A história segundo Flávio Josefo
Muitos dos acontecimentos desta época e região estão apenas
registados nas obras de Flávio Josefo, nomeadamente as obras Guerras dos Judeus, com sete volumes, e Antiguidades Judaicas, com vinte
volumes.
Flávio Josefo, originalmente Yussef ben Matatias, nasceu em
Jerusalém por volta de 37 EC e era de uma família da aristocracia sacerdotal.
Aos 19 anos tornou-se um notável fariseu e aos 30 participou na Grande Revolta
Judaica de 66 a 67 EC, como líder militar na Galileia. Quando a vitória dos
romanos se tornou evidente, Josefo preferiu ser capturado pelas tropas romanas,
do que participar num pacto suicida entre os seus companheiros de guerra. De prisioneiro
rapidamente passou a protegido do general (depois imperador) romano Flávio
Vespasiano e do filho Flávio Tito e, devido a isso, adoptou o nome destes.
Pouco depois da queda de Jerusalém, seguiu Tito até Roma e lá recebeu a
cidadania romana, uma pensão, assim como o livre acesso à corte de Tito e de
Domiciano.
Josefo via esta revolta dos judeus mais como uma guerra
fraticida do que de libertação nacional. Descreveu muitos confrontos entre
facções rivais de judeus e parece que estes matavam mais compatriotas do que
romanos. Obteve os favores da família Flaviana, porque predisse que o rei do
mundo inteiro, aquele que as profecias antigas diziam que viria de Israel, seria
o próprio Vespasiano que, realmente, tornou-se imperador quando chegou a Roma vindo...
da Judeia!
Vespasiano seria um Messias até para os próprios judeus, porque trouxe-lhes
ordem e salvou-os da auto-aniquilação. Assim, Josefo imitou Isaías que, no seu
tempo, também profetizou que um estrangeiro,
Ciro da Pérsia, seria o Messias,
rei do mundo.
A
Guerras dos Judeus,
escrita cerca de 74 EC, é a história dos Judeus desde o tempo da
revolta dos Macabeus, em 165 AEC, até à destruição de Jerusalém em 70 EC. Mais tarde, cerca
de 94 EC, Josefo escreveu
Antiguidades
Judaicas que seria uma espécie de complemento da primeira obra, cobrindo a
história dos judeus desde o tempo da Criação até ao começo da guerra. Josefo
também escreveu uma obra autobiográfica onde defendia a sua posição
colaboracionista em relação ao poder romano.
Vejamos um resumo dos acontecimentos históricos, acompanhados
pelas possíveis datas:
Data
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Acontecimentos
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37 AEC
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Herodes (o Grande), com o apoio de Marco António e do
senado romano, torna-se Rei dos Judeus, dominando sobre um território de dimensões
semelhantes ao reino Asmoneu.
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27 AEC
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César Augusto torna-se imperador romano.
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4 AEC
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Morte de Herodes o Grande (Josefo menciona uma eclipse
lunar), o reino é dividido em três partes.
Herodes Antipas fica governador (tetrarca) da Galiléia
e Peréia.
Herodes Arquelau torna-se Rei dos Judeus (etnarca),
com os territórios da Judeia e Samaria.
Herodes Filipe é governador da Ituréia.
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6 EC
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Herodes Arquelau é expulso e a Judeia torna-se
provincia romana, governada pela Síria.
Quirinius, governador da Síria, organiza um
recenseamento para a colecta de impostos.
Judas Galileu (ou Gaulanita) promove uma revolta
contra os romanos.
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14 EC
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Morte de César Augusto. Tibério torna-se imperador.
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26 EC
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Pilatos torna-se governador da Judeia. No meio das
descrições de Josefo sobre Pilatos aparece o famoso “Testimonium Flavianum”.
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29 EC
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(15º ano de Tibério. O capítulo 3 de Lucas refere que
Jesus tinha 30 anos por volta desta data. Foi provavelmente a partir deste
relato que foi criado o calendário que actualmente utilizamos.)
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36 EC
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Herodes Antipas divorcia-se de Fasaelis, filha do rei
nabateu Aretas IV Filopatris, e casa-se com Herodias, sua sobrinha e
ex-cunhada.
João Baptista censura publicamente Antipas e é preso.
Provavel data da morte de João Baptista.
Pilatos termina o seu mandato como procurador (ou
prefeito) da Judeia.
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37 EC
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Aretas IV entra em guerra contra Herodes Antipas, por
disputas territoriais, e derrota-o.
Os romanos vêm em auxílio de Herodes e derrotam
Aretas.
Morte de Tibério. Calígula torna-se imperador.
Nasce Flávio Josefo.
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39 EC
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Calígula depõe Herodes Antipas e coloca o seu amigo
Agripa I (neto de Herodes o Grande e irmão de Herodias), como rei da Judeia e
Galiléia (até morrer, em 44 EC).
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56 EC
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Herodes Agripa II, torna-se rei da Judeia (até 95 EC).
Exerce o poder com o auxílio de prefeitos romanos.
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66 EC
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Início da Grande Revolta dos Judeus contra os romanos.
Josefo é comandante militar na Galiléia. Vespasiano é comissionado por Nero
para conter a revolta.
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67 EC
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Josefo rende-se a Vespasiano, na Galiléia, em
Jotapata.
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68 EC
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Em Roma, Nero é condenado à morte e opta pelo suicídio.
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69 EC
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O império romano ameaça desmoronar-se: três
imperadores governam e são assassinados (Galba, Oto e Vitélio). Vespasiano torna-se imperador em Roma.
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70 EC
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Tito derrota os judeus em Jerusalém. O Templo é
destruido.
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73 EC
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A última bolsa de resistência judaica é derrotada em
Masada.
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75 EC
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Josefo escreve Guerras
dos Judeus.
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94 EC
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Josefo escreve Antiguidades
Judaicas.
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O "Testimonium Flavianum"
Josefo escreveu até alguns detalhes sobre o mandato de
Poncio Pilatos como governador da Judeia, mas a única menção específica sobre
Jesus Cristo é a seguinte:
Antiguidades Judaicas, XVIII, 3, 3
Por volta deste tempo [da revolta dos judeus contra
Pilatos devido ao financiamento de um aqueduto com dinheiro do Templo], existiu
Jesus, um homem sábio, se é lícito chamá-lo de homem, pois ele fez coisas maravilhosas,
um professor de homens que recebiam a verdade com prazer. Ele fez discípulos
tanto entre os judeus como entre os gentios. Ele era o Cristo. E quando
Pilatos, seguindo a sugestão dos líderes entre nós, condenou-o a ser
crucificado, os que o amaram não o esqueceram; porque ele lhes apareceu vivo de
novo no terceiro dia, tal como haviam predito os divinos profetas estas e
milhares de outras coisas maravilhosas a respeito dele. E a tribo dos cristãos,
assim chamados por causa dele, não se extinguiu até hoje.
Esta passagem das Antiguidades
Judaicas, que é designada por “Testimonium Flavianum”, é uma das provas
apresentadas pelos defensores da existência de um Jesus Cristo histórico. No
entanto, existem muitos factos que contrariam esta posição, nomeadamente:
-
segundo
os evangelhos, Jesus era famoso e muito popular na Galiléia; por outro lado, Josefo
viveu na Galiléia num tempo muito próximo da época em que supostamente Jesus
teria lá vivido mas “escreveu” apenas umas poucas linhas acerca de Jesus; para
contrastar descreveu demoradamente Judas da Galiléia (ou o Gaulanita), um homem
que promoveu uma rebelião em 6 EC (Guerras II.8.1; 17.8 e Antiguidades
XVIII.1.1-6);
-
o “Testimonium
Flavianum” menciona Jesus em termos
bastante elogiosos, reconhecendo que ele era o Cristo; no entanto, não há nada
que indique que Josefo se tenha tornado cristão ou, de alguma forma, seguidor
de Jesus;
-
se
Josefo considerasse que este Jesus, alegadamente executado por Pilatos, era o
Cristo e tinha ressuscitado, certamente teria investigado mais e teria feito
uma descrição mais detalhada sobre Jesus;
-
“... e
a tribo dos cristãos não se extinguiu até hoje” – quanto tempo é que já tinha
durado essa “tribo” na perspectiva de Josefo?
-
esta
passagem foi referida por Eusébio, um dos fundadores da Igreja Católica, no seu
livro História da Igreja (século IV),
mas outro apologista cristão do século III, Orígenes, que também fez uso da
literatura de Josefo nunca cita esta passagem;
Por estas razões, o “Testimonium Flavianum” parece mais uma
inserção do que uma passagem genuina e original do autor. É igualmente possível
que esta passagem tenha surgido por corrupção de uma passagem existente de modo
a dar algum suporte à existência de um Jesus Cristo histórico.
Sobre João Baptista
Para contrastar, Josefo menciona João Baptista com mais
detalhe e de um modo que se pode considerar genuíno, na seguinte passagem:
Antiguidades Judaicas, XVIII, 5, 2
Para alguns judeus a destruição do exército de Herodes
pareceu intervenção divina, certamente uma punição pelo tratamento dado a João, o chamado Batista. Porque Herodes condenara-o à morte, mesmo ele tendo sido um
homem bom e tendo exortado os judeus a levar uma vida correcta, praticar a
justiça para com o próximo e a viver piamente diante de Deus, e fazendo por se
batizar; porque a lavagem seria aceitável para ele, se o fizessem não para o
perdão de pecados mas apenas para a purificação do corpo; pressupondo uma alma previamente
purificada por uma conduta de rectidão. Quando outros também se juntaram à
multidão em torno dele, pelo facto de que eles eram agitados ao máximo pelos
seus sermões, Herodes ficou alarmado. Eloquência com tão grande efeito sobre os
homens poderia levar a alguma forma de sedição. Porque dava a impressão de que
eles eram liderados por João em tudo que faziam. Herodes decidiu então que
seria melhor agir antes, executando João, do que arrepender-se mais tarde. Por esta
suspeita de Herodes, João foi trazido acorrentado a Machaerus, a fortaleza de
que falamos antes, e lá executado. Porém o veredicto dos Judeus era de que a
destruição que atingiu o exército de Herodes foi um castigo, um sinal de
desagrado de Deus.
Herodes Ântipas divorciou-se da filha de Aretas, rei árabe,
para casar com Herodias, provocando a guerra com o país vizinho. Por outro lado
aprisionou e executou João Baptista por recear que este se tornasse um forte
adversário. Josefo diz que alguns judeus achavam que a derrota militar
infligida a Herodes por Aretas tinha sido um castigo divino por aquele ter
executado João Baptista.
Nesta descrição não há nada de extraordinário ou de
fantasioso e, por isso, podemos nos assegurar que João Baptista terá sido uma
personagem histórica com uma descrição similar àquela que nos é dada pelos
evangelhos. No entanto a descrição de Josefo sobre João Baptista e sobre a
relação de inimizade com Herodes Antipas coincide apenas superficialmente com
aquela encontrada nos evangelhos.
Josefo diz:
-
João
baptizava, não para o perdão de pecados, mas para a purificação do corpo;
-
Herodes mandou encarcerar e executar João
Baptista porque receava que João Baptista fosse um líder agitador que pudesse
fazer-lhe frente;
Os evangelhos dizem:
-
João
baptizava para o perdão dos pecados (Marcos 1:4);
-
Herodes
mandou encarcerar João Baptista porque não gostou que este criticasse o seu
casamento com Herodias e ordenou a sua execução por sugestão da sua nova esposa
(Marcos 6:21-28);
Não obstante estas diferenças subtis, podemos dizer que o
relato de Josefo sobre João Baptista é genuino e coincide com o dos evangelhos.
Já o “Testimonium Flavianum” coincide com os evangelhos mas não parece ter nada
de genuíno.
Sobre Tiago, alegado irmão de Cristo
Uma segunda passagem de Josefo, habitualmente utilizada em
defesa da existência física de Jesus, refere sem grandes detalhes “o irmão de
Jesus, o que era chamado Cristo, cujo nome era Tiago”:
Antiguidades Judaicas, XX, 9, 1
Cesar [Nero?], tendo ouvido sobre a morte de Festus,
enviou Albinus à Judeia, como procurador. Mas o rei [ Agripa II ] privou José
do sumo sacerdócio, e outorgou a sucessão desta dignidade ao filho de Ananus
[ou Ananias], que também se chamava Ananus. ... Mas este Ananus mais jovem,
que, como já dissemos, assumiu o sumo sacerdócio, era um homem temperamental e
muito insolente; ele era também da seita dos Saduceus, que são muito rígidos ao
julgar ofensores, mais do que todos os outros judeus, como já tinhamos dito
anteriormente; quando, portanto, Ananus supôs que tinha agora uma boa
oportunidade – Festus estava morto, e Albinus estava viajando – assim ele
reuniu o sinédrio dos juízes, e trouxe diante dele o irmão de Jesus, o que era chamado Cristo, cujo nome era Tiago e alguns outros; e quando ele formalizou
uma acusação contra eles como infractores da lei; ele os entregou para serem
apedrejados; .... Albinus... escreveu iradamente a Ananus, e o ameaçou dizendo
que ele seria punido pelo que havia feito; por causa disso, o rei Agripa tirou
o sumo sacerdócio dele, quando ele o tinha exercido por apenas três meses, e
fez Jesus, filho de Damneus, sumo sacerdote.
Josefo descreve um episódio ocorrido por volta de 62 EC, em
que alegadamente figura Tiago irmão de Jesus Cristo.
Esta passagem dá apenas importância à demissão de Ananias do cargo de sumo-sacerdote por ter executado um grupo de homens sem ter recorrido à autoridade romana. De Josefo ficamos a saber muito sobre Festus, Albinus e Ananias mas sobre este Tiago, irmão de um tal Jesus chamado Cristo, ficamos a saber apenas que foi acusado de infracções e que foi apedrejado junto com outros homens.
Como Josefo não descreveu inequivocamente este Tiago, nem os outros homens que foram apedrejados, estes poderiam ser quaisquer uns. Este Tiago não era necessariamente
o irmão de Jesus Nazareno referido em Marcos 6:3.
A expressão “
o que era chamado Cristo” é, certamente,
uma inserção porque se Josefo a tivesse utilizado teria desenvolvido sobre o
facto de chamarem “Cristo” a este irmão de Tiago. E o nome Jesus era muito comum. O mais provável é que
este Tiago seria irmão de Jesus, filho de Damneus, que acabou por ser escolhido para sumo-sacerdote assim que este grave incidente foi resolvido pelo governador Albinus e pelo rei Agripa.