domingo, 1 de dezembro de 2019

Século I - O incêndio de Roma de 64 EC

 



Será que Nero culpou mesmo os cristãos sobre o incêndio de Roma? Nero é habitualmente retratado pelo folclore cristão como um anti-Cristo. Mas será que faz sentido?


Tácito (c. 56 a 120 EC)

O autor Tácito (c. 56 a 120 EC) escreveu sobre os imperadores romanos desde Augusto até Domiciano, cobrindo mais de cem anos de história do Império Romano. Numa das suas obras, escrita por volta de 116 EC, aparece a seguinte passagem (acerca do incêndio de Roma do ano 64 EC):
Anais, XV, 44 
... Nenhum esforço humano, nem os gestos de generosidade do imperador [Nero], nem os ritos destinados a aplacar [a ira] dos deuses, faziam cessar o boato infame de que o incêndio havia sido planeado nas altas esferas. Assim, para tentar abafar esse boato, Nero acusou, culpou e entregou às torturas mais deprimentes um grupo de pessoas que eram detestadas pelo seu comportamento, popularmente chamados "cristãos".
Este nome provém de Cristo, que no tempo de Tibério foi condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos. Reprimida por pouco tempo, essa abominável superstição surgiu novamente, não apenas na Judeia, o seu lugar de origem, mas também em Roma, onde tudo aquilo que há de mau e vergonhoso no mundo chega e se espalha.


Esta passagem é apresentada como defesa de um Jesus histórico. Mas vejamos os problemas:
-          Tácito escreveu cerca de oitenta anos depois da suposta crucificação de Jesus; nesta época já os cristãos (e os não-cristãos) possuíam as narrativas evangélicas;

-          este autor não menciona um homem com um nome próprio Jesus, mas um homem que era conhecido pelo título de Cristo; e no primeiro século haviam muitos a reclamar o título de Cristo (Messias);

-          refere-se a Pilatos como procurador e não como prefeito (para um historiador romano seria uma grande diferença); um procurador respondia diretamente perante o Senado ou ao Imperador, enquanto um prefeito respondia a um governador;

-          Tácito não escreve sobre Pilatos em mais lugar nenhum em toda a sua enorme obra; parece que só escreveu sobre Pilatos para completar a sua observação sobre a crucificação de Jesus; no entanto, de acordo com com Josefo e Filo de Alexandria, Pilatos participou em episódios muito mais significativos do que a crucificação de um homem, pois envolveu-se em confrontos com grandes grupos de revoltosos causando muitas vítimas mortais entre estes revoltosos; 

-          em 64 EC os cristãos não eram suficientemente conhecidos ou relevantes para serem apontados por Nero como culpados do incêndio de Roma; nesta altura seria muito difícil para um romano distinguir entre um judeu e um cristão; seria mais provável que Nero tivesse apontado a culpa aos judeus;

-          a passagem não é citada por nenhum dos grandes apologistas cristãos dos primeiros séculos, incluindo (pasme-se!!!) Eusébio (século IV);


No tempo de Nero (imperador de 54 a 68 EC) os cristãos ou eram judeus ou eram pessoas muito chegadas a comunidades judaicas. Qualquer observador externo às comunidades judaicas não conseguiria distinguir um judeu cristão de um judeu não cristão.

Por outro lado, Tácito acreditava que os judeus eram uma ameaça eterna para a civilização greco-romana. Ao relatar a Primeira Guerra dos judeus contra os romanos, que decorreu entre 66 e 73 EC, no livro V de Histórias, diz:

Histórias - Livro V

4. ... Os judeus consideram profano tudo o que consideramos sagrado; por outro lado, permitem tudo o que abominamos ...

5. Os outros costumes dos judeus são vis e abomináveis, e devem sua persistência à sua depravação ...

Os judeus são extremamente leais uns aos outros, e sempre prontos para mostrar compaixão, mas para com todas as outras pessoas eles sentem apenas ódio e inimizade ...

Embora, como raça, sejam propensos à luxúria, eles se abstêm de relações sexuais com mulheres estrangeiras; no entanto, entre eles nada é proibido ...

Eles acreditam que as almas daqueles que são mortos em batalha ou pelo carrasco são imortais: daí vem sua paixão por gerar filhos, e seu desprezo pela morte ...

8. ... Enquanto o Oriente estava sob o domínio dos assírios, medos e persas, os judeus eram considerados os mais mesquinhos de seus súditos: mas depois que os macedônios ganharam a supremacia, o rei Antíoco se esforçou para abolir a superstição judaica e introduzir a civilização grega ... mas eles fomentaram a superstição nacional ...

13. um povo que, embora propenso a superstição, se opõe a todos os ritos propiciatórios


Com esta evidência é óbvio que no tempo de Tácito os judeus eram tema de controvérsia, mas os cristãos ainda não marcavam a agenda política dos romanos, como podemos averiguar pelo testemunho de Plínio, contemporâneo de Tácito. Muito menos seria provável que os cristãos fossem um tema político no tempo de Nero, umas décadas antes de Tácito escrever as suas obras.

Por isso, quando Tácito escreveu sobre o incêndio de Roma, terá alegado que Nero imputou a responsabilidade aos judeus e não aos cristãos, independentemente de isso ser uma informação verdadeira ou falsa. Mais tarde, algum escriba quando copiou as obras de Tácito terá substituído "judeus" por "cristãos", inserindo um mini-evangelho ("Jesus foi crucificado por Pilatos" é o tema central de qualquer evangelho).

Então uma possível reconstrução da passagem de Tácito sobre o incêndio de Roma seria assim:

Anais, XV, 44 
... Nenhum esforço humano, nem os gestos de generosidade do imperador [Nero], nem os ritos destinados a aplacar [a ira] dos deuses, faziam cessar o boato infame de que o incêndio havia sido planeado nas altas esferas. Assim, para tentar abafar esse boato, Nero acusou, culpou e entregou às torturas mais deprimentes um grupo de pessoas que eram detestadas pelo seu comportamento, [os judeus ?]. popularmente chamados "cristãos".
Este nome provém de Cristo, que no tempo de Tibério foi condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos.
Reprimida por pouco tempo, essa abominável superstição surgiu novamente, não apenas na Judeia, o seu lugar de origem, mas também em Roma, onde tudo aquilo que há de mau e vergonhoso no mundo chega e se espalha.


Pouco tempo depois do incêndio de Roma, começou a Primeira Guerra dos judeus contra os romanos, em 66 EC. Foi uma guerra de fanatismos, o que não abonou nada a favor dos judeus.

Com a guerra de Kitos (115-117 EC), contemporânea de Tácito, as vozes contra o judaísmo tornaram-se ainda mais numerosas no mundo romano. Este evento, já tardio na vida de Tácito, poderá não ter influenciado as suas obras, mas é denunciante do quanto as comunidades judaicas poderiam já ser fonte de uma grande tensão para os cidadãos romanos.

No século IV EC, Eusébio de Cesareia, que escreveu sobre a História da Igreja, não cita Tácito para referir as perseguições de Nero (História Eclesiástica livro II, capítulo 25) nem sequer algo relacionado com o incêndio de Roma.


Referências:

  - http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Tacitus/Annals/15B*.html

  - http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Tacitus/Histories/5A*.html

  - https://www.judaism-and-rome.org/eusebius-caesarea-ecclesiastical-history-ii251-5

  - Eusebius, Church History, Book II


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