No livro XX das Antiguidades de Josefo há o que poderia ser chamado de uma referência passageira a Jesus em um parágrafo que descreve o assassinato do irmão de Jesus, Tiago, nas mãos de Ananias, o sumo-sacerdote:
Antiguidades Judaicas, XX, 9, 1
... Ananus supôs que tinha agora uma boa oportunidade – Festus estava morto, e Albinus estava viajando – assim ele reuniu o sinédrio dos juízes, e trouxe diante dele o irmão de Jesus, o que era chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros; e quando ele formalizou uma acusação contra eles como infractores da lei; ele os entregou para serem apedrejados; .... Albinus... escreveu iradamente a Ananus, e o ameaçou dizendo que ele seria punido pelo que havia feito; por causa disso, o rei Agripa tirou o sumo sacerdócio dele, quando ele o tinha exercido por apenas três meses, e fez Jesus, filho de Damneus, sumo sacerdote.
Orígenes
Orígenes, Comentário sobre Mateus 10.17
Era tão grande a reputação, entre o povo, que Tiago tinha para a retidão, que Flávio Josefo - que escreveu as 'Antiguidades dos Judeus' em vinte livros - quando desejou expor a causa por que o povo sofreu tão grandes infortúnios, que até o Templo foi arrasado, disse que estas coisas lhes aconteceram de acordo com a ira de Deus por causa das coisas que eles ousaram fazer contra Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo. E a coisa maravilhosa é que, embora ele não tenha aceite Jesus como Cristo, ele ainda deu testemunho de que a justiça de Tiago era tão grande; e ele diz que as pessoas pensavam que haviam sofrido essas coisas por causa de Tiago.
Também referindo-se a Josefo, Orígenes diz, noutro livro:
Orígenes, Contra Celso I.47
[Embora] não acreditando em Jesus como o Cristo, ao buscar a causa da queda de Jerusalém e a destruição do Templo, enquanto ele deveria ter dito que a conspiração contra Jesus foi a causa dessas calamidades que caíram sobre o povo, já que mataram Cristo, que foi profeta, diz, no entanto, embora contra sua vontade, não muito longe da verdade, que esses desastres aconteceram aos judeus como punição pela morte de Tiago, o Justo, que era irmão de Jesus chamado Cristo.
Essas passagens revelam uma possível familiaridade de Orígenes com a referência de Josefo sobre "Tiago, irmão de Jesus chamado Cristo". Como se Josefo tivesse deixado claro que aquele Tiago era o irmão de Jesus Cristo.
Mas onde é que Orígenes foi buscar a "ira de Deus caindo sobre o povo judeu e a destruição de Jerusalém e do Templo por causa do apedrejamento desse Tiago"? Josefo nunca relaciona o apedrejamento daquele Tiago com nenhuma ira divina nem com a destruição de Jerusalém (que ocorreu em 70 EC, na sequência da Grande Revolta dos Judeus). Josefo narra este acontecimento como mais um acontecimento entre muitos outros e nunca o associa especialmente a uma ira de Deus.
Orígenes quer fazer parecer que Josefo escreveu os vinte livros de "Antiguidades Judaicas" só para explicar o ira de Deus pelo martírio de Tiago, irmão de Jesus!
No entanto, Josefo no livro XVIII de "Antiguidades Judaicas", associa a execução de João Batista a uma "ira divina" que se abateu sobre Herodes Antipas.
Antiguidades Judaicas, XVIII, 5, 2
Para alguns judeus a destruição do exército de Herodes pareceu intervenção divina, certamente uma punição pelo tratamento dado a João, o chamado Batista. Porque Herodes condenara-o à morte, mesmo ele tendo sido um homem bom ...
Mas esta "ira divina" que Josefo refere tem a ver com a derrota que o exército de Herodes Antipas teve por volta de 36 EC. Muito antes da destruição de Jerusalém.
Parece claro que Orígenes quis criar uma doutrina. No seu raciocínio, se a execução de João Batista deu origem a uma "ira divina", então o apedrejamento de Tiago, irmão de Jesus Cristo, terá forçosamente causado uma ira de Deus ainda maior com a destruição de Jerusalém e do Templo.
Então Orígenes queria forçosamente que aquele Tiago referido por Josefo fosse o Tiago irmão de Jesus Cristo. Isto porque o episódio do apedrejamento daquele Tiago foi pouco tempo antes da guerra que causou a destruição de Jerusalém.
Orígenes usa a fórmula mágica "Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo" como se fosse um brinquedo novo nas mãos de uma criança.
Por outro lado, Orígenes, provavelmente tinha conhecimento da versão do martírio de Tiago, irmão do Senhor, através palavras de Hegésipo. Mas Hegésipo não se refere a este Tiago como "Irmão de Jesus", mas como "Irmão do Senhor", exatamente a mesma fórmula que Paulo usa em Gálatas 1:19.
A versão de Hegésipo sobre o martírio de um Tiago, Irmão do Senhor, sim, relaciona o evento com a destruição de Jerusalém.
Hegésipo sobre Tiago, Irmão do Senhor
Hegésipo (aprox. 110 - 180 EC) escreveu as suas Memórias em vários livros, dos quais temos umas escassas referências através de Eusébio.
Eusébio, História Eclesiástica, livro II, 23.4-18
Hegésipo, que viveu imediatamente após o apóstolos, dá o relato mais preciso no quinto livro de suas Memórias. Ele escreve o seguinte:
"Tiago, o irmão do Senhor, sucedeu ao governo da Igreja em conjunto com os apóstolos. Ele tem sido chamado de Justo por todos desde o tempo de nosso Salvador até aos dias atuais; pois eram muitos os que tinham o nome Tiago. Ele era santo desde o ventre de sua mãe; e não bebeu vinho nem bebida forte, nem comeu carne. Nenhuma navalha passou por sua cabeça; ele não se ungiu com óleo e não usou o banho. Somente a ele era permitido entrar no lugar santo; pois ele não usava roupas de lã, mas de linho. E ele tinha o hábito de entrar sozinho no templo, e era frequentemente encontrado de joelhos implorando perdão ao povo, de modo que seus joelhos se tornavam duros como os de um camelo, em consequência de constantemente dobrá-los em sua adoração a Deus e pedindo perdão para as pessoas. Por causa de sua grande justiça, ele foi chamado de Justo, e Oblias, que significa em grego, 'Bastião do Povo', e Justiça, de acordo com o que os profetas declaram a respeito dele.Ora, algumas pessoas pertencentes às sete seitas existentes entre o povo, que já foram descritas por mim nestas Memórias, perguntaram a Tiago: 'Qual é a porta de Jesus?' E ele respondeu que Ele era o Salvador. Em consequência desta resposta, alguns creram que Jesus é o Cristo. Mas as seitas antes mencionadas não acreditavam, nem na ressurreição, nem na vinda de alguém para retribuir a cada homem de acordo com suas obras; mas os que creram, creram por causa de Tiago. Assim, quando muitos da classe dominante creram, houve uma comoção entre os judeus, escribas e fariseus, que disseram: ‘Mais um pouco, e teremos todo o povo procurando Jesus como o Cristo’.
Reuniram-se pois ante Tiago, e disseram: ‘Nós te rogamos, refreie o povo: porque eles se desviaram em suas opiniões sobre Jesus, como se ele fosse o Cristo. Rogamos a você que convença a todos os que vieram aqui para o dia da Páscoa, a respeito de Jesus. Pois todos nós te escutamos; visto que nós, bem como todo o povo, prestamos testemunho de que sois justos e não mostramos parcialidade para com ninguém. Portanto, convença o povo a não ter opiniões errôneas sobre Jesus: para todo o povo, e nós também, ouvimos você. Tome sua posição, então, no cume do templo, para que daquele ponto elevado você possa ser visto claramente, e suas palavras possam ser claramente audíveis para todas as pessoas. Pois, a fim de assistir à Páscoa, todas as tribos se congregaram aqui, e alguns dos gentios também.”
Os escribas e fariseus acima mencionados colocaram Tiago no cume do templo, e clamaram a ele, e disseram: “Ó apenas um, a quem todos devemos obedecer, visto que o povo está em erro, e segue Jesus o crucificado, diga-nos qual é a porta de Jesus o crucificado'. E ele respondeu em alta voz: ‘Por que me perguntar a respeito de Jesus, o Filho do Homem? Ele mesmo está sentado no céu, à destra do Grande Poder, e virá sobre as nuvens do céu."
E, quando muitos foram totalmente convencidos por estas palavras, e louvaram o testemunho de Tiago, e disseram: "Hosana ao filho de Davi', então novamente os fariseus e escribas disseram uns aos outros: 'Não fizemos bem em obter este testemunho para Jesus. Mas vamos subir e derrubá-lo, para que tenham medo e não acreditem nele.” E eles gritaram em voz alta e disseram: “Oh! Oh! O próprio justo está em erro.” Assim eles cumpriram a Escritura escrita em Isaías: “Deixe-nos sair com o justo, porque ele nos incomoda; portanto, comerão do fruto das suas ações”. Então eles subiram e jogaram o justo no chão e disseram uns aos outros: ‘Vamos apedrejar Tiago, o Justo’. E começaram a apedrejá-lo: porque ele não foi morto pela queda; mas ele se virou, ajoelhou-se e disse: 'Rogo-te, Senhor Deus nosso Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o que fazem’.
E, enquanto o apedrejavam assim até a morte, um dos sacerdotes, filhos de Recabe, filho de Recabe, de quem o profeta Jeremias dá testemunho, começou a clamar em voz alta, dizendo: ‘Pare! O que você está fazendo!? O justo está orando por nós.” Mas um deles, que era tingidor, pegou o cajado com que costumava torcer as roupas e atirou-o na cabeça do justo.
E assim ele sofreu o martírio; e eles o enterraram no local, e o pilar erguido em sua memória ainda permanece, perto do templo. Este homem foi uma verdadeira testemunha tanto para judeus como para gregos de que Jesus é o Cristo. E imediatamente Vespasiano os sitiou."
A "memória" que Hegésipo conta tem os seguintes pontos principais:
- é sobre um Tiago, Irmão do Senhor (e não irmão de Jesus);
- Hegesipo diz que este Tiago era conhecido como "Justo", para se distinguir dos muitos outros Tiagos (se este Tiago fosse realmente o irmão de Jesus, não seria mais fácil ser conhecido por "Tiago, Irmão de Jesus"?);
- esse Tiago só poderia ser Sacerdote (e não um camponês da Galileia), pois somente a ele era "permitido entrar no lugar santo" do Templo;
- não faz nenhuma referência a um Jesus histórico, Jesus é sempre o "crucificado"
- logo a seguir a este martírio, Vespasiano cercou Jerusalém.
O Tiago das Memórias de Hegésipo seria consistente com o Tiago das Antiguidades Judaicas de Josefo, se realmente este Tiago seria irmão de Jesus ben Damneus que foi nomeado sumo-sacerdote. Então o Tiago referido por ambos os relatos seria de uma família sacerdotal de Jerusalém e não um Tiago de origem camponesa da Galileia.
Conclusão
Orígenes misturou as histórias de Josefo e Hegesipo - as quais eram sobre um Tiago de família sacerdotal - e declarou que esse Tiago agora passava a ser "Irmão de Jesus Cristo".
Ler também:
Referências:
- http://www.earlyjewishwritings.com/text/josephus/ant20.html
- On the Historicity of Jesus - Richard Carrier