Os autores de Mateus e Lucas, em algumas passagens, não se limitaram a copiar as frases encontradas em Marcos. Algumas alterações ao texto revelam a intenção de simplesmente o embelezar, mas outras revelam a intenção de modificar a doutrina apresentada em Marcos.
Com ou sem bastão?
O exemplo que veremos a seguir, embora relacionado com um
pormenor sem importância, mostra como as contradições ou inconsistências
aparecem até mesmo em textos com pouca importância teológica, ou de cuja
importância não nos apercebamos:
Marcos
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Mateus
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Lucas
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Marcos 6:8-9 ordenou-lhes que nada levassem para o
caminho, senão apenas um bordão; nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto;
mas que fossem calçados de sandálias, e que não vestissem duas túnicas.
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Mateus 10:9-10 Não vos provereis de ouro, nem de
prata, nem de cobre, em vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de
duas túnicas, nem de alparcas, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do
seu alimento.
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Lucas 9:3 dizendo-lhes: Nada leveis para o caminho,
nem bordão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas.
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Em Marcos, Jesus
diz para os apóstolos nada levarem para o caminho, excepto um bastão. Em Mateus e Lucas, o bastão está incluido nos objectos que não podem levar.
Aqui podemos formular duas hipóteses:
-
em Marcos
a frase era inicialmente semelhante à que existe nos outros evangelhos, mas
houve um erro nas cópias de Marcos
que chegaram até aos nossos dias;
-
ou, então, “Mateus” e “Lucas”, não perceberam o
porquê de proibir tantos objectos mas permitir um bastão, por isso resolveram
corrigir aquilo que pensaram ser um erro de Marcos.
Os apóstolos e os milagres dos pães
Segundo Marcos e Mateus, o “milagre da multiplicação dos
pães” ocorreu duas vezes, enquanto em Lucas
só há uma ocorrência:
-
no primeiro milagre (Marcos 6:35-44; Mateus
14:15-21; Lucas 9:12-17) são alimentados cinco mil homens (ou famílias, pois
eram contadas pelo número de homens adultos) a partir de cinco pães e dois
peixes; no fim sobraram doze cestos
cheios;
-
no
segundo milagre (Marcos 8:1-9; Mateus 15:32-38) são alimentados quatro mil
homens a partir de sete pães e “alguns peixinhos”; no fim sobraram sete cabazes
cheios.
Imediatamente após o primeiro “milagre dos pães”, o relato de
Marcos prossegue com o episódio de
Jesus a andar sobre água, e mostra que os apóstolos ainda estavam aturdidos sem
perceber o que se tinha passado no “milagre dos pães”, quanto mais para
perceber que raio fazia Jesus a caminhar sobre as águas.
Marcos
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Mateus
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Marcos 6:51-52 E subiu para junto deles no barco, e o
vento cessou; e ficaram, no seu íntimo, grandemente pasmados; pois não tinham
compreendido o milagre dos pães, antes o seu coração estava endurecido.
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Mateus 14:32-33 E logo que subiram para o barco, o
vento cessou. Então os que estavam no barco adoraram-no, dizendo: Verdadeiramente
tu és Filho de Deus.
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Para “Mateus”, os apóstolos tinham de ser crentes de
primeira linha e não cépticos apáticos como o que se vê descrito em várias
passagens de Marcos, por isso mostra
que os apóstolos renderam-se e glorificaram Jesus com palavras de louvor.
“Lucas” omite a passagem em que Jesus caminha sobre a água,
mas esta omissão faz parte de um grande bloco de passagens chamado de “grande
omissão de Lucas”, por isso não se pode concluir se esta omissão é uma censura
directa a esta passagem ou se foi por outro motivo. Iremos detalhar este
assunto da “grande omissão de Lucas” mais à frente.
Mas, no segundo milagre dos pães, a descrição de Marcos e Mateus leva a crer que os apóstolos eram mesmo homens de pouca fé,
para além de terem uma memória muito curta, porque perguntaram a Jesus onde ir
buscar comida para a multidão.
Marcos
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Mateus
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Marcos 8:1-9 ... chamou Jesus os discípulos e
disse-lhes: Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que eles
estão comigo, e não têm o que comer. Se eu os mandar em jejum para suas
casas, desfalecerão no caminho; e alguns deles vieram de longe. E seus
discípulos lhe responderam: Donde poderá alguém satisfazê-los de pão aqui no
deserto? ...
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Mateus 15:32-38 Jesus chamou os seus discípulos, e
disse: Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que eles estão
comigo, e não têm o que comer; e não quero despedi-los em jejum, para que não
desfaleçam no caminho. Disseram-lhe os discípulos: Donde nos viriam num
deserto tantos pães, para fartar tamanha multidão? ...
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E após este episódio, em Marcos
e Mateus, os apóstolos discutiam
entre si o facto de se terem esquecido de trazer pão. Então Jesus emite uma
severa repreensão aos apóstolos:
Marcos
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Mateus
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Marcos 8:14-21 ... Pelo que eles arrazoavam entre si
porque não tinham pão. E Jesus, percebendo isso, disse-lhes: Por que
arrazoais por não terdes pão? não compreendeis ainda, nem entendeis? tendes o
vosso coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? e tendo ouvidos, não ouvis?
e não vos lembrais? ...
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Mateus 16:5-12... Pelo que eles arrazoavam entre si, dizendo:
É porque não trouxemos pão. E Jesus, percebendo isso, disse: Por que
arrazoais entre vós por não terdes pão, homens de pouca fé? ...
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Em Mateus, a
repreensão de Jesus dirigida aos apóstolos não parece tão rude como aquela
descrita em Marcos.
Ainda sobre os dois “milagres dos pães” vemos que, segundo Marcos, apesar serem participados por
multidões de cinco mil e quatro mil homens (ou famílias), respectivamente, não
há nenhuma indicação de estes participantes terem ficado maravilhados com o
poder de Jesus. O autor indica apenas que estes ficaram satisfeitos com a
refeição que puderam disfrutar. Os participantes não puderam observar nenhum
milagre a acontecer, pois Jesus pediu que a multidão se separasse em pequenos
grupos sentados na relva (Marcos 6:39-40) para depois distribuir os alimentos. “Marcos”
quis transmitir que apenas os apóstolos é que tomaram conhecimento do carácter
miraculoso do evento e que, na melhor das hipóteses, todos os outros
participantes teriam retido apenas a impressão de que Jesus estaria apoiado numa
boa logística. Mesmo rodeado de multidões Jesus era muito discreto.
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