Quais são os evangelhos canónicos?
São os primeiros quatro livros do Novo Testamento, com designações abreviadas de Mateus, Marcos,
Lucas e João. Foram aqueles autorizados pela Igreja Católica a
pertencer ao conjunto de 27 textos que hoje compõem o Novo Testamento. O grande mentor deste cânon, ou selecção, foi
talvez o bispo Atanásio de Alexandria, no século IV EC.
Estes quatro livros têm em comum o objectivo de descreverem
a pessoa, missão e obra de Jesus Cristo. Nestes livros encontramos as seguintes
descrições e narrativas sobre Jesus Cristo:
-
baptismo;
-
viagens,
discursos públicos e conversas privadas;
-
curas e
exorcismos;
-
transfiguração
e milagres;
-
última ceia e a eucaristia;
-
traição,
captura, julgamento, execução e sepultamento;
Apesar de hoje observarmos os quatro evangelhos compilados num compêndio chamado Novo Testamento, não foi sempre assim. Durante décadas os evangelhos circularam como obras independentes.
Os autores
Os evangelhos canónicos foram, à partida, escritos anónimos.
Os seus autores não fizeram nenhum esforço para serem reconhecidos, não se
identificando em nenhuma parte do texto que escreveram.
De facto, não existem episódios ou passagens relatados na primeira
pessoa. Ora, se os autores tivessem a intenção de descreverem acontecimentos de um
passado recente, teriam usado construções frásicas do tipo “Eu vi...” ou
“Fulano viu e contou-me que...”. É provável que estes autores tivessem apenas a
intenção de escrever sobre um sistema de ensinamentos e não de relatar acontecimentos do seu tempo, por isso não lhes pareceria necessário nem apropriado
identificarem-se ao longo das suas composições.
Os escritos circulavam sem o título que actualmente ostentam
(Evangelho Segundo ...). A autoria foi atribuída, pela tradição, muito depois
de estarem escritos, aos seguintes autores, segundo a ordem em que figuram no Novo Testamento:
-
Mateus – teria sido escrito pelo apóstolo Mateus,
o cobrador de impostos. Antes de ser conhecido como o Evangelho Segundo
Mateus deveria ser conhecido como o “livro da genealogia de Jesus”, que é a
frase inicial do texto.
-
Marcos – o autor seria um companheiro de viagens
do (auto-proclamado) apóstolo Paulo, que alegadamente teria registado as
memórias do apóstolo Pedro. O livro deveria ser conhecido como o “livro das
boas novas de Jesus”.
-
Lucas – teria sido escrito por um médico que
convivia de perto com Paulo. O autor parece escrever especificamente para
alguém chamado Teófilo, mostrando que talvez não tinha a intenção de escrever
para uma audiência alargada. A tradição indica também que o mesmo autor
escreveu o livro dos Actos dos Apóstolos.
-
João – o autor não se identifica mas designa-se
misteriosamente como o “discípulo que Jesus amava”. A tradição atribui a autoria
ao apóstolo João. Este livro talvez fosse conhecido como “a palavra” (gr. logos), pois é o tema de abertura do
livro. A tradição atribui a este autor também a escrita do livro Revelação (Apocalipse).
Como não existe certeza de quem foram os autores reais dos
evangelhos canónicos, vamos chamar de “Mateus” ao autor do Evangelho Segundo
Mateus e, também “Marcos”, “Lucas” e “João” aos outros autores,
respectivamente do segundo, terceiro e quarto evangelho. Do mesmo modo, vamos
utilizar as designações abreviadas de Mateus,
Marcos, Lucas e João nas
referências às obras escritas.
Fontes para os autores
Antes de começar a escrever, o autor de um texto tem de
recolher informação. Em qualquer processo de recolha de informação, as fontes
utilizadas podem ser as seguintes:
-
o
testemunho ou observação directa;
-
a
ficção ou criatividade;
-
o
relato, oral ou escrito, de outras fontes; por sua vez, estas fontes
podem ser ou testemunhas directas ou usar a sua criatividade ou, então, obter
ainda de outras fontes... e assim por diante...
Ora, os autores dos evangelhos tiveram que começar por fazer
uma recolha de informação. A tradição da Igreja, há muito que incute a ideia de
que cada evangelho foi escrito de forma independente, como se os vários autores
tivessem relatado um conjunto de factos sem terem trocado informação entre si,
insinuando que os autores ou presenciaram directamente os factos ou tiveram
acesso a testemunhas dos factos.
Esta insinuação tira proveito do seguinte princípio: se um
conjunto de factos é relatado independentemente por mais de uma testemunha
então há grande probabilidade destes factos serem verdadeiros.
Mas, na hipótese de ser correcta a tradição sobre a autoria
dos evangelhos bem como sobre a autoria das treze cartas atribuidas a Paulo (catorze,
se considerarmos Hebreus), isto
implicaria que Paulo, um homem que nunca conheceu Jesus fisicamente, seria o
responsável directo ou indirecto pela maior parte dos textos do Novo Testamento, incluindo os seguintes:
-
as
treze cartas de autoria atribuida ao próprio Paulo (mais a Carta aos Hebreus, que algumas correntes tradicionais atribuem a
Paulo);
-
dois
evangelhos que descrevem a vida física de Jesus, Marcos e Lucas, escritos
por autores que nunca viram Jesus e que eram companheiros de Paulo;
-
um
livro sobre a vida dos apóstolos, Actos dos Apóstolos, escrito pelo mesmo autor que escreveu Lucas;
Ou seja, se a tradição estivesse correcta em relação aos
autores de Marcos, Lucas, Actos e das treze cartas (mais a Carta aos Hebreus), teríamos uma grande dependência entre os vários
autores. Portanto a perspectiva tradicional falha na questão da independência
dos autores.
Livros/Cartas
|
Autor segundo
a tradição
|
Autor segundo
o texto
|
Apóstolo Mateus
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Anónimo
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Marcos, um companheiro de Paulo
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Anónimo
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Lucas, um companheiro de Paulo
|
Anónimo
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|
Apóstolo João
|
Anónimo
|
|
Lucas, um companheiro de Paulo
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Anónimo, companheiro de Paulo
|
|
Paulo, apóstolo
|
Paulo, apóstolo
|
|
Paulo, apóstolo
|
Anónimo
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|
Apóstolo Pedro
|
Pedro, apóstolo
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Apóstolo João
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Anónimo (“o idoso”)
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Tiago, irmão de Jesus
|
Tiago
|
|
Judas, irmão de Jesus
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Judas
|
|
Apóstolo João
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João de Patmos
|
Por outro lado, encontramos nos textos de Mateus, Marcos
e Lucas frases muito semelhantes interpoladas com material realmente
original (que só encontramos num dos textos). Isso significa que vários autores
basearam o seu relato no de outrém, apenas acrescentando, subtraindo ou
modificando detalhes. Ou seja, os vários relatos não seriam independentes mas
sim baseados num único original.
Só o texto de João apresenta uma quantidade
apreciável de conteúdo único que não se repete nos outros. Por isso, alguns peritos
nestes assuntos começaram a classificar os evangelhos do Novo Testamento da seguinte forma:
-
João – as fontes de informação usadas para a
composição de João são claramente exclusivas, únicas, tendo pouco em
comum com os outros três.
Portanto, podemos agrupar os primeiros três evangelhos e
fazer uma análise comparativa, porque estes tratam dos mesmos temas. Quando
referidos em conjunto, estes três evangelhos são designados por “evangelhos
sinópticos”.