Deuses sofredores e salvadores
Existiram cultos de deuses salvadores na antiguidade nos quais se pretendia adorar um herói divino com forma humana. Todos estes cultos tinham algum tipo de herói sobrenatural que teve alguma convivência com os humanos na terra. Não temos nenhuma razão para acreditar que qualquer um desses deuses salvadores existiu na forma de uma personagem da História. Mas em todos esses cultos salvadores os fiéis acreditaram que seu Senhor salvador, através de alguma forma de sofrimento ou sacrifício conquistou as forças da morte, assim garantindo uma vida abençoada, após a morte, aos seus seguidores. Para participarem no culto, os seguidores tinham rituais de batismo ou de refeições sagradas, entre outros. Pode-se observar essa tendência com os cultos de, por exemplo, Inanna, Hércules, Dionísos, Zalmoxis, Mitra e Rómulo.
Assim como não temos evidências de que qualquer um desses heróis realmente existiu também não podemos assumir que Jesus é mais histórico do que esses.
Seria Jesus uma exceção à regra, o único deus salvador sofredor que realmente existiu? Precisamos de evidências de que ele foi uma exceção pois se parece com os outros, sendo uma versão judaica deles, a versão judaica do herói sofredor que conquistou a morte garantindo assim uma vida abençoada após a morte.
Na verdade, não há nenhum atestado claro de que Jesus realmente viveu por parte de qualquer fonte que viveu na época. Os únicos documentos que mencionam Jesus, escritos por alguém vivo na época, nunca o colocam claramente na história real, nomeadamente as cartas de Paulo, Hebreus e 1º Clemente.
Apóstolo Paulo
Como contemporâneo, Paulo estranhamente diz que só conheceu Jesus por visões e pelas escrituras (a Bíblia Hebraica, que Paulo conhecia pela versão grega Septuaginta).
Paulo repetidamente diz que tudo o que sabe sobre Jesus foi lhe dado a conhecer apenas pelas escrituras e revelações: Romanos 10:14-16;16:25-26, Gálatas 1, 1 Coríntios 15 e assim por diante. Paulo diz que recebeu seu conhecimento da ressurreição de Jesus e sobre a eucaristia de Jesus por "revelação diretamente do Senhor". Em outras palavras, Jesus falou diretamente com ele a partir do céu, Paulo não se informou com testemunhas humanas.
Paulo nunca se refere a alguém que tenha sido discípulo de Jesus. A palavra "discípulo" simplesmente não aparece em nenhum escrito de Paulo. E Paulo nunca conheceu Jesus. Paulo, no entanto, refere dois grupos que parece querer distinguir:
- "Apóstolos" - seriam todos os que tiveram uma revelação de Deus ou do Filho de Deus;
- "Irmãos do Senhor" - seriam todos os crentes no Senhor, ou apenas aqueles que teriam atingido algum lugar de destaque.
Paulo nunca identifica uma mãe ou um pai de Jesus. Refere o seu nascimento apenas alegoricamente ou metaforicamente. Quando diz que Jesus nasceu de uma mulher, é no contexto de um argumento alegórico sobre as sementes alegóricas de Abraão e as suas duas mulheres. Paulo diz que todos nascem de Agar, enquanto sob a lei judaica, e depois de Sara quando salvos, libertos, beneficiando da ressurreição de Jesus. Mesmo que Paulo soubesse que Jesus teve uma mãe literal, ele nunca refere isso.
Dentro da mesma linha de pensamento de Paulo, o livro de Revelação refere o nascimento cósmico de Jesus de uma mulher celestial.
É muito estranho o silêncio de Paulo sobre a vida de Jesus, ou sobre quem conviveu com Jesus, apesar de escrever dezenas de milhares de palavras sobre Jesus. Isso seria expectável se Jesus fosse de fato apenas conhecido na imaginação de Paulo, tal como ele alega, "em revelações". Paulo, no entanto admite que outros tiveram revelações antes dele, presumivelmente revelações de Deus ou do Filho de Deus.
A ideia de um Filho de Deus
Na Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento), o deus dos judeus, Yahveh, não tem nenhum filho único ou primogénito. O Antigo Testamento refere em algumas passagens "filhos de deus", provavelmente uma herança de um anterior politeísmo judaico. Mas definitivamente Yahveh não tem um filho especial, único ou primogénito.
Filo de Alexandria, um importantíssimo filósofo judeu, não sendo cristão, revelou que as escrituras escondiam uma informação sobre um filho primogénito de Deus. Os termo usados por Filo são muito semelhantes aos encontrados em várias passagens do Novo Testamento.
A informação de que Deus tinha um filho primogénito seria uma novidade anterior a Paulo. Seria essa a revelação que Deus teria feito aos apóstolos que Paulo admite serem anteriores a ele.
A novidade que Paulo quer trazer é que o Filho de Deus é o Cristo. Paulo acredita que Jesus, a certo ponto, foi transformado em humano, feito a partir da semente de David. Na verdade, ele acredita que Jesus se tornou mortal, foi crucificado e ressuscitou. A questão é que Paulo nunca coloca nenhuma dessas coisas no mundo terreno. Ele retrata a crucificação e o sepultamento como algo que ele tomou conhecimento através das escrituras ou por revelações.
Paulo só refere a existência de testemunhas de Jesus apenas depois da ressurreição (1 Coríntios 15). Não há menção de Jesus aparecer ou ser visto por ninguém antes disso. Para Paulo, Jesus era um ser celestial, envolvido num drama celestial, e não um homem envolvido na história humana. Isto até à sua ressurreição - Jesus morreu e ressurgiu para poder se envolver nos dramas humanos.
O Cristo (ha-Mashiach)
Recuemos uns séculos.
Com a extinção do reino de Israel, por volta de 724 AEC, a identidade israelita foi integrada na identidade de Judá, mas com a queda do reino de Judá, por volta de 587 AEC, as identidades judaica e israelita estavam ameaçadas e os descendentes destes povos ansiaram por um rei "ungido" (abençoado por Deus), eventualmente restaurando a "casa de David".
A palavra "ungido" é "mashiach" em hebraico e "cristo" em grego.
Com a queda do reino de Judá, a elite judaica foi exilada para a Babilónia, residindo aí por décadas. Entretanto, alguns homens trouxeram esperança na restauração da identidade e independência judaica:
- Ciro da Pérsia - derrotou os babilónios, repatriando os judeus para os território original; em Isaías é referido como Cristo/Messias;
- Zorobabel - alegadamente herdeiro da "casa de David", criou a expectativa da restauração de uma linhagem real mas desapareceu sem se saber o seu destino; aparece numa profecia em que Deus declara-o como "escolhido",
- Josué (Jesus), filho de Jozadaque - um sumo-sacerdote, do tempo de Zorobabel, a quem Deus atribui uma coroa;
Entretanto, os judeus perdem novamente a sua independência, sendo sucessivamente submetidos a vários impérios.
Jesus Nazareno
A primeira vez que se refere Jesus numa declaração clara e definitiva de que ele foi um homem que andou pela Terra é nos evangelhos com a personagem de Jesus Nazareno. Mas os evangelhos são de autores desconhecidos que escreveram uma geração mais tarde, numa terra e língua alheias à Palestina, e não citam fontes. Os evangelhos também são manifestamente míticos em estrutura e conteúdo. De fato eles estão cheios de afirmações inacreditáveis e bizarras em cada capítulo e nenhuma das aparentes afirmações históricas sobre Jesus pode ser corroborada.
Todos os autores posteriores, cristãos ou não, tiveram os evangelhos como fonte. E os evangelhos não são fontes independentes. Mateus, Lucas e João são fortemente baseados na narrativa de Marcos.
Os Historiadores
Quanto a Josefo, Tácito, Suetónio e Plinio Jovem, não há nada que seja útil para o estabelecimento de um Jesus histório. Pelo contrário, ou existem claras adulterações ou grosseiros viés de interpretação dos respetivos textos.
Quanto a Hegésipo, para além de ele ser do final do século II, o que ele tem a oferecer são lendas e histórias ainda mais ridículas e absurdas que os evangelhos.
O Filho de Deus é o Cristo
Se Jesus Nazareno tivesse sido realmente histórico, deveria ser muito fácil provar a sua historicidade. Seria muito natural Paulo ter escrito sobre a a vida de Jesus e sobre pessoas que o conheceram em vida e não apenas sobre os que o conheceram apenas após a sua ressurreição. Os fieis das comunidades a que Paulo escrevia deveriam ter curiosidade suficiente para querer saber coisas sobre Jesus Nazareno.
Paulo deveria ter-se ocupado a escrever argumentos a defender a ideia de um desconhecido da Galileia, Jesus Nazareno, ser Filho de Deus e também ser o Cristo esperado.
No entanto todo o esforço argumentativo de Paulo é tentar provar que o Filho de Deus é o Cristo - contra as espectativas judaicas que apontavam que o Cristo teria de ser um líder humano de linhagem da realeza, à imagem de Zorobabel.
Aparentemente, Paulo não tem de provar que Deus tem um Filho, pois esse trabalho já teria sido feito pelos apóstolos anteriores a ele.
O autor de Hebreus (que tem uma doutrina muito semelhante à de Paulo) prefere associar o Filho de Deus à figura de Josué (Jesus), filho de Jozadaque, sumo-sacerdote.