sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Século I - Tibério Expulsa Judeus de Roma em 19 EC




Tibério Expulsa Judeus de Roma em 19 EC

Com o objetivo de expulsar judeus de Roma, Tibério enviou 4000 homens judeus residentes para serviço militar na Sardenha. O que desencadeou esta resolução foi o caso de uma mulher romana que foi convertida ao judaísmo e, mais tarde, foi defraudada por elementos da comunidade judaica.

Este incidente notável no reino de Tibério, em 19 EC, é mencionado por seis autores da antiguidade, mas com diferentes níveis de detalhe - Flávio Josefo, Filo de Alexandria, Tácito, Suetónio, Cassius Dio e Séneca.

A conversão ao judaísmo de uma mulher romana de elevado estatuto social e a subsequente fraude de que foi vítima por parte de um grupo de vigaristas judeus irritaram tanto Tibério que ele decidiu tomar uma atitude drástica: enviar 4.000 judeus de Roma para serviço militar na Sardenha. Todos os outros judeus deveriam partir da Itália, a menos que renunciassem à sua fé. 

Isto atesta a conversão de "pagãos" ou "gentios" ao judaísmo, possivelmente o mesmo tipo de judaísmo que o apóstolo Paulo pregava nos anos 50! E isto passou-se no ano 19!

O que ficamos a saber através dos relatos sobre este incidente:

 - em 19 EC ou antes, já os judeus de Roma convertiam gentios, incluindo pessoas de elevado estatuto social - muito antes do apóstolo Paulo; 

 - Tibério proibiu cultos estranhos aos costumes romanos - incluindo cultos de judeus e de egípcios;

 - os judeus foram perseguidos em Roma, durante o tempo de Tibério;

 - romanos de famílias prestigiadas, tal como Séneca na sua juventude, durante o reinado de Tibério poderiam ser perseguidos se fossem suspeitos de seguir cultos não romanos, que foram interditos;


Tudo isto é muito similar às histórias de perseguição dos cristãos que se tornaram muito frequentes em épocas posteriores. Só que aqui trata-se de judaísmo e não cristianismo.


Quem escreveu sobre isto

Flávio Josefo (37 a 100 EC), quase contemporâneo de Tibério, é quem descreve com mais detalhe este incidente que ocorreu durante o reinado de Tibério (reinou de 14 a 37 EC):

Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, XVIII, 3, 5

Havia um homem que era judeu, mas foi expulso de seu próprio país por uma acusação contra ele por transgredir suas leis e, por receio, foi punido por isso; mas em todos os aspetos um homem perverso. Ele, então morando em Roma, professou instruir os homens na sabedoria das leis de Moisés. Ele também conseguiu três outros homens, inteiramente do mesmo caráter que ele, para serem seus parceiros. Esses homens persuadiram Fúlvia, uma mulher de grande dignidade, que havia abraçado a religião judaica, a enviar púrpura e ouro ao templo de Jerusalém; e quando os obtiveram, eles os empregaram para seu próprio uso e gastaram eles próprios o dinheiro que exigiram dela. Diante disso, Tibério, que fora informado do caso por Saturnino, marido de Fúlvia, que desejava que fossem feitas investigações a respeito, ordenou que todos os judeus fossem banidos de Roma; ao que os cônsules alistaram quatro mil homens deles e os enviaram para a ilha da Sardenha; mas puniu um grande número deles, que não estavam dispostos a se tornar soldados, por guardarem as leis de seus antepassados. Assim, esses judeus foram banidos da cidade pela maldade de quatro homens.


Cassius Dio (155 a 235 EC) fornece uma pista mais rigorosa para determinar exatamente o ano em que isto ocorreu - foi no consulado de Marcus Junius e Lucius Norbanus, ou seja, 19 EC:

Cassius Dio, livro LVII, 18

... Mais tarde, quando Marcus Junius e Lucius Norbanus assumiram o cargo... 

Como os judeus acorreram a Roma em grande número e estavam convertendo muitos dos nativos aos seus costumes, ele baniu a maioria deles.


Mas Cassius Dio não foi contemporâneo de Tibério.


Séneca (que viveu de 4 AEC a 65 EC) apresenta uma visão circunstancial da sua própria experiência. Ele, na sua juventude (em 19 EC teria uns 23 anos), durante o reinado de Tibério, tornou-se vegetariano, o que poderia ser erradamente interpretado como se ele tivesse adotado um culto estranho aos costumes romanos. Ele corria o risco de vir a ser perseguido, pois os cultos estrangeiros teriam sido proibidos durante o tempo de Tibério:

Séneca, Cartas a Licínio, 108, 22

Fiquei imbuído desse ensino e comecei a me abster de comida animal; ao fim de um ano, o hábito era tão agradável quanto fácil. Eu estava começando a sentir que minha mente estava mais ativa; embora hoje eu não afirme positivamente se realmente foi ou não. Você me pergunta como eu abandonei a prática? Foi assim: Os dias da minha juventude coincidiram com o início do reinado de Tibério César. Alguns ritos estrangeiros estavam então sendo introduzidos, e a abstinência de certos tipos de comida animal foi declarada como uma prova de interesse pelo estranho culto. Assim, a pedido de meu pai, que não temia ser perseguido, mas detestava filosofia, voltei aos meus hábitos anteriores; e não foi muito difícil induzir-me a jantar com mais conforto.


Temos, por outro lado, o testemunho de Filo de Alexandria (20 AEC a 50 EC), que fala das "injustas" penalizações que os judeus sofreram por instigação de Sejano, adjunto de Tibério. Filo foi contemporâneo de Tibério, mas na sua obra "Embaixada a Gaio" está a fazer uma apologia das virtudes dos judeus. Filo também diz que, após a morte de Sejano, em 31 EC, Tibério tentou corrigir o excesso de penalização que os judeus sofreram. Filo quer fazer de Sejano um vilão e de Tibério um herói para os judeus:

Filo de Alexandria, Embaixada a Gaio, 159-161

Portanto, todas as pessoas em todos os países, mesmo que não fossem naturalmente bem inclinadas para a nação judaica, tomaram grande cuidado para não violar ou atacar qualquer um dos costumes judaicos das leis. E no reinado de Tibério as coisas continuaram da mesma maneira, embora naquela época as coisas na Itália estivessem confusas quando Sejano se preparava para fazer seu atentado contra o nosso povo.

Pois ele [Tibério] soube imediatamente após sua morte [de Sejano] que as acusações que haviam sido feitas contra os judeus que moravam em Roma eram falsas calúnias, invenções de Sejano, que estava desejoso de destruir nossa nação, que ele conhecia sozinho, ou acima de todas as outras, provavelmente se oporia a seus profanos conselhos e ações em defesa do imperador, que corria grande perigo de ser atacado, violando todos os tratados e toda a honestidade. 

E ele enviou ordens a todos os governadores de províncias em cada país para confortar os de nossa nação em suas respetivas cidades, visto que a punição que se pretendia infligir não era para ser infligida a todos, mas apenas aos culpados; e eles eram poucos. E ordenou-lhes que não mudassem nenhum dos costumes existentes, mas que os considerassem promessas, visto que os homens eram pacíficos em suas disposições e caráter natural, e suas leis os treinavam e os dispunham à quietude e estabilidade.


Tácito e Suetónio são dois historiadores do fim do século I e início do século II.

Tácito (56 a 120 EC) fala da proibição do culto egípcio e judaico, durante o reino de Tibério, e da aprovação pelo Senado para a expulsão de 4000 homens "infetados com a superstição" sob o pretexto de serviço militar:

Tácito, Anais, Livro II, 85

Também houve um debate sobre a expulsão do culto egípcio e judaico, e uma resolução do Senado foi aprovada para que quatro mil libertos que estavam infetados com essas superstições e eram de idade militar deveriam ser transportados para a ilha da Sardenha, supostamente para reprimir o banditismo local, mas um sacrifício barato caso morressem por causa do clima pestilento. Os demais deveriam deixar a Itália, a menos que antes de um certo dia repudiassem seus rituais ímpios.


Suetónio (69 a 140 EC) também refere a expulsão de judeus sob o pretexto de serviço militar obrigatório:

Suetónio, Vida de Tibério, 36

Ele [Tibério] suprimiu todas as religiões estrangeiras e os ritos egípcio e judaico, obrigando aqueles que praticavam esse tipo de superstição, a queimar suas vestes e todos os seus utensílios sagrados. Ele distribuiu os jovens judeus, sob o pretexto do serviço militar, entre as províncias conhecidas por um clima insalubre; e despediu da cidade todo o resto daquela nação, bem como aqueles que eram prosélitos daquela religião, sob pena de escravidão para a vida, a menos que eles obedecessem. Ele também expulsou os astrólogos; mas após o processo de perdão e prometendo renunciar a sua profissão, ele revogou seu decreto.


O Vídeo



Referências:

 - Josefo, Antiguidades Judaicas - http://www.earlyjewishwritings.com/text/josephus/ant18.html

 - Filo, Embaixada a Gaio - http://www.earlyjewishwritings.com/text/philo/book40.html

 - Cassius Dio, livro LVII - https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/57*.html

 - Tacito, Anais, livro II, 85 - https://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0078%3Abook%3D2%3Achapter%3D85

 - Suetónio, Vida de Tibério, 36 - http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0132%3Alife%3Dtib.%3Achapter%3D36

 - Séneca, Cartas a Licínio, 108, 22 - https://en.wikisource.org/wiki/Moral_letters_to_Lucilius/Letter_108

 - The Expulsion of Jews from Rome under Tiberius - Elmer Truesdell Merrill: https://www.jstor.org/stable/263501?seq=1#metadata_info_tab_contents

 - Were the Jews Banished from Rome in 19 A.D.? Ernest L. Abel - https://www.persee.fr/doc/rjuiv_0484-8616_1968_num_127_4_1609



domingo, 19 de dezembro de 2021

Evangelhos - O Hipotético Evangelho Q


 


Hipótese da Dupla Fonte para Mateus e Lucas

Os académicos que estudaram o Novo Testamento notaram que Mateus, Marcos e Lucas tinham uma estrutura narrativa muito semelhante. Por isso começaram a chamar estes três evangelhos de "sinópticos".

Por outro lado, também viram que existiam discursos ou ditos de Jesus em Mateus e Lucas que não existiam em Marcos. Por isso propuseram a hipótese da “Dupla Fonte” que sustenta que foram utilizadas as duas seguintes fontes para a criação dos evangelhos Mateus e Lucas:

-          Marcos – considerada a fonte da estrutura narrativa, comum aos sinópticos, da vida pública de Jesus;

-          Q – uma outra fonte, designada por Evangelho Perdido Q (do alemão “Quelle” - “fonte”), cujo conteúdo seriam os textos que se encontram simultaneamente em Mateus e Lucas (cerca de 200 versículos) mas que não se encontram em Marcos. Trata-se de um texto hipotético, pois jamais foi encontrado um manuscrito com este conteúdo, o qual pode ter sido uma colecção de pensamentos e dizeres de Jesus, com pouca ou nenhuma estrutura narrativa. Também é designado por Evangelho dos Dizeres Q.


Esta hipótese é baseada em três premissas:
1) Marcos forneceu a estrutura narrativa para a composição de Mateus e Lucas, porque:
-          MateusMarcos e Lucas têm semelhança na sequência narrativa e concordam por vezes ao nível da composição de frases;
-          em algumas passagens Mateus concorda com Marcos, mas não com Lucas;
-          em algumas passagens Lucas concorda com Marcos, mas não com Mateus;
-          Mateus e Lucas quase nunca concordam em composição e sequência, embora concordem em conteúdo, exceptuando material encontrado também em Marcos.


2) é que os autores, “Mateus” e “Lucas”, criaram os seus trabalhos independentemente, isto é, “Mateus” não conhecia o trabalho de “Lucas” e vice-versa.

3) como também há semelhança em material comum a Mateus e Lucas, e que não existe em Marcos, a terceira premissa é que teria de haver uma segunda fonte comum à qual foi dado o nome de Evangelho Q.




Referência web: Fonte Q (wikipedia).

Para além de material proveniente da “Dupla Fonte”, tanto Mateus como Lucas apresentam também material exclusivo. Material exclusivo, neste caso, não quer dizer material original. Por exemplo, o Antigo Testamento é extensivamente utilizado em Mateus, constituindo também uma importante fonte.


Contra o Evangelho Q

Mateus e Lucas são demasiado parecidos para terem sido redigidos de modo independente com base em Marcos e "Q", pois, para além destes conteúdos, também:

- ambos têm uma natividade

- ambos têm uma genealogia

- ambos têm uma narrativa pós-ressurreição


Estes três tipos de conteúdos não estão previstos no hipotético Evangelho Q.

Portanto Mateus e Lucas não podem ser independentes. Como é que dois autores se lembram de forma independente estruturar a sua obra da mesma maneira: com uma natividade, uma genealogia, semelhante estrutura narrativa, semelhantes dizeres de Jesus, e uma narrativa pós-ressurreição?
A hipótese mais sã é que Lucas é dependente de Mateus. Seria assim:

-          Marcos – foi redigido para defender que o cristianismo não era um simples ramo do judaísmo e, portanto, poderia ser seguido por não judeus (num texto particularmente orientado para romanos); os seguidores do cristianismo não necessitariam de seguir normas judaicas; Jesus ilustra uma certa ruptura com o judaísmo.

-          Mateus – o autor, que provavelmente pertenceria a uma comunidade judaica, pegou no texto de Marcos e alterou o sentido para mostrar que, afinal, o cristianismo era uma continuação do judaísmo; quem quisesse ser cristão teria de ser judeu ou converter-se ao judaísmo; Jesus é uma personagem que só faz sentido no universo judaico.

-          Lucas – este autor pegou no texto de Mateus criando uma nova versão para novamente defender que o cristianismo seria uma doutrina para não judeus (orientado para gregos); Jesus teria cortado com o judaísmo, principalmente nas regras demasiado penalizadoras para as mulheres. Pegou também nas ideias de Mateus sobre a natividade, a genealogia e a narrativa pós-ressureição e desenvolveu esta 



Referências:
 - Mark Goodacre - The case against Q