O Codex Sinaiticus
O Codex Sinaiticus é um antigo manuscrito bíblico, descoberto em 1844, pelo historiador alemão Von Tischendorf, num mosteiro na península do Sinai.Escrito em grego, em meados do século IV, o Codex Sinaiticus é a versão completa mais antiga do Novo Testamento já encontrada.
Existem cópias mais antigas e fragmentos de livros individuais do Novo Testamento, mas esta é a compilação mais antiga dos mesmos 27 livros.
Importante para o assunto que vamos aprofundar aqui é que o Codex Sinaiticus inclui dois livros adicionais pouco conhecidos e que não são encontrados nas bíblias cristãs modernas: a Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas.
O Pastor de Hermas
O Pastor de Hermas foi um dos textos mais populares entre os primeiros cristãos. Importante o suficiente para ganhar um lugar no Codex Sinaiticus, junto dos Evangelhos e das cartas de Paulo.
É um livro longo e complexo. Manuscritos antigos normalmente o dividem em três secções.
Secção I - Visões
As visões têm como cenário Roma e arredores. Concentram-se no protagonista da narrativa, um ex-escravo chamado Hermas.
No início do livro, Hermas encontra sua antiga senhora, uma mulher chamada Rhoda, banhando-se nua no rio Tibre. Neste momento, Hermas tem um pensamento sobre ela, que o narrador descreve como sendo inocente mas, mais tarde, Rhoda aparece do céu e o repreende alegando que ele teve pensamentos lascivos, pecaminosos.
Este encontro fez com que Hermas entrasse numa ansiedade emocional questionando-se como poderia ser salvo ou se Deus iria perdoar os seus pecados. Então uma outra mulher aparece para lhe mostrar uma série de visões que ele deveria registar para que outros em Roma pudessem ler. Hermes pensa que ela é uma famosa profetisa de Nápoles, mas o leitor percebe que a mulher personifica a Igreja (eventualmente de Roma).
A visão que Hermas recebe da Igreja utiliza a imagem de uma torre em construção. Nesta visão, os crentes são descritos como pedras que são boas o suficiente ou não boas o suficiente para serem usadas na construção da torre. Algumas pedras estão prontas para serem adicionadas à torre, algumas precisam de ser retificadas e outras são descartadas. A chave para essa visão é que Deus oferece tempo para arrependimento ou mudança de mente para se remodelar e se ajustar para a construção da torre.Este tema de arrependimento antes que o tempo se esgote ocorre repetidas vezes em todo o Pastor de Hermas.
Secção II - Mandamentos
Neste ponto, há uma mudança na narrativa. Ainda temos um narrador em primeira pessoa, mas ele não é mais explicitamente referido como Hermas. Este narrador anónimo é abordado por um novo parceiro de conversa divino, o anjo do arrependimento, com a aparência de um pastor, daí de onde vem o título do livro.
O pastor manda o narrador anotar todos os mandamentos e parábolas que vai lhe dar, pois serão edificantes e levarão ao seu arrependimento. O pastor discute uma enorme variedade de tópicos: crença em deus, sinceridade, pureza, casamento, raiva, autocontrole, profecias verdadeiras e falsas, desejos maus e bons.
Uma das imagens mais famosas dos mandamentos são os dois anjos, o anjo da justiça e o anjo da maldade, que podem viver dentro de uma pessoa e influenciar suas ações e comportamentos. Essa imagem evoluiu para o famoso anjo e diabo que se imagina guiarem as decisões pessoais.Neste livro os crentes não são chamados de cristãos, mas são referidos como pessoas escravizadas a Deus, levantando questões sobre como os primeiros cristãos entendiam o que o relacionamento com o divino poderia ou deveria ser.
Secção III - As Similitudes (Parábolas)
As Similitudes também são conhecidas como parábolas. O pastor e o narrador anónimo continuam a sua conversa com parábolas sobre os crentes. Parábolas de árvores frutíferas e videiras e uma história muito parecida com as parábolas de Jesus sobre uma pessoa escravizada trabalhando numa vinha e recebendo a liberdade como recompensa por seu trabalho.
Também encontramos uma versão ampliada e remodelada da visão da torre que Hermas experimentou com a Igreja, mas desta vez ocorrendo numa região montanhosa na Grécia, de onde as pedras para a torre estão sendo extraídas.
O livro termina com um anjo ainda maior aparecendo, encorajando o narrador a espalhar a mensagem dos encontros que ele acabou de ter e que o Pastor permanecerá com ele para sempre para ajudá-lo a cumprir todos os mandamentos que recebeu.
História
O livro mal se encaixa na narrativa típica que vemos noutras literaturas cristãs primitivas. Não há referência a Jesus. Há um personagem filho de deus em alguns pontos, mas até ele precisa ser salvo para fazer parte da torre (da Igreja). Não há citações ou referências à Bíblia Hebraica ou relação com outros textos do Novo Testamento. Em vez disso, há apenas uma citação para um livro do qual nunca ouvimos falar, o Livro de Eldad e Modot. Não há histórias dos apóstolos e suas aventuras. O único outro nome judaico ou cristão reconhecível é o anjo Miguel, que faz uma breve aparição.
Mas apesar de tão aparentemente desconectado de outra literatura cristã, este livro ocupou uma posição de destaque nas mentes e na vida ritual dos primeiros cristãos.
O Pastor de Hermas terá sido composto no final do primeiro ou início do segundo século, já que seu conteúdo parece depender um pouco das cartas de Paulo e é citado pela primeira vez por Irineu na década de 170.
A autoria do Pastor também não é direta. É possível que parte do texto tenho sido escrita por alguém chamado Hermas. O texto não é claro nisso.
O género do livro poderia ser rotulado como um texto apocalíptico porque investe em incitar seus leitores a se arrependerem antes do último dia (eschaton), como vimos naquela visão sobre ser incorporado à construção e conclusão da torre, mas o texto também tem muito material moralizante que é não tão claramente ligado ao conceito do fim dos tempos, parecendo mais um código de conduta para o dia-a-dia.
Provas materiais do livro
O livro terá sido escrito originalmente em grego, mas no século II foi traduzido para o latim no norte de África. Pelo século IV, cristãos egípcios traduziram para o copta (língua egípcia em cuja escrita se usa caracteres gregos) e espalharam o texto pelos mosteiros egípcios do sul. No século VI, o Pastor chegou a ser traduzido em língua etíope e permaneceu um texto proeminente entre os cristãos da Etiópia até à era moderna. Por volta dos séculos VII ou VIII, o Pastor também foi traduzido para o árabe, embora essa tradução infelizmente esteja perdida. Finalmente, foi traduzido para o persa médio e usado nas comunidades maniqueístas.
Apesar da versão original do Pastor ter sido a grega, as outras versões são úteis tanto para preencher as lacunas nos manuscritos gregos, que não possuem os últimos capítulos, quanto para revelar como os cristãos da Europa, África e Ásia usavam o texto.
Vemos indícios de como diferentes tradições deram sentido ao texto. Um manuscrito etíope afirma que Paulo o escreveu; a versão georgiana diz que Santo Efrém o escreveu, e um texto grego argumenta que a secção chamada de mandamentos foi dita pelo bispo de Alexandria Atanásio.
Uso do texto
Irineu, no livro "Contra Heresias", cita o texto como sendo escritura e autoritário. Cristãos alexandrinos proeminentes como Clemente e Orígenes também o consideravam autoritário.
No entanto, Tertuliano não concordou com a ideia de um longo prazo para um arrependimento: o texto dá aos humanos tanto tempo para se arrependerem que Tertuliano argumentou que a excessiva brandura poderia levar ao adultério e ao pecado. Portanto, já no segundo século, o texto era motivo de controvérsia.
Nos séculos IV e V, embora o cânon do Novo Testamento já estivesse praticamente solidificado, o Pastor ainda era muito importante. Escritores como Eusébio, Atanásio e Jerónimo notaram que o Pastor era usado nas igrejas e usado para educar novos cristãos.
Até mesmo no período medieval, ainda se faziam cópias por toda a Europa e Ásia. O Pastor era usado até mesmo como autoridade numa coleção medieval irlandesa (Hibernensis) de direito canônico que considerou os comentários do mandamentos sobre divórcio e novo casamento muito significativos.
Então, aparentemente, tanto os primeiros cristãos quanto os cristãos medievais acharam o conteúdo ético e as histórias do pastor benéficos para suas próprias vidas. E pelo menos alguns cristãos primitivos acharam suas histórias artisticamente valiosas também. Nas catacumbas de São Gennaro em Nápoles pode-se encontrar uma representação de uma cena do Pastor: três mulheres recolhendo pedras da pedreira para a construção de uma torre.Tertuliano também menciona que alguns cristãos do norte de África gravavam imagens alusivas ao Pastor em seus cálices.
O esquecimento
O Pastor de Hermas caiu em desuso em diferentes momentos e diferentes lugares ao redor do Egito e do Levante, bem como em outras áreas do oriente de língua grega, o pastor tornou-se menos abundante nos séculos VII e VIII.
Inicialmente, grandes figuras como Irineu o consideraram como escritura, mas quando o cânon do Novo Testamento começou a solidificar, algumas autoridades da igreja o relegaram a um segundo status. Por exemplo, o patriarca Atanásio do século IV argumentou que o Pastor era um texto útil apenas para instruir novos fiéis.
Eusébio também relata que o Pastor foi contestado por muitos. As autoridades cristãs neste campo provavelmente trabalharam para manter o Pastor fora das compilações do Novo Testamento.
Contudo, na Europa Ocidental as versões latinas continuaram a circular até ao século XV e, na Etiópia, o pastor permaneceu um texto proeminente até ao século XVIII.
Referências:
- http://www.earlychristianwritings.com/shepherd.html
- http://monergismo.com/wp-content/uploads/Pastor_de_Hermas.pdf
- https://www.youtube.com/watch?v=oX3Oi8j5AzY