terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Século I: Jesus da Nazaré Existiu?



Jesus da Nazaré Existiu?

Pode parecer uma ideia descabida que Jesus não tenha sido uma personagem histórica. Claro! Jesus é a personagem mais conhecida de toda a humanidade e, mesmo não sendo filho de um Deus, certamente foi um homem extraordinário.

É comum pensar-se que há muitas provas da existência de Jesus: testemunhos oculares, as suas palavras registadas, enfim, apenas provas sólidas e racionais. No mínimo, teria havido um homem na Judeia ou Galileia do primeiro século cuja vida serviu de base para o registo que existe sobre Jesus.

Mas vamos seguir o rasto das provas da existência de Jesus. Então, para começar, vamos tentar descobrir o que é que a História diz sobre Jesus.

Apesar de a literatura cristã (incluindo o Novo Testamento) ter muita informação acerca de Jesus, a história secular tem muito pouca. Muitos apologistas da historicidade de Jesus defendem que Jesus era uma personagem muito discreta e que não havia motivo para deixar uma grande impressão na história secular. 


Mas será que o Novo Testamento retrata um Jesus discreto?

O evangelho de Lucas diz que Jesus nasceu no ano em que César Augusto promoveu um censo para cobrar impostos e que José teve de viajar para Belém porque pertencia a uma ilustre linhagem de descendentes do rei David de Belém. Só por este detalhe, Jesus teria de ser uma personagem de alguma visibilidade.

A história secular confirma um censo romano sobre a Judeia que ocorreu em 6 EC. Por outro lado, o evangelho de Mateus diz que Jesus nasceu durante o reinado de Herodes o Grande que terminou em 4 AEC. Temos um intervalo de 10 anos de incerteza quanto à data de nascimento de Jesus. Dez anos de incerteza para um homem que alegadamente viveu até aos 30 anos é muito.

Outra informação do evangelho de Mateus é que Herodes ordenou a morte de todos os meninos de Belém, por causa de Jesus. Uma das fontes mais importantes para a biografia de Herodes - Flávio Josefo - não referiu isso na biografia de Herodes.

Os vários evangelhos retratam Jesus a entrar em Jerusalém em marcha triunfante com grandes multidões a aclamá-lo como Rei. Não há fontes não cristãs sobre isso.

Jesus entra no Templo de Jerusalém - a maior fonte de rendimentos da Judeia - e expulsa os banqueiros sem que ninguém tome nota desse acontecimento? Inconcebível é Jesus fazer isso e nem sequer ser detido na hora. No Templo realizavam-se muitos negócios relacionados com o sacrifício religioso, movimentando muito dinheiro, e havia uma guarda armada para prevenir exatamente o tipo de assalto que Jesus alegadamente fez. Milhares de judeus dirigiam-se a Jerusalém vindos de várias regiões do mundo antigo e recorriam aos serviços financeiros prestados pelos banqueiros que Jesus supostamente expulsou.

Os evangelhos também relatam toda uma série de acontecimentos bizarros que aconteceram quando Jesus é crucificado: um terremoto, uma escuridão sobrenatural que cobre toda a região, a cortina do Templo é misteriosamente rasgada, uma quantidade de mortos ressuscitaram e apareceram em Jerusalém (este último é um exclusivo de Mateus).

Também os evangelhos falam de acontecimentos notáveis após a morte de Jesus: Jesus sobe ao céu na presença de muitas testemunhas.


Será que haveria mais literatura sobre Jesus para além do Novo Testamento?

Nenhum destes acontecimentos notáveis chamaram a atenção de escritores romanos ou judaicos (sem contar com os autores anónimos dos evangelhos). 

Mas houve muita gente a narrar acontecimentos desta época (século I) na Judeia e Galileia ou, mais genericamente, acontecimentos notáveis em todo o império romano. De facto, muitos apologistas da historicidade de Jesus apontam o testemunho dos seguintes autores:

 - Flávio Josefo; Clemente de Roma; Inácio de Antioquia; Plínio Jovem; Suetónio; Tácito; Policarpo; Justino Mártir; Luciano de Samosata;

Mas nenhum destes autores dá algum testemunho sobre a vida de Jesus. Na melhor das hipóteses estes autores apenas discutem notas sobre o cristianismo (mas ninguém nega a existência dos cristãos no primeiro ou segundo século).

De todos estes autores, apenas Flávio Josefo poderia dar um testemunho contemporâneo, mas não seria um testemunho em primeira pessoa, uma vez que Josefo nasceu em 37 EC, já depois da morte do suposto Jesus da Nazaré.


O Século I foi fervilhante em produção de literatura

Não quer dizer que não haveria pessoas com inclinação para produzir registos sobre esta época ou que nenhum registo sobreviveu. O primeiro século é um dos períodos históricos melhor documentados que se conhece na história e há vários escritores e historiadores da época que estariam interessados em escrever sobre Jesus caso tivessem tido acesso à sua história - caso Jesus tivesse sido uma pessoa real do século I.

 - Séneca o Velho (54 AEC - 39 EC) - amplamente reconhecido como o maior escritor romano sobre ética, teria todo o interesse em escrever sobre Jesus, caso Jesus tivesse sido uma pessoa real;

 - Filon de Alexandria (20 AEC - 50 EC) - um famoso filósofo judeu que estava ao corrente dos principais acontecimentos de Jerusalém durante a sua vida; um dos seus livros menciona uma embaixada de judeus que foi pedir a Calígula para desistir da ideia de colocar a sua estátua no Templo de Jerusalém (40 EC); nunca menciona Jesus Nazareno ou o cristianismo, mas parece ser o promotor do conceito do Logos (o Verbo) e da busca de mensagens codificadas nas Escrituras (Antigo Testamento) - tudo coisas adoptadas mais tarde pelos primeiros autores cristãos como os autor dos evangelhos e o apóstolo Paulo;

 - Séneca o Jovem (4 AEC - 65 EC) - escreveu um livro "Sobre a Superstição" onde critica uma grande quantidade de cultos e superstições, mas não escreveu nada acerca do cristianismo; o que é muito estranho, porque o seu irmão Gálio é a personagem do Novo Testamento que preside ao julgamento do apóstolo Paulo (Actos, capítulo 18);

 - Plínio o Velho (23 -79 EC) - um cientista que escreveu volumes não apenas sobre fenómenos naturais e astronómicos, como terremotos e eclipses, mas também sobre lendas, cultos e crenças - é estranho não ter escrito sobre o cristianismo;

 - Flávio Josefo (37 - 95 EC) nasceu em Jerusalém e pertencia à aristocracia judaica; aos 30 anos de idade participou, de 66 a 67 EC, na Grande Revolta Judaica como líder militar na Galileia; foi capturado pelos romanos, mas tornou-se amigo de Vespasiano; escreveu obras volumosas que incluíam a descrição de muitos judeus (alguns mais notáveis, outros menos) do seu tempo e do passado; sobre Jesus, só existem dois parágrafos suspeitos: um totalmente forjado e outro alterado para parecer sobre Jesus da Nazaré, pois é um parágrafo sobre outro Jesus (filho de Damneus);

 - Justus de Tibérias (contemporâneo de Flávio Josefo) foi um escritor judeu da Galileia que terá escrito detalhadamente sobre a Galiléia do seu tempo; as suas obras estão agora perdidas mas, no século IX, o patriarca de Constantinopla, Photius, escreveu sobre estas, recordando que Justo "nunca se refere a Jesus Cristo";

 - Marcial (38 - 104 EC) e Juvenal (60 - 127 EC) escreviam sátira social - zombavam com todos os aspectos da sociedade romana do seu tempo - mas não têm nada a dizer sobre os cristãos; mas podemos dar o desconto de que talvez o cristianismo ainda não fosse muito visível ou as comunidades cristãs não produzissem acontecimentos criticáveis;

 - Epiteto (55 - 135 EC) foi um importante filósofo grego que defendia a irmandade de todos os homens - uma filosofia partilhada pelo cristianismo - mas não faz nenhuma menção a Jesus ou até mesmo ao cristianismo;


E o Século II?

Como o século I não oferece nenhum dado sobre Jesus ou sobre o cristianismo, vejamos o que temos no século II.

 - Inácio De Antioquia (50 -  117 EC) na sua carta à comunidade cristã de Esmirna, por volta de 110 EC, revela preocupação com os docetistas – cristãos que não acreditavam que o Filho de Deus tinha encarnado num homem; portanto muito cedo no cristianismo houve uma discussão sobre se o "Filho de Deus" tinha sido humano;

 - Plínio o Jovem (61 - 114 EC), por volta de 112 EC, escreve uma carta ao imperador Trajano a indagar o que deveria fazer com os cristãos da sua província (Bitínia, Anatólia); parece que, para Plínio, os cristãos são uma novidade em 112 EC, o que é muito estranho, pois Plínio nesta data já tinha ocupado muitos cargos importantes em Roma e noutros locais do império romano;

 - Tácito (56 - 117 EC) escreveu, em Anais (Livro XV, 44) sobre como Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma de 64 EC; esta passagem não faz muito sentido pois em 64 EC os cristãos não tinham visibilidade suficiente para serem tratados como um grupo incómodo (já vimos que nenhum autor do primeiro século tomou nota deles); é possível que a passagem original referisse "judeus" em vez de "cristãos"; a informação extra sobre "Cristo que foi condenado por Pilatos" é muito suspeita;

 - Suetónio (69 - 140 EC), escreveu, em Vidas dos Doze Césares (Livro V, Vida de Cláudio, 25, 4) sobre um tal de Crestos e seus seguidores que foram expulsos de Roma por Cláudio; os apologistas da historicidade de Jesus alegam que "Crestos" refere-se a Cristo (mas o Jesus dos evangelhos nunca esteve em Roma);

 - Justino Mártir (100 - 165 EC) escreveu, no Diálogo com Trifon: "[Trifon disse:] ‘mas Cristo, se realmente nasceu e existe, é desconhecido, não se conhece a ele próprio, não tem poder até que Elias venha e faça a sua unção e o mostre a todos. E vocês [cristãos], aceitando um relato insustentável, inventam Cristo e morrem em sua defesa’”; é de presumir que este Trifon, judeu, combatia o cristianismo e Justino escreveu uma apologia contra os ataques de Trifon; nesta apologia Justino afirma que o Diabo antecipou-se a Jesus e criou os mitos de Dionisos, Hercules e Esculápio (capítulo LXIX); 

 - Luciano de Samosata (125-181 EC) - no seu escrito A Morte de Peregrino regista, de forma satírica, uma das primeiras impressões pagãs sobre o Cristianismo: uma das personagens de Luciano ridiculariza os cristãos pela sua aparente credulidade e ignorância; o texto também refere que os "cristãos adoram o homem que foi crucificado na Palestina por ter introduzido este novo culto no mundo"; mas no tempo de Luciano, os evangelhos já circulavam e Jesus era simplesmente descrito pelo conteúdo dos evangelhos.

 - Celsus (escreveu o seu livro por volta de 178 EC) - Como filósofo grego anti-cristão, Celsus montou um ataque ao cristianismo, Verdadeira Palavra. O seu trabalho escrito, que pode ser datado de cerca de 178 EC, é o primeiro ataque abrangente conhecido ao cristianismo e foi de tal modo importante que Orígenes escreveu oito livros ("Contra Celsus"), cerca de setenta anos depois, para refutar os seus ataques.

Vemos, portanto, que o cristianismo começa a fazer-se notar apenas a partir do século II. Até então os cristãos seriam formados por pequenas comunidades. O objecto de devoção dos cristãos começa a moldar-se em torno de uma figura chamada Jesus da Nazaré.


O que é que o Talmude diz sobre Jesus

Talmude é um livro sagrado dos judeus, um registro das discussões dos Rabis sobre lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto fundamental para o judaísmo rabínico, redigido a partir do século II.

Os escritores do Talmude descreveram pelo menos duas figuras parecidos com o Jesus dos evangelhos.

Um destes é Jesus ben Pandera que supostamente era um fazedor de milagres e bastardo de um soldado chamado Pantera (esta última informação de Celsus). Este ben Pandera é também o protagonista de um texto fora do Talmude chamado Sepher Toldoth Yeshu ("Livro da Geração de Jesus"). Ele foi apedrejado até à morte e, em seguida, pendurado numa árvore na véspera da Páscoa em Jerusalém, mas isso aconteceu durante o reinado de Alexandre Janeu, cerca de 80 anos antes do alegado nascimento de Jesus da Nazaré. 

O outro era Jesus ben Stada, um suposto mágico que também terá sido apedrejado e enforcado na véspera da Páscoa, mas isso foi em Lydda, a 48 Km de Jerusalém, no segundo século, cerca de 80 anos depois da alegada morte de Jesus da Nazaré. 


Um olhar detalhado sobre Josefo - o Testimonium Flavianum

Flávio Josefo é o autor mais conhecido sobre a Judeia e Galileia do primeiro século. Uma pequena passagem que se encontra no seu volumoso trabalho, Antiguidades Judaicas, composto de 20 livros, diz o seguinte:

Antiguidades Judaicas, XVIII, 3, 3 
Por volta deste tempo [da revolta dos judeus contra Pilatos devido ao financiamento de um aqueduto com dinheiro do Templo], existiu Jesus, um homem sábio, se é lícito chamá-lo de homem, pois ele fez coisas maravilhosas, um professor de homens que recebiam a verdade com prazer. Ele fez discípulos tanto entre os judeus como entre os gentios. Ele era o Cristo. E quando Pilatos, seguindo a sugestão dos líderes entre nós, condenou-o a ser crucificado, os que o amaram não o esqueceram; porque ele lhes apareceu vivo de novo no terceiro dia, tal como haviam predito os divinos profetas estas e milhares de outras coisas maravilhosas a respeito dele. E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não se extinguiu até hoje.


Vamos apenas dar uma rápida olhada nos destaques deste parágrafo. Será que isto foi escrito por um historiador judeu ortodoxo do primeiro século ou é uma falsificação cristã posterior?

Ele chama Jesus de "Cristo", refere as muitas coisas maravilhosas a respeito dele e que ele apareceu vivo depois de morrer. Portanto, é difícil acreditar que Josefo, um judeu ortodoxo e historiador, tenha escrito qualquer uma dessas coisas chamando um criminoso que foi condenado pelos seus companheiros judeus ortodoxos de "Cristo" - uma palavra grega para o Messias - e falando sobre as coisas maravilhosas que ele fez e casualmente menciona que "oh sim, ele voltou dos mortos"...

"E a tribo de cristãos assim chamada por causa dele não se extinguiu até hoje". Josefo escreveu a sua obra em 90 EC. Os cristãos nesse tempo não formavam "uma tribo" mas eram apenas comunidades dispersas e desorganizadas. E por que é que ele diria "não se extinguiu até hoje"? Supostamente o movimento do cristianismo estava apenas a começar!

E ele diz "tal como haviam predito os divinos profetas", mas aqui Josefo não menciona quem são esses profetas ou o que eles disseram, o que não é nada o estilo de Josefo.

Josefo teria ficado extremamente interessado em relatar que Jesus expulsou os cambistas do templo, mas ele nem menciona isso. Este é exactamente o tipo de história que ele adorava relatar, porque ele enche páginas e páginas documentando as aventuras falhadas de outros pretensos messias e milagreiros em grande detalhe como Judas da Galiléia, Teudas e o Egípcio - todos os quais ele repreende como enganadores e impostores e não tem nada de bom a dizer sobre nenhum deles.

Na verdade, apontar falsos messias era uma missão especial para Josefo, porque ele passou toda a sua carreira declarando que seu patrono, o imperador Vespasiano, era o verdadeiro Messias. Mas este pequeno fragmento solitário é tudo o que ele tem a dizer sobre outro suposto "verdadeiro messias"? 

Josefo passa mais tempo a descrever um pequeno escândalo sexual no parágrafo seguinte do que numa descrição em que "alega" referir-se ao "verdadeiro messias".

De qualquer modo, todos os historiadores concordam que esta passagem foi falsificada. O que está em discussão é se foi totalmente falsificada ou parcialmente falsificada. A explicação mais provável é que a passagem foi totalmente falsificada, tendo sido totalmente inserida no texto de Josefo. A passagem não se encaixa no seguimento do texto.

Esta passagem parece que nem existia antes do século IV. Os patriarcas da Igreja Cristã e apologistas como Orígenes e Clemente de Alexandria recorriam aos livros de Josefo para as suas argumentações, mas nunca usam esta passagem.


Josefo e o irmão de Jesus... filho de Damneus

A outra passagem referida na defesa da historicidade de Jesus é uma que supostamente refere "Tiago, o irmão de Jesus", mas o contexto diz que esse Tiago era, na verdade, irmão de Jesus filho de Damneus.


Os outros Jesus de Josefo

Flávio Josefo refere, nas suas obras, um Jesus da Galileia (Jesus ben Sapphias) e um Jesus de Jerusalém (Jesus ben Ananias). Ambas personagens partilham algumas caracteristicas com o Jesus dos Evangelhos. 

É bem possível que estas duas personagens tenham inspirado os evangelhos, nomeadamente o evangelho de Marcos.


E o falsificador-mor é... Eusébio de Cesareia

Eusébio de Cesareia foi o responsável por grande parte do que se "sabe" sobre a história primitiva da Igreja Romana pela sua obra Historia Ecclesiastica.

Eusébio tinha uma grande propensão para a fraude. Um dos escritos de Eusébio tem um capítulo que diz: "Será necessário às vezes usar a falsidade como remédio para o benefício daqueles que requerem tal forma de tratamento" e reescreveu sua história oficial da igreja pelo menos cinco vezes para acompanhar as mudanças na política da Igreja.

Muito provavelmente foi Eusébio quem fez a falsificação no livro de Josefo. Era muito embaraçoso Josefo não ter escrito nada acerca de Jesus e a Igreja optou por investir numa doutrina em que Jesus tinha sido uma personagem humana do Século I.

Na verdade, há outra referência em Josefo a um Jesus, no volume XX da obra Antiguidades Judaicas, que não é uma falsificação, mas refere-se a um outro Jesus (filho de Damneus) e, mais tarde, os cristãos pensaram que Josefo referia-se a Jesus da Nazaré e os escribas acabaram por acrescentar "o que era chamado o Cristo" ao nome "Jesus". Orígenes cita esta passagem do volume XX mas não a passagem do volume XVIII.


E os evangelhos?

Os evangelhos canónicos são os primeiros quatro livros do Novo Testamento, com designações abreviadas de MateusMarcosLucas e João. Foram aqueles admitidos pela Igreja Católica para pertencer ao conjunto de 27 textos que hoje compõem o Novo Testamento. O grande mentor deste cânon, ou selecção, foi talvez o bispo Atanásio de Alexandria, no século IV EC.

Estes quatro livros têm em comum o aparente objectivo de descreverem a pessoa, missão e obra de Jesus Cristo. Nestes livros encontramos as seguintes descrições e narrativas sobre Jesus Cristo:
-          nascimento ou dados sobre a sua origem;
-          baptismo;
-          viagens, discursos públicos e conversas privadas;
-          curas e exorcismos;
-          transfiguração e milagres;
-          última ceia e a eucaristia;
-          traiçãocapturajulgamentoexecução e sepultamento;


Apesar de hoje observarmos os quatro evangelhos compilados num compêndio chamado Novo Testamento, não foi sempre assim. Durante décadas os evangelhos circularam como se fossem obras independentes, com cada comunidade de cristãos a adoptar um evangelho diferente. E havia muitos mais do que quatro. Os evangelhos que foram incorporados no Novo Testamento são chamados de canónicos.

Os evangelhos canónicos foram, à partida, escritos anónimos. Os seus autores não fizeram nenhum esforço para serem reconhecidos, não se identificando em nenhuma parte do texto que escreveram. 

De facto, não existem episódios ou passagens relatados na primeira pessoa. Ora, se os autores tivessem a intenção de descreverem acontecimentos de um passado recente, teriam usado construções frásicas do tipo “Eu vi...” ou “Fulano viu e contou-me que...”. É provável que estes autores tivessem apenas a intenção de escrever sobre um sistema de ensinamentos e não de relatar acontecimentos do seu tempo, por isso não lhes pareceria necessário nem apropriado identificarem-se ao longo das suas composições.

Os escritos circulavam sem o título que actualmente ostentam (Evangelho Segundo ...). A autoria foi atribuída, pela tradição, muito depois de estarem escritos, aos seguintes autores:

-         Marcos – a autoria foi atribuida a um suposto companheiro de viagens do (auto-proclamado) apóstolo Paulo, que alegadamente teria registado as memórias do apóstolo Pedro. O livro deveria ser conhecido como o “livro das boas novas de Jesus”; como refere a destruição de Jerusalém, teve de ser escrito (ou terminado) após 70 EC;

-         Mateus – foi declarado como sendo escrito pelo apóstolo Mateus, o cobrador de impostos. Antes de ser conhecido como o Evangelho Segundo Mateus deveria ser conhecido como o “livro da genealogia de Jesus”, que é a frase inicial do texto; este evangelho contém 90% do texto de Marcos (muitos parágrafos são cópia exacta palavra por palavra) com adições.

-         Lucas – escrito atribuido a um médico que supostamente convivia de perto com Paulo. O autor parece escrever especificamente para alguém chamado Teófilo, mostrando que talvez não tivesse a intenção de escrever para uma audiência alargada. A tradição indica também que o mesmo autor escreveu o livro dos Actos dos Apóstolos; o autor admite que leu muitos outras obras para poder escrever esta e este evangelho tem muitas similaridades com o texto de Mateus, por isso o autor terá usado o evangelho de Mateus como fonte principal.

-         João – tal como nos outros evangelhos, o autor não se identifica mas designa-se misteriosamente como o “discípulo que Jesus amava”. A tradição atribui a autoria ao apóstolo João. Este livro talvez fosse conhecido como “a palavra” (gr. logos), pois é o tema de abertura do livro. A tradição atribui a este autor também a escrita do livro Revelação (Apocalipse); este evangelho é muito diferente dos três primeiros, no entanto converge no que toca à narrativa da paixão (os últimos dias de Cristo); o evangelho de João é muito diferente dos outros três evangelhos, mas parece seguir uma estrutura narrativa da paixão semelhante à que encontramos em Marcos.


A primeira referência que temos acerca da existência de quatro evangelhos é de Ireneu de Lyon que, por volta de 180 EC, disse que os evangelhos tinham de ser quatro “... porque existem quatro direcções no mundo, quatro ventos"!


Os Evangelhos Sinópticos

O três primeiros evangelhos são muito semelhantes. Como Marcos, o evangelho mais antigo, alude à destruição do templo de Jerusalém, que ocorreu em 70 EC, então é óbvio que foi escrito depois deste evento. O autor de Mateus usou o evangelho de Marcos como fonte principal, copiando 90% do texto e adicionando o seu próprio conteúdo. O autor de Lucas usa principalmente conteúdos de Mateus e é possível que se tenha orientado nos detalhes históricos do século I através da obra de Josefo (Antiguidades Judaicas, escrita por volta de 90 EC). Ao ter copiado o conteúdo de Mateus, Lucas contém, directa ou indirectamente, também os conteúdos de Marcos.

Portanto, Marcos, Mateus e Lucas partilham muito dos conteúdos, sendo chamados de "Sinópticos" que, em grego, significa "vistos em conjunto". Não são narrativas independentes mas apenas adaptações de um mesmo texto original. Isso é o chamado "problema sinótico" e, sim, é um problema.

Porque é que Mateus, um apóstolo de Jesus, iria plagiar os escritos de Marcos, que não era uma testemunha ocular (nem alegadamente)? E, principalmente, o autor de Marcos aparentemente desconhece de tal modo os costumes dos judeus e a própria geografia da Palestina, que Mateus se vê obrigado a corrigi-lo na sua versão.

Em resumo: Marcos foi apenas o primeiro evangelho escrito. O evangelho de Mateus foi escrito claramente com a intenção de melhorar o texto de Marcos. Por fim, o evangelho de Lucas foi escrito quando já existia uma grande quantidade de evangelhos em circulação e foi escrito com a pretensão de ser o melhor evangelho de sempre.

Em Marcos, Jesus é João Baptista

Marcos claramente não foi escrito como uma descrição de acontecimentos. Se for lido com esse sentido, o Jesus de Marcos é uma personagem muito bizarra.

Segundo Marcos, as pessoas que viam Jesus pensavam que ele era João BaptistaElias ou qualquer outro profeta antigo:
Marcos 8:27-30 ... e no caminho interrogou os discípulos, dizendo:
 - Quem dizem os homens que eu sou?
Responderam-lhe eles:
 - Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros: Algum dos profetas.
Então lhes perguntou:
 - Mas vós, quem dizeis que eu sou?
Respondendo, Pedro lhe disse:
 - Tu és o Cristo.
E ordenou-lhes Jesus que a ninguém dissessem aquilo a respeito dele.

Nesta passagem do Novo Testamento, Jesus prefere que as pessoas continuem a pensar que ele é João Baptista ou outro profeta ressuscitado, a deixá-los saber que ele é uma outra pessoa. Pedro não ajuda muito, pois simplesmente atribui-lhe um título (Cristo) sem o identificar como uma pessoa diferente de João Baptista.

Em Marcos, Jesus é líder de culto secreto

Quando Jesus é inquirido sobre o porquê de tantas parábolas complicadas, em Marcos, Jesus explica que é necessário manter em segredo o reino de Deus, pois é só para alguns fiéis salvarem-se. Ou seja, as parábolas eram deliberadamente ininteligíveis para impedir “os de fora” de se salvarem caso tomassem conhecimento do “reino de Deus”!
Marcos 4:10-12 Quando se achou só, os que estavam ao redor dele, com os doze, interrogaram-no acerca da parábola. E ele lhes disse: A vós é confiado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se lhes diz por parábolas; para que vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam e sejam perdoados.


É claro que, com isto, o autor de Marcos estava mesmo a explicar aos leitores que o seu texto é muito complexo e destina-se a ser entendido apenas pelos membros da sua comunidade chegada. Não estava certamente a dizer que o Cristo, o Filho de Deus, seria tão perverso que só pretendia salvar um conjunto muito limitado de pessoas.

Quem mais tarde tentou ler Marcos como uma biografia simples de Jesus cometeu o erro monumental que levou o cristianismo tornar-se o que é hoje.


O Evangelho de João

Entretanto aparece o evangelho de João.

O evangelho de João é muito diferente dos três outros. Parece ter sido, inicialmente, rejeitado por muitas comunidades cristãs, mas provou ser tão popular que não poderia ser reprimido apesar do facto de não ter praticamente nada em comum com os ensinamentos, a teologia, o estilo ou mesmo o conteúdo dos outros evangelhos.

Enquanto o Jesus dos evangelhos sinópticos é descrito como muito reservado em que constantemente exige que não se fale sobre ele, o Jesus de João é muito mais exibicionista - só lhe falta andar com holofotes e um letreiro a dizer "Vejam quão espantoso eu sou!".

Para mais, enquanto nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, Jesus expulsa os banqueiros do Templo na sua última semana de vida, no evangelho de João, Jesus inicia os seus 3 anos de actividade com esse evento. Parece que, na versão de João, o acto de expulsar os banqueiros do Templo não teve nenhum impacto na opinião que as autoridades tinham sobre Jesus.

Por outro lado, a sequência narrativa de João é muito confusa. Por exemplo, no início do capítulo 2, Jesus realiza seu primeiro milagre (transforma água em vinho), depois, mais à frente, realiza mais alguns milagres (não especificados) e, depois disso, no capítulo 4, é dito que Jesus fez o seu segundo milagre!


E Actos dos Apósotolos?

O livro Actos dos Apóstolos é uma espécie de continuação do Evangelho de Lucas. Foi certamente composto pelo mesmo autor que escreveu Lucas (ou, mais provavelmente, alguém da mesma comunidade). Grande parte do texto é acerca das aventuras de Paulo e de Pedro, e, com menos destaque, de outros apóstolos.

É bom relembrar que, ao contrário de Pedro, Paulo não aparece nos evangelhos. Paulo é intitulado Apóstolo em Actos e nas suas próprias cartas, mas não é um dos 12 apóstolos recrutados por Jesus nos evangelhos.

Uma das grandes lacunas de Actos é que não conta o que é que os não crentes pensavam sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. Nem Pilatos nem Caifás voltam a aparecer em cena para investigar o acontecimento.

Muitas personagens dos evangelhos desaparecem completamente em Actos, incluindo as que contracenam com Jesus nos últimos momentos: José de Arimateia, Maria Madalena, Simão de Cirene, Nicodemos e Lázaro. Os irmãos de Jesus não são referidos, e, com a exceção de uma breve referência no primeiro capítulo, Maria, mãe de Jesus, também desaparece para sempre do Novo Testamento.


E as cartas de Paulo?

Sim! As cartas de Paulo! Estas foram escritas antes dos evangelhos, então porque não nos lembrámos delas logo?

Talvez porque ao longo de todas as cartas de Paulo, não encontramos nada que possa confirmar a narrativa dos evangelhos. 

De acordo com a história oficial, após a crucificação de Jesus, Paulo tornou-se o maior missionário cristão. 

Ele viajou pelo mundo antigo estabelecendo igrejas e escreveu várias cartas. Nessas cartas, não há nada quando Paulo fala do seu Jesus Cristo que se pareça como se estivesse descrevendo um homem que viveu na Terra, na Galiléia, poucos anos antes.

Paulo parece descrever o Cristo como uma figura mitológica que lhe foi revelada diretamente por visões ou através das "escrituras". Mas o que é que Paulo refere como "escrituras"? Claramente refere-se ao Antigo Testamento, porque o Novo Testamento ainda não existia. Paulo diz que as escrituras lhe revelaram o Cristo, o ou o Cristo revelou-se a ele em visões - não foi porque ele conheceu Jesus pessoalmente ou que alguém lhe falou sobre Jesus.

Paulo nega veementemente ter recebido seu conhecimento de qualquer homem. Ele diz que aprendeu sobre o Filho de Deus por meio de revelações e pelas escrituras "Deus escolheu revelar seu filho por meu intermédio", ele diz em Gálatas 1:16. Paulo sempre aponta as escrituras como a fonte de seu evangelho, tudo o que ele diz que Jesus fez está sempre de acordo com as escrituras: "Cristo fez isto de acordo com a escritura, Cristo fez aquilo de acordo com a escritura...".

Para Paulo, a existência do Salvador era, até este ponto, desconhecida - era um segredo, um mistério escondido no céu por muito tempo por Deus, mas agora foi revelado junto com a promessa de salvação.

Isso é o que Paulo e todos os outros autores das epístolas do Novo Testamento estão constantemente a dizer. Eles não se referem a nenhum tipo de Jesus humano e, de facto, em muitas referências nem há espaço para tal figura em sua teologia, pois tratam o Espírito de Deus e o Filho de Deus como se fossem exatamente a mesma coisa.

Se Jesus da Nazaré tivesse existido, Paulo teria de saber. Mas, se sabia, nunca partilhou com os seus muitos seguidores na Grécia, Anatólia e Roma informações sobre a sua existência! Belém, Nazaré, Galiléia, Pilatos, Maria Madalena, José, Maria, nunca aparecem nas suas cartas. 

Paulo, nas suas cartas, refere, sim, Pedro, João e Tiago não como antigos companheiros terrenos de Jesus mas como "colegas" de Paulo que tiverem também uma revelação do Cristo exactamente nas mesmas condições que Paulo teve.

Os evangelhos, escritos mais tarde, referem que Pedro, João e Tiago foram companheiros de Jesus nas suas aventuras na Galileia.

Há um abismo entre os evangelhos e o resto do Novo Testamento. São estilos completamente diferentes de literatura.

Nos evangelhos, Jesus ensinou que todos os alimentos são limpos, mas a discussão sobre a dieta kosher continuou por muito e muito tempo ao ponto de o escritor de Actos inventar uma visão de Pedro para explicar que é permitido comer todos os alimentos. Mas se Jesus já havia se pronunciado sobre a questão, por que é que eles voltaram ao assunto? 

Quando Paulo esteve em viagens missionárias, a milhares de quilómetros da Palestina, os seus seguidores não lhe iriam perguntar sobre o famoso Jesus da Nazaré que era o filho de Deus e o salvador do mundo inteiro? Se não perguntas sobre a sua vida pelo menos coisas que ele ensinara. E Paulo, evidentemente, não saberia responder.


Muitos cristianismos no início

Porque é que o cristianismo começou com tantas comunidades distintas e rivais?

Se o cristianismo foi iniciado por uma única pessoa ou um grupo de seguidores, seria um movimento descontroladamente esquizofrénico. Logo à partida, só com informação do Novo Testamento, conseguimos identificar os seguintes grupos: a comunidade de Jerusalém, supostamente liderada por Pedro; as comunidades fora da Palestina, lideradas por Paulo; a comunidade que tinha sido liderada por João Baptista (que continuou por alguns séculos com o nome de Mandeísmo); os Nicolaítas referidos no livro de Revelação, etc.

Ainda outro ramo inicial do Cristianismo foram os Gnósticos. A denominação "Gnósticos" é um termo geral para uma ampla gama de diferentes grupos. Uma característica que a maioria deles compartilhou em comum foi que a criação do mundo foi um grande erro e que pedaços de Deus ficaram presos em pedaços de matéria chamados seres humanos e que, adquirindo conhecimento secreto e praticando neles seus rituais, os gnósticos esperam aprender como se reunir com Deus (Pleroma) no céu.

As descobertas de Nag Hammadi vieram mostrar que o cristianismo gnóstico era mais antigo do que se pensava. Em muitas partes do império romano, o cristianismo gnóstico precedeu o cristianismo ortodoxo (romano ou grego).


Filho de um qualquer Deus

De qualquer modo, no início do cristianismo havia muitas formas distintas de religião cujo objecto de devoção era o Filho de um qualquer Deus. Havia muitos grupos, à volta do Mediterrâneo com distintas tradições e formas de celebrar essa devoção. Grande parte dos grupos tinha grande influência de comunidades judaicas espalhadas pelo império romano. Nesse caso, o Deus em questão era Yahveh, o Deus dos judeus. Yahveh tinha um filho e ninguém sabia! Não há problema nenhum, porque todos os outros deuses do império romano tinham filhos que eram de uma forma ou de outra salvadores ou protectores dos seus devotos. Isto abriu um filão para homens como Pedro e Paulo que se apresentaram como sendo canais de comunicação na revelação do Filho de Yahveh como salvador.

A diferença é que Pedro dizia que o Filho de Yahveh, obviamente só se preocupava com os judeus, enquanto Paulo dizia que o Filho de Yahveh poderia salver qualquer um mesmo não sendo judeu e nem sequer necessitar de seguir as práticas dos judeus (circuncisão, dieta kosher, etc).

O que Paulo conseguiu foi uma campanha de marketing formidável em que conseguiu juntar muitos grupos que reverenciavam um Filho de um Deus qualquer e passaram todos a reverenciar o Filho de Yahveh a que chamavam Cristo, ou Cristo Jesus ou Jesus Cristo, baseado na literatura sagrada dos judeus - aquilo que hoje chamamos o Antigo Testamento.

Em vez de o cristianismo ter começado com um grupo centrado numa figura obscura chamada Jesus da Nazaré, começou com muitos grupos que adoravam a ideia de "Filho de Deus". Podia ser Filho de Zeus (Dionísio ou Baco), Filho de Marte (Rómulo) ou Filho de Yahveh (Jesus).

Mais tarde esses grupos foram sendo concentrados numa única religião cada vez maior até chegar ao ponto de se chamar Igreja Católica (katholikós, em grego, quer dizer "universal", ou, em linguagem empresarial, "standard")