domingo, 15 de novembro de 2020

Livro dos Reis - Qemosh derrota Yahveh




Qemosh derrota Yahveh

Esta história é simples: o deus Yahveh de Israel foi derrotado, pelo menos uma vez, pelo deus Qemosh de Moabe. 

O contexto é uma guerra entre Israel e Moabe ocorrida em meados do século IX AEC. Moabe era, neste tempo, um estado vassalo de Israel. O resultado dessa guerra foi a vitória de Moabe que, consequentemente, ganhou a independência.


Yahveh é o único deus?

Os cristãos alegam que existe um Deus - o deus da Bíblia - omnipotente e omnisciente. Ora, o deus da Bíblia chama-se Yahveh. Portanto, consideram que Yahveh é poderoso e invencível.

Desconsiderando a incoerência da Trindade (porque, claramente, quem crê nisto é politeísta), os cristãos também alegam que não existe mais nenhum Deus para além do Deus da Bíblia. Este argumento é baseado exclusivamente no que está escrito na... Bíblia.

Na Bíblia, por exemplo, está escrito que Deus criou o mundo. Mas a descrição desse evento faz parte de mitos mais antigos do que a Bíblia e não se enquadra no conhecimento científico que dispomos hoje em dia.

A Bíblia também diz que Deus provocou pragas de gafanhotos e de sapos e dividiu o Mar Vermelho para ajudar um grupo de crentes a escapar da opressão. Uma narrativa muito pobre para provar as características superiores desse Deus!

Também muitos religiosos apontam as profecias "infalíveis" de Deus como a suprema demonstração da superioridade de Deus - omnisciência para prever eventos e/ou omnipotência para conduzir esses eventos. Mas se fosse esse o caso, todas as profecias da Bíblia teriam se tornado realidade. Mas não. Basta só ler a Bíblia.

Quando se fala de deuses falsos, os crentes alegam que ou são deuses inexistentes/fictícios ou seres espirituais malévolos a que chamam demónios.


Qemosh

Mas vamos agora falar sobre uma divindade mencionada na Bíblia várias vezes. Qemosh era reverenciado especialmente pelos moabitas, mas foi também introduzido em Jerusalém por Salomão, o mais "sábio" dos reis de Israel.

O Rei Salomão era, segundo a Bíblia, claramente politeísta. O primeiro livro dos Reis, no capítulo 11, diz:

Primeiro Livro dos Reis, capítulo 11

E o rei Salomão amou muitas mulheres estrangeiras, e isso além da filha de Faraó, moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e heteias, das nações de que Yahveh tinha dito aos filhos de Israel: Não entrareis a elas, e elas não entrarão a vós; de outra maneira, perverterão o vosso coração para seguirdes os seus deuses. A estas se uniu Salomão com amor. E tinha setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração. Porque sucedeu que, no tempo da velhice de Salomão, suas mulheres lhe perverteram o coração para seguir outros deuses; e o seu coração não era perfeito para com Yahveh, seu Deus, como o coração de Davi, seu pai, porque Salomão andou em seguimento de Astarote, deusa dos sidônios, e em seguimento de Milcom, a abominação dos amonitas. Assim fez Salomão o que era mau aos olhos de Yahveh e não perseverou em seguir a Yahveh, como Davi, seu pai. Então, edificou Salomão um alto a Qemosh, a abominação dos moabitas, sobre o monte que está diante de Jerusalém, e a Moloque, a abominação dos filhos de Amom. E assim fez para com todas as suas mulheres estrangeiras, as quais queimavam incenso e sacrificavam a seus deuses.

Pelo que Yahveh se indignou contra Salomão, porquanto desviara o coração de Yahveh, Deus de Israel, o qual duas vezes lhe aparecera.


Nesta passagem, o rei Salomão, retratado aqui com um pouco de viés, como tendo se tornado politeísta devido à sua senilidade, parece, por outro lado, ter sido um marido tolerante para com as crenças das suas mulheres. 

Quer tenha sido pelo seu próprio politeísmo, quer tenha sido por respeito pela vontade pessoal das suas esposas, Salomão criou um espaço para elas praticarem a sua fé muito para a frustração dos futuros escribas "monoteístas" que não parecem negar os eventos, mas sentem-se compelidos a colori-lo com desdém, acrescentando que Yahveh se indignou com Salomão, mas viu-se impotente para o impedir (ficou só indignado...).

Na descrição encontrada no Livro de Reis, entre os deuses - para os quais Salomão criou um espaço de adoração - está Qemosh, referido como abominação de Moabe, que era para os moabitas o mesmo que Yahweh era para os israelitas.


A Pedra Moabita

Uma das evidências que temos sobre a importância de Qemosh para os moabitas é a Pedra Moabita descrevendo o poder de Qemosh pelo rei Mesha de Moabe (século IX AEC):

Pedra Moabita, escrita pelo rei Mesha de Moabe

Eu, Mesha, filho do Deus Qemosh, rei de Moabe, o dibonita. Meu pai reinou sobre Moabe por trinta anos e eu sucedi-lhe. E eu construí este santuário para Qemosh em Karchah, pois Ele salvou-me de todos os agressores, e fez-me triunfar sobre os meus inimigos. Omri, rei de Israel, oprimiu Moabe por muito tempo, e Qemosh irou-se com as suas agressões. Seu filho [Acabe] sucedeu-lhe e também disse "Vou humilhar Moabe". [...]  Disse ele nos meus dias e eu vi meu desejo sobre ele e Israel foi humilhado com a humilhação eterna [...]

Omri tomou a terra de Madeba, e ocupou-a e também o seu filho, por quarenta anos. E Qemosh teve misericórdia da terra no meu tempo. E eu construí Baal-meon e fiz-lhe uma cisterna, e construí Kiriathaim. E os homens de Gade habitaram no país de Atarote desde tempos antigos e o rei de Israel fortificou Atarote. Eu assaltei a muralha e capturei-a, e matei todos os guerreiros da cidade para deleite de Qemosh e Moabe, e levei os despojos para oferecer a Qemosh de Kiriate; e aí coloquei os homens de Siran e Mochrath. 

E Qemosh disse-me "Toma Nebo a Israel", e eu fui na noite e lutei contra ela desde o amanhecer até o meio do dia, e tomei-a: e matei sete mil homens mas não matei as mulheres e donzelas, mas devotei-as a Ashtar-Qemosh; e retirei as taças de Yahveh, e ofereci-as a Qemosh. E o rei de Israel fortificou Jahaz, e ocupou-a, quando fez guerra contra mim, e Qemosh expulsou-o por mim, e eu trouxe de Moabe duzentos homens, e coloquei-os em Jahaz, e tomei-a para anexar a Dibon. 


O rei Mesha de Moabe declara que pôs fim a quarenta anos de opressão e humilhação por parte Israel (reis Omri e Acabe), recuperando a independência de Moabe.

Mesha descreve as suas várias vitórias, as matanças associadas, as terras tomadas a Israel e atribui tudo isso à glória de Qemosh. Ele até descreve que tomou posse dos tesouros de Yahveh de Israel e trouxe-os para Qemosh, implicando vitória sobre Yahveh.

Mas isto até pode parecer um testemunho muito parcial. Sendo a versão dos eventos contada pelo rei Mesha de Moabe, claro que ele iria cantar a sua vitória e dizer que Qemosh derrotou Yahveh no sentido que Moabe derrotou Israel.


Os Livros dos Reis da Bíblia

Pode ser argumentado que uma luta entre homens não é bem uma luta entre os deuses. Mas vejamos o que a outra parte do conflito tem a dizer, na Bíblia, em 2º Reis, capítulo 3:

Segundo Livro dos Reis, capítulo 3

E Jorão, filho de Acabe, começou a reinar sobre Israel, em Samaria, no décimo oitavo ano de Josafá, rei de Judá; e reinou doze anos. E fez o que era mau aos olhos de Yahveh; porém não como seu pai, nem como sua mãe; porque tirou a estátua de Baal, que seu pai fizera. Contudo, aderiu aos pecados de Jeroboão, filho de Nebate, que fizera pecar a Israel; não se apartou deles.

Então, Mesha, rei dos moabitas, era contratador de gado e pagava ao rei de Israel cem mil cordeiros, e cem mil carneiros com a sua lã. Sucedeu, porém, que, morrendo Acabe, se revoltou o rei dos moabitas contra o rei de Israel. Por isso, Jorão, ao mesmo tempo, saiu de Samaria e fez revista de todo o Israel. E foi e enviou a Josafá, rei de Judá, dizendo: O rei dos moabitas se revoltou contra mim; irás tu comigo à guerra contra os moabitas? E disse ele: Subirei e eu serei como tu, o meu povo, como o teu povo, e os meus cavalos, como os teus cavalos. E ele disse: Por que caminho subiremos? Então disse ele: Pelo caminho do deserto de Edom.

E partiu o rei de Israel, e o rei de Judá, e o rei de Edom; e andaram rodeando com uma marcha de sete dias, e o exército e o gado que os seguia não tinham água. Então, disse o rei de Israel: Ah! Que Yahveh chamou a estes três reis, para os entregar nas mãos dos moabitas. E disse Josafá: Não há aqui algum profeta de Yahveh, para que consultemos Yahveh por ele? Então, respondeu um dos servos do rei de Israel e disse: Aqui está Eliseu, filho de Safate, que deitava água sobre as mãos de Elias. E disse Josafá: Está com ele a palavra de Yahveh. Então, o rei de Israel, e Josafá, e o rei de Edom desceram a ele.

Mas Eliseu disse ao rei de Israel: Que tenho eu contigo? Vai aos profetas de teu pai e aos profetas de tua mãe. Porém o rei de Israel lhe disse: Não, porque Yahveh chamou estes três reis para os entregar nas mãos dos moabitas. E disse Eliseu: Vive Yahveh dos Exércitos, em cuja presença estou, que, se eu não respeitasse a presença de Josafá, rei de Judá, não olharia para ti nem te veria. Ora, pois, trazei-me um tocador de harpa. E sucedeu que, quando o harpista tocou, veio sobre ele a mão de Yahveh. E disse: Assim diz Yahveh: Fazei neste vale muitas covas. Porque assim diz Yahveh: Não vereis vento e não vereis chuva; todavia, este vale se encherá de tanta água, que bebereis vós e o vosso gado e os vossos animais. E ainda isto é pouco aos olhos de Yahveh; também entregará ele os moabitas nas vossas mãos. E ferireis todas as cidades fortes, e todas as cidades escolhidas, e todas as boas árvores cortareis, e tapareis todas as fontes de água, e danificareis com pedras todos os bons campos. E sucedeu que, pela manhã, oferecendo-se a oferta de manjares, eis que vinham as águas pelo caminho de Edom; e a terra se encheu de água.

Ouvindo, pois, todos os moabitas que os reis tinham subido para pelejarem contra eles, convocaram a todos os que cingiam cinto e daí para cima e puseram-se às fronteiras. E, levantando-se de madrugada, e saindo o sol sobre as águas, viram os moabitas defronte deles as águas vermelhas como sangue. E disseram: Isto é sangue; certamente que os reis se destruíram à espada e se mataram um ao outro! Agora, pois, à presa, moabitas! Porém, chegando eles ao arraial de Israel, os israelitas se levantaram, e feriram os moabitas, os quais fugiram diante deles; e ainda os feriram nas suas terras, ferindo ali também os moabitas. E arrasaram as cidades, e cada um lançou a sua pedra em todos os bons campos, e os entulharam, e taparam todas as fontes de águas, e cortaram todas as boas árvores, até que só em Quir-Haresete deixaram ficar as pedras, mas os fundeiros a cercaram e a feriram. Mas, vendo o rei dos moabitas que a peleja prevalecia contra ele, tomou consigo setecentos homens que arrancavam espada, para romperem contra o rei de Edom, porém não puderam. Então, tomou a seu filho primogênito, que havia de reinar em seu lugar, e o ofereceu em holocausto sobre o muro; pelo que houve grande indignação em Israel; por isso, retiraram-se dele e voltaram para a sua terra.


Os versículos que conduzem a este episódio relatam que Mesha, rei de Moabe mas subjugado por Israel, decidiu parar de pagar o tributo anual de cem mil cordeiros e cem mil carneiros ao rei de Israel.

O rei de Israel, furioso, reuniu os seus soldados e, junto com o rei da Judeia e o rei de Edom, marchou contra Moabe. Combinaram atacar Moabe pelo sul, via Edom.

Durante a marcha, o exército teve falta de água e os reis começaram a achar que a investida iria falhar. Entretanto, os três reis consultaram o profeta Eliseu (sucessor de Elias) que lhes profetizou que, mesmo não chovendo, iria aparecer água em abundância para o exército e para os seus animais e que Yahveh iria garantir a vitória contra Moabe.

No dia seguinte, a água aparece milagrosamente sem chuva. O exército fica a salvo da sede e avança sobre Moabe e os moabitas fogem da coligação dos três reis.

A narrativa prossegue alegando que a coligação israelita destruiu algum território moabita até que finalmente encontraram Mesha, o rei de Moabe. Mesha reúne 700 soldados e vai ao encontro do rei de Edom mas falha. 

Aqui a narrativa fica confusa porque diz que o rei de Moabe sacrificou alguém para Qemosh (não se percebe se era o filho do rei de Edom ou se era o filho do próprio rei Mesha). Mas o momento mais interessante é que, implicitamente, Qemosh intercedeu na batalha. É dito que, como resultado desse sacrifício humano, "uma grande ira veio sobre Israel" causando a retirada da coligação israelita sem a derrota de Moabe, contrariando a profecia de Yahveh revelada pelo profeta Eliseu.

Esta narrativa é um pouco diferente da narrativa da Pedra Moabita. Mas ambas narrativas admitem que os moabitas venceram com uma vitória atribuível a Qemosh. Por outro lado, o registo de Mesha não inclui nenhuma referência a um sacrifício humano. De facto, Mesha parece muito orgulhoso de quão bem as coisas correram, enquanto a narrativa de 2º Reis admite um constrangimento em que a profecia de Yahveh foi anulada pelas acções de outro Deus.

Então a conclusão é que Yahveh falhou e, portanto, ele não é omnipontente. A narrativa bíblica admite que Qemosh foi mais forte que Yahveh.