sábado, 3 de dezembro de 2016

Daniel - O Capítulo Selêucida




Daniel, capítulo 11

O livro de Daniel parece uma compilação de falsas profecias que são “desenterradas” à posteriori, isto é, depois dos acontecimentos que supostamente são previstos. A personagem principal, Daniel, presente em grande parte do texto, é descrita como sendo um judeu originário de Jerusalém exilado na Babilónia desde a invasão de Nabucodonosor (597 a.C.) até ao tempo da invasão persa (539 a.C.).

O capítulo 11 de Daniel não foge ao padrão do resto do livro. O autor deste texto parece querer dar a ilusão de que se trata de uma profecia antiga do tempo do rei Dario I (reinou de 522 a 486 a.C., mas na versão Septuaginta do livro, a referência é o reinado de Ciro, antecessor de Dario). Uma clara fraude pois quase certamente terá sido escrito por volta do tempo do rei selêucida Antíoco IV Epifânio (175 a 164 a.C.) ou mais tarde – depois dos acontecimentos que descreve. O detalhe e precisão das profecias aumenta à medida que se aproxima do tempo do rei Epifânio.

No capítulo anterior (Daniel 10) o autor descreve como foi visitado por um ser sobrenatural, um anjo poderoso. Esse anjo propõe-se a falar-lhe sobre o futuro a partir do reinado de Ciro da Pérsia.

No resto do livro de Daniel, o autor demonstra não ter uma boa compreensão dos reis babilónicos e persas, mas definitivamente tem algum conhecimento sobre o império selêucida e sua descrição dos reis Antíoco II Theos até Antíoco IV Epifânio é bastante sólida.


Quatro reis Persas - Artaxerxes I cria intriga entre os gregos

Daniel 11:2
“Agora, pois, vou dar-lhe a conhecer a verdade: Outros três reis aparecerão na Pérsia, e depois virá um quarto rei, que será bem mais rico do que os anteriores. Depois de conquistar o poder com sua riqueza, instigará todos contra o reino da Grécia.”

Aqui o autor mostra um pobre conhecimento sobre a história da Pérsia, mais especificamente sobre a dinastia Aqueménida. Foram muito mais do que quatro reis. Quanto ao rei referido como “o quarto”, parece referir-se a Artaxerxes I.

Depois de uma derrota da Pérsia contra a Liga de Delos (coligação de cidades-estado gregas, incluindo Atenas), a acção militar contra a Grécia parou. Quando Artaxerxes I assumiu o poder, introduziu uma nova estratégia para enfraquecer os atenienses: financiar os inimigos de Atenas dentro da própria Grécia. Isso levou os atenienses a transferir o tesouro da Liga, que se encontrava na ilha de Delos, para a acrópole de Atenas, com a intenção de o salvaguardar. Esta prática levou as outras cidades gregas a desconfiarem de Atenas e a iniciar guerras entre gregos. Temístocles, um general grego que teve vitórias sobre os persas é ostracizado de Atenas e exila-se na Pérsia, acolhido amigavelmente por Artaxerxes.


Alexandre Magno conquista a Pérsia

Daniel 11:3-4
“Então surgirá um rei guerreiro, que governará com grande poder e fará o que quiser. Logo depois de estabelecido, o seu império se desfará e será repartido para os quatro ventos do céu. Não passará para os seus descendentes, e o império não será poderoso como antes, pois será desarraigado e entregue a outros.”

O texto salta cem anos de domínio persa após Artaxerxes, passando para a parte em que Alexandre o Grande esmaga os Persas.
Descreve bem Alexandre, dizendo que o seu império seria breve, sem herdeiros e que iria ser repartido, principalmente entre um reino do sul, o Egipto, e um reino do norte, o Império Selêucida.
O resto do capítulo é dedicado à relação entre os Ptolomeus do Egipto e os Selêucidas - que frequentemente disputavam a Síria e a Palestina - referidos como reis do sul e reis do norte respectivamente.

Com a morte de Alexandre, em 323 a.C., o império conquistado foi dividido entre os seus principais generais, entre os quais:
-          Antigono I Monoftálmico (zarolho) ficou a dirigir uma parte do império centrado na Macedónia;
-          Egipto (reino do sul, no texto de Daniel), a Palestina e a Cirenaica (parte da actual Líbia) ficaram nas mãos de Ptolomeu I Soter (ou Lagus, a cuja dinastia veio a pertencer a famosa Cleópatra VII);
-          os territórios da Ásia ficaram sob o domínio de Seleuco I Nicátor, fundador da dinastia selêucida (reino do norte, no texto de Daniel); posteriormente, por volta de 203 a.C., os selêucidas tomaram a Palestina ao reino Ptolomaico.


As seis Guerras Sírias

Uma série de guerras disputadas na Síria, resultantes da rivalidade entre Ptolomeus e Selêucidas, são chamadas de "guerras sírias". A primeira guerra síria foi disputada entre Ptolomeu II e Antíoco I, tendo encerrado com uma vitória do reino ptolemaico. O texto de Daniel 11 salta esta parte da história.


Antíoco II Theos casa-se com Berenice do Egipto

Daniel 11:5-6
“O rei do sul se tornará forte, mas um dos seus príncipes se tornará ainda mais forte que ele e governará o seu próprio reino com grande poder. Depois de alguns anos, eles se tornarão aliados. A filha do rei do sul fará um tratado com o rei do norte, mas ela não manterá o seu poder, nem ele conservará o dele. Naqueles dias ela será entregue à morte, com sua escolta real e com seu pai e com aquele que a apoiou.”

Aqui o autor alude a um casamento entre uma filha dos Ptolomeus e um rei Selêucida.
Antíoco II Theos (261 a 246 a.C.) entrou em guerra contra o Egipto, mas depois fez a paz com Ptolomeu II Philadelphus, terminando a segunda guerra síria. Para selar o tratado, Antíoco repudiou sua esposa Laódice I, exilando-a em Éfeso, e casou-se com a filha de Ptolomeu, Berenice Phernophoros, recebendo dela um enorme dote.

Como informação adicional, este rei Ptolomeu II foi o responsável pela criação da Septuaginta (ou versão LXX), a tradução grega do Antigo Testamento. Existia uma larga comunidade judaica fluente em grego em Alexandria e, por outro lado, a Judeia fazia parte do império ptolemaico.


Quando Ptolomeu II morre, Antíoco deixa Berenice e o seu filho em Antioquia e volta para a sua primeira mulher em Éfeso, mas Laódice envenena-o e mata-o, criando uma crise de sucessão e precipitando a terceira guerra síria.

Antíoco deixara dois fortes candidados para a sucessão ao trono selêucida: o filho de Laódice e o filho de Berenice. Por um lado, Laódice tinha o apoio da corte selêucida, mas Berenice teria o apoio do lado do Egipto.


Os Ptolomeus ganham território aos Selêucidas

Daniel 11:7-12
“Alguém da linhagem dela se levantará para tomar-lhe o lugar. Ele atacará as forças do rei do norte e invadirá a sua fortaleza; lutará contra elas e será vitorioso. Também tomará os deuses deles, as suas imagens de metal e os seus utensílios valiosos de prata e de ouro, e os levará para o Egito. Por alguns anos ele deixará o rei do norte em paz. Então o rei do norte invadirá as terras do rei do sul, mas terá que se retirar para a sua própria terra. Seus filhos se prepararão para a guerra e reunirão um grande exército, que avançará como uma inundação irresistível e levará os combates até a fortaleza do rei do sul. Em face disso, o rei do sul marchará furioso para combater o rei do norte, que o enfrentará com um enorme exército, mas, apesar disso, será derrotado.”

Laódice I, viúva de Antíoco II Theos, tendo tomado controlo de uma parte do reino, designa o seu filho, Seleuco II Callinicus, como o herdeiro do trono Selêucida. Ptolomeu III Euergetes, irmão de Berenice, invade o Império Selêucida para tentar instalar o seu sobrinho como rei. Ptolomeu obtém grandes vitórias mas, quando chega a Antioquia, Berenice e o filho tinham sido mortos por partidários de Laódice.

Ptolomeu III ocupa Antioquia e Babilónia, pelo que Seleuco Callinicus fica com um império muito mais pequeno que governa a partir de Éfeso.


Antíoco III Megas (o Grande)

É Antíoco III o Grande, filho de Callinicus, que vai recuperar e ampliar a grandeza do Império Selêucida.

Daniel 11:13-19
“Pois o rei do norte reunirá outro exército, maior que o primeiro; depois de alguns anos voltará a atacá-lo com um exército enorme e bem equipado.
Naquela época muitos se rebelarão contra o rei do sul. E os homens violentos do povo a que você pertence se revoltarão para cumprirem esta visão, mas não terão sucesso. Então o rei do norte virá, construirá rampas de cerco e conquistará uma cidade fortificada. As forças do sul serão incapazes de resistir; mesmo as suas melhores tropas não terão forças para resistir. O invasor fará o que bem entender; ninguém conseguirá detê-lo. Ele se instalará na Terra Magnífica e terá poder para destruí-la. Virá com o poder de todo o seu reino e fará uma aliança com o rei do sul. Ele lhe dará uma filha em casamento a fim de derrubar o reino, mas o seu plano não terá sucesso e em nada o ajudará. Então ele voltará a atenção para as regiões costeiras e se apossará de muitas delas, mas um comandante reagirá com arrogância à arrogância dele e lhe dará fim. Depois disso ele se dirigirá para as fortalezas de sua própria terra, mas tropeçará e cairá, para nunca mais aparecer.”

Cerca de 219 a.C., Antíoco o Grande iniciou a quarta guerra síria e retomou muitas das cidades costeiras que antes haviam sido perdidas para os Ptolomeus. No entanto, em 217, ao tentar invadir o próprio Egipto, Antíoco foi derrotado por Ptolomeu IV Philopator e esta guerra terminou.


Por volta de 209 a.C. Antíoco foi para a guerra, a norte, contra a Báctria e venceu depois de um notável cerco à cidade de Bactra. Ainda conquistou territórios da Índia, de onde obteve 150 elefantes.
Com a situação segura a norte, Antíoco virou-se novamente para sul. Antíoco ampliou grandemente o Império selêucida e iniciou uma nova guerra contra os Ptolomeus. Esta seria a quinta guerra síria e desta vez Antíoco varreu a maior parte do império ptolemaico, excepto o Egipto. Tomou a Fenícia e a Palestina.

Em 200 a.C., Antíoco o Grande preparou-se para invadir o Egipto novamente mas, desta vez, os romanos, aliados de Ptolomeu V Epiphanes, ameaçaram-no com guerra. Assim, a quinta guerra síria não incluiu o próprio Egipto.

Note-se que romanos tinham como prioridade, na sua aliança com os Ptolomeus, a defesa do Egipto porque era daqui que Roma recebia grande parte dos seus cereais. O Egipto era o celeiro de Roma e os romanos não queriam que essa ligação fundamental fosse cortada. Os cereais (hidratos de carbono) eram o petróleo (hidrocarbonetos) da antiguidade – era o que permitia a máquina de guerra funcionar – permitia, nomeadamente, movimentar soldados e cavalos.
Para selar a paz com o Egipto, Antíoco daria a sua filha Cleópatra da Síria para casamento com o rei egípcio Ptolomeu V.

Um pouco mais tarde, a expansão de Antíoco para a Grécia o traria em desacordo com Roma. A República Romana bateu os Selêucidas e forçou-os a pagar um pesado tributo como dívidas de guerra.
Antíoco morreu no ano seguinte, em 187, durante um assalto ao templo de Susa, numa tentativa de obter ouro para pagar tributo aos romanos.


Seleuco IV Philopator dedica-se à tributação

Daniel 11:20
“Seu sucessor enviará um cobrador de impostos para manter o esplendor real. Contudo, em poucos anos ele será destruído, sem necessidade de ira nem de combate.”

Seleuco IV Philopator foi o sucessor de Antíoco III O Grande. A sua actuação foi principalmente marcada pela tributação pesada para pagar a dívida aos romanos. Ele enviou o seu ministro Heliodoro para cobrar impostos em todo o império - este ficou recordado pelos judeus pelo seu assalto ao templo de Jerusalém.

A partir do versículo 21, este capítulo de Daniel mostra uma precisão histórica sem paralelo no resto do livro. Mostra que o autor era muito conhecedor da história de Antíoco Epifânio e menos conhecedor da história dos seus antecessores.


Antíoco IV Epiphanes, o desprezível

Daniel 11:21-30
“Ele será sucedido por um ser desprezível, a quem não tinha sido dada a honra da realeza. Este invadirá o reino quando o povo se sentir seguro, e se apoderará do reino por meio de intrigas. Então um exército avassalador será arrasado diante dele; tanto o exército como um príncipe da aliança serão destruídos. Depois de um acordo feito com ele, agirá traiçoeiramente, e com apenas um pequeno grupo chegará ao poder. Quando as províncias mais ricas se sentirem seguras, ele as invadirá e realizará o que nem seus pais nem seus antepassados conseguiram: distribuirá despojos, saques e riquezas entre seus seguidores. Ele tramará a tomada de fortalezas, mas só por algum tempo.
Com um grande exército juntará suas forças e sua coragem contra o rei do sul. O rei do sul guerreará mobilizando um exército grande e poderoso, mas não conseguirá resistir por causa dos golpes tramados contra ele. Mesmo os que estiverem sendo alimentados pelo rei tentarão destruí-lo; seu exército será arrasado, e muitos cairão em combate. Os dois reis, com seu coração inclinado para o mal, sentarão à mesma mesa e mentirão um para o outro, mas sem resultado, pois o fim só virá no tempo determinado. O rei do norte voltará para a sua terra com grande riqueza, mas o seu coração estará voltado contra a santa aliança. Ele empreenderá ação contra ela e depois voltará para a sua terra.
No tempo determinado ele invadirá de novo o sul, mas desta vez o resultado será diferente do anterior. Navios das regiões da costa ocidental [ou "navios de Kittim", referindo-se aos romanos] se oporão a ele, e ele perderá o ânimo. Então despejará sua fúria contra a santa aliança e, voltando, tratará com bondade aqueles que abandonarem a santa aliança.
Suas forças armadas se levantarão para profanar a fortaleza e o templo, acabarão com o sacrifício diário e colocarão no templo o sacrilégio terrível. Com lisonjas corromperá aqueles que tiverem violado a aliança, mas o povo que conhece o seu Deus resistirá com firmeza.
….”

Antíoco IV Epifânio foi o sucessor de Seleuco IV Philopator.
Em rigor, apesar de ser irmão de Seleuco e filho de Antíoco o Grande, Epifânio era um usurpador, uma vez que não figurava como sucessor no testamento do pai nem do irmão. Sua ascensão ao poder foi marcada por assassinatos e intrigas e um par de outros candidatos ao trono tiveram que ser mortos no processo.

Em 170 a.C. o rei do Egipto era Ptolomeu VI Philometor, de apenas quinze anos, filho de Cleópatra da Síria, sobrinho de Antíoco Epifânio. Em seu nome, os ministros egípcios exigiram aos selêucidas a devolução dos territórios da Síria e Palestina mas Epifânio lançou um ataque preventivo contra o Egipto, conquistando tudo menos Alexandria. Esta seria a sexta guerra síria e o Egipto foi fortemente abalado. Essencialmente, Epifânio tomou todo o Império mas, para não alarmar os romanos, deixou os Ptolomeus intactos em Alexandria e retirou-se. Permitiu que Ptolomeu VI continuasse a governar como um rei fantoche às suas ordens.

No caminho de regresso, Epifânio saqueou Jerusalém, instalou um sumo-sacerdote fantoche (chamado Menelau) e dedicou o templo de Jerusalém a Zeus.

Após a retirada de Epifânio, a cidade de Alexandria escolheu um novo rei, um irmão mais novo de Ptolomeu, também chamado Ptolomeu (VIII Euergetes). Os irmãos concordaram em governar o Egipto em conjunto em vez de lutarem numa guerra civil.

Em 168 a.C., tendo perdido o controlo sobre o Egipto, Epifânio decidiu atacar novamente mas, desta vez, os romanos vieram em defesa dos Ptolomeus, enviando uma frota naval ("navios de Kittim" no texto de Daniel). Assim, Antíoco recuou sem invadir o Egipto e, com o seu exército, depois de ter sido bloqueado pelos romanos, saqueou Jerusalém uma segunda vez.

O restante do capítulo 11 simplesmente explica algumas das façanhas de Epifânio, particularmente suas acções em Jerusalém.

No ponto de vista do autor deste texto, Epifânio é uma pessoa muito má pois saqueou Jerusalém duas vezes e causou todos os tipos de problemas para os judeus e para o judaísmo.

O capítulo 12 acaba com uma descrição do fim figurativo de Antíoco Epifânio, o fim da dominação selêucida e o fim de um período turbulento para Jerusalém e para a Palestina.

Epifânio acabou por ser derrotado na Revolta dos Macabeus a qual culminou na criação de um reino independente de judeus, o reino Asmoneu.


Referências:
  - List of Seleucid rulers
  - Ptolemaic dynasty
  - Tradução de Daniel da Septuaginta