedro
(*) André, irmão de Pedro
(*) Tiago, filho de Zebedeu
(*) Tiago, filho de Zebedeu
(*) Tiago, filho de Zebedeu
Os filhos de Zebedeu (só no capítulo 21)
(*) João, irmão de Tiago
(*) João, irmão de Tiago
(*) João, irmão de Tiago
Filipe
Filipe
Filipe
(*) Filipe
Bartolomeu
Bartolomeu
Bartolomeu
-
Mateus (o cobrador de impostos chama-se Levi, filho de Alfeu)
(*) Mateus, o cobrador de impostos
Mateus (o cobrador de impostos chama-se Levi)
-
Tomé
Tomé
Tomé
(*) Tomé, o Gémeo
Tiago, filho de Alfeu
Tiago, filho de Alfeu
Tiago, filho de Alfeu
-
Tadeu
Tadeu
Judas, irmão de Tiago
(*) Judas “não Iscariotes”
Simão, o cananeu
Simão Cananeu
Simão, o zelote
-
(*) Judas Iscariotes
(*) Judas Iscariotes
(*) Judas Iscariotes
(*) Judas Iscariotes


Neste quadro  estão assinaladas, com um asterisco (*), as personagens com importância na narrativa, isto é, aquelas que intervêm na acção ou no diálogo de cada evangelho e não aquelas que simplesmente são nomeadas. Podemos ver que, em João, as personagens Filipe e Tomé ganham profundidade e os filhos de Zebedeu (supostamente Tiago e João, embora não sejam referidos por nome) perdem notoriedade. E, para mais, os filhos de Zebedeu só são referidos no capítulo final, o capítulo 21 que, certamente, foi adicionado mais tarde.

A diferença mais flagrante é a “despromoção” de Tiago e João, que, juntamente com Pedro, eram os companheiros da máxima confiança de Jesus nos evangelhos sinópticos. Para compensar esta perda de notoriedade, a tradição tratou de afirmar que João foi escrito pelo próprio apóstolo João, filho de Zebedeu, o qual não quis chamar muita atenção para o seu próprio papel no evangelho, escondendo-se no anonimato de “o discípulo amado”.

Completamente obscuros permanecem Tiago filho de Alfeu e Simão Cananeu (ou “o zelote”), no que toca às descrições encontradas no Novo Testamento. No entanto, a elasticidade das narrativas evangélicas, permite uma reconstrução interessante: partindo da lista de irmãos de Jesus, conforme descrita em Marcos, podemos facilmente associá-la à lista de apóstolos, conforme a enumeração de Lucas.


Irmãos de Jesus (Marcos 6:3)
Apóstolos (Lucas 6:14-16)
José
Tomé (aramaico Tôm, gémeo) não era um nome próprio, seria um irmão gémeo de Jesus; portanto, José seria Tomé;
Tiago
Tiago, filho de Alfeu (Alfeu incluido talvez por manipulação da narrativa);
Judas
Judas filho de Tiago, pode ter sido, numa versão anterior de Lucas, “Judas irmão de Tiago”;
Simão
Simão, o zelote


Será que houve, algures no processo de construção das narrativas evangélicas, o desejo de incluir os “irmãos de Jesus” na lista de “apóstolos”? Será que houve, posteriormente, uma tentativa de mascarar esse intuito?