A entrada triunfal: um ou dois burros?
“Mateus”, no relato da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, tentou encontrar um texto profético no Antigo
Testamento, que justificasse a opção de Jesus por montar num burro. Encontrou
a frase no livro de Zacarias, mas acabou por escorregar na tradução do texto
antigo. Vejamos os textos em causa:
Zacarias
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Mateus
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Zacarias 9:9 Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta,
ó filha de Jerusalém; eis que vem a ti o teu rei; ele é justo e traz a
salvação; ele é humilde e vem montado sobre um jumento, sobre um
jumentinho, filho de jumenta.
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Mateus 21:1-7 ... enviou Jesus dois discípulos,
dizendo-lhes: Ide à aldeia que está defronte de vós, e logo encontrareis uma
jumenta presa, e um jumentinho com ela; desprendei-a, e trazei- mos. E, se
alguém vos disser alguma coisa, respondei: O Senhor precisa deles; e logo os
enviará. Ora, isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo
profeta: Dizei à filha de Sião: Eis que aí te vem o teu Rei, manso e montado
em um jumento, em um jumentinho, cria de animal de carga. Indo, pois, os
discípulos e fazendo como Jesus lhes ordenara, trouxeram a jumenta e o
jumentinho, e sobre eles puseram os seus mantos, e Jesus montou.
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Ficamos a pensar como é que Jesus poderia montar dois burros
ao mesmo tempo. Mas, comparemos com o texto de Marcos (a versão de Lucas
19:29-35 é idêntica):
Marcos 11:1-7 ... enviou Jesus dois dos seus discípulos e disse-lhes: Ide à aldeia que está defronte de vós; e logo que nela entrardes, encontrareis preso um jumentinho, em que ainda ninguém montou; desprendei-o e trazei-o. E se alguém vos perguntar: Por que fazeis isso? respondei: O Senhor precisa dele, e logo tornará a enviá-lo para aqui. Foram, pois, e acharam o jumentinho preso ao portão do lado de fora na rua, e o desprenderam. E alguns dos que ali estavam lhes perguntaram: Que fazeis, desprendendo o jumentinho? Responderam como Jesus lhes tinha mandado; e lho deixaram levar. Então trouxeram a Jesus o jumentinho e lançaram sobre ele os seus mantos; e Jesus montou nele.
“Marcos”, que foi o autor original do relato respeitante a
Jesus, refere apenas um animal e não cita nenhum profeta. Parece que “Mateus”,
foi à procura da palavra “jumento” no Antigo
Testamento e encontrou em Zacarias
um texto que considerou apropriado. Mas, ao ler a profecia de Zacarias, entendeu que a frase “sobre um
jumento, sobre um jumentinho, filho de jumenta” significava mais de um animal,
por isso adaptou a narrativa de Marcos
à sua leitura, de modo a encaixar na “profecia” de Zacarias.
Mas isto de um rei desfilar pelo povo montado num asno não
era um exclusivo de Zacarias. Segundo
reza a crónica do Antigo Testamento, o glorioso rei Salomão, filho do
rei David, iniciou o seu reinado em cima de uma mula:
1 Reis 1:38-39 ... e fizeram montar Salomão na mula que era do rei David, e o levaram a Giom. Então Zadoque, o sacerdote, tomou do tabernáculo o vaso do azeite e ungiu a Salomão. Então tocaram a trombeta, e todo o povo disse: Viva o rei Salomão!
As trinta moedas
Só em Mateus é que
se relata que foram trinta o número de moedas de prata que Judas recebeu para a
traição. Em Marcos e Lucas relata-se apenas dinheiro (gr. argurion, prata), não se especificando a
quantidade. É, portanto, uma informação exclusiva de “Mateus” (como era
cobrador de impostos, talvez tenha perseguido o Judas para colectar-lhe o
IVA...).
Marcos
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Mateus
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Lucas
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Marcos 14:10-11 Então Judas Iscariotes, um dos doze,
foi ter com os principais sacerdotes para lhes entregar Jesus. Ouvindo-o
eles, alegraram-se, e prometeram dar-lhe dinheiro. E buscava como o
entregaria em ocasião oportuna.
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Mateus 26:14-16 Então um dos doze, chamado Judas
Iscariotes, foi ter com os principais sacerdotes, e disse: Que me quereis
dar, e eu vo-lo entregarei? E eles lhe pesaram trinta moedas de prata.
E desde então buscava ele oportunidade para o entregar.
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Lucas 22:4-6 e foi ele tratar com os principais
sacerdotes e com os capitães de como lho entregaria. Eles se alegraram com
isso, e convieram em lhe dar dinheiro. E ele concordou, e buscava ocasião
para lho entregar sem alvoroço.
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Interessa aqui mostrar que “Mateus” foi, mais uma vez,
buscar material ao Antigo Testamento cometendo mais erros. Vejamos o que relatou sobre o dinheiro que Judas devolveu aos sacerdotes (e só em Mateus é que Judas devolve o dinheiro, mostrando remorsos e arrependimento):
Zacarias
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Mateus
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Zacarias 11:12-13 E eu lhes disse: Se parece bem aos
vossos olhos, dai-me o que me é devido; e, se não, deixai-o. Pesaram, pois,
por meu salário, trinta moedas de prata. Ora o Senhor disse-me: ‘Arroja isso
ao oleiro’, esse belo preço em que fui avaliado por eles. E tomei as trinta
moedas de prata, e as arrojei ao oleiro na casa do Senhor.
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Mateus 27:9-10 Cumpriu-se, então, o que foi dito pelo
profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço do que foi
avaliado, a quem certos filhos de Israel avaliaram, e deram-nas pelo campo do
oleiro, assim como me ordenou o Senhor.
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“Mateus”, ao indicar a localização da “profecia” no livro Jeremias, quando a citação é do livro Zacarias, revelou um modo de trabalho
bastante precipitado (teria pouco tempo para escrever?...). Terá vasculhado o Antigo Testamento à procura da palavra
“prata” e utilizou esta ocorrência de Zacarias,
mas, provavelmente, confundiu com uma história de Jeremias, onde o autor menciona que, por ordem divina, comprou um
terreno por 17 moedas de prata e guardou a escritura num vaso de barro (Jeremias
32:6-15).
Que trapalhada fez "Mateus": confunde textos de Zacarias e Jeremias! Tudo porque buscava textos sobre moedas de prata!
Que trapalhada fez "Mateus": confunde textos de Zacarias e Jeremias! Tudo porque buscava textos sobre moedas de prata!
É clara a intenção de “Mateus” encaixar o texto de Zacarias na sua própria versão do
evangelho. Juntou o seguinte à sua narrativa: Judas devolve as moedas aos
sacerdotes, atirando-as para o santuário, e estes compram um terreno de um oleiro
por trinta moedas!
Porém, a história de Zacarias
não é sobre a compra de um terreno a um oleiro. Menciona um pastor que,
considerando insultuoso o seu salário (30 moedas era o preço de um escravo, Êxodo 21:32), atira as moedas para o oleiro do Templo (este oleiro seria um recipiente de cerâmica? será que o oleiro é Deus, conforme algumas outras passagens do Antigo Testamento?).
Curiosamente, o livro Actos
dos Apóstolos tem uma versão sobre o fim da vida de Judas semelhante à de Mateus, mas contraditório nos detalhes.
Façamos a comparação, andando um pouco para trás na narrativa de Mateus:
Mateus
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Actos
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Mateus 27:3-8 Então Judas..., devolveu, compungido, as
trinta moedas de prata aos anciãos, dizendo: Pequei, traindo o sangue
inocente. Responderam eles: Que nos importa? Seja isto lá contigo. E tendo
ele atirado para dentro do santuário as moedas de prata, retirou-se, e foi
enforcar-se. Os principais sacerdotes, pois, tomaram as moedas de prata, e
disseram: Não é lícito metê-las no cofre das ofertas, porque é preço de
sangue. E, tendo deliberado em conselho, compraram com elas o campo do
oleiro, para servir de cemitério para os estrangeiros. Por isso tem sido
chamado aquele campo, até o dia de hoje, Campo de Sangue.
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Actos 1:18-19 (Ora, ele adquiriu um campo com o
salário da sua iniquidade; e precipitando-se, caiu prostrado e arrebentou
pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram. E tornou-se isto
conhecido de todos os habitantes de Jerusalém; de maneira que na própria
língua deles esse campo se chama Acéldama, isto é, Campo de Sangue.)
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O livro de Mateus
diz:
-
Judas,
arrependido da traição, devolveu o
dinheiro da traição e os sacerdotes compraram um terreno (de um oleiro, como se
fosse relevante...) com esse dinheiro;
-
Judas
cometeu suicídio enforcando-se (mostrando, mais uma vez, arrependimento, remorsos);
-
o Campo
de Sangue chama-se assim porque foi comprado com o “preço de sangue”.
O livro dos Actos
diz:
-
Judas
comprou um terreno com o dinheiro da traição;
-
Judas
caiu presumivelmente de um local alto (em muitas traduções lemos “atirou-se”,
insinuando suicídio, mas noutras entende-se uma queda acidental) e, quando
caiu, as suas entranhas derramaram-se;
-
o Campo
de Sangue chama-se assim por causa das entranhas derramadas.
Ao ler os evangelhos parece que Jesus poderia ser facilmente
capturado sem ser necessário um traidor, como podemos confirmar neste versículo
de Mateus:
Mateus 26:55 Disse Jesus à multidão naquela hora: Saístes com espadas e varapaus para me prender, como a um salteador? Todos os dias estava eu sentado no templo ensinando, e não me prendestes.
É, no mínimo, curioso que o traidor se chame Judas, que quer
dizer “judeu”, constituindo mais uma contribuição para a doutrina anti-semita
que sustenta que os judeus é que tramaram Jesus. Por outro lado, parece que o
episódio da traição já existia nas versões mais antigas de Marcos, sendo propagado para todos os outros evangelhos, mas o
facto de “Mateus” contribuir com tantos pormenores mostra que a personagem de Judas
estava ainda em fase de desenvolvimento. Por exemplo, Mateus apresenta Judas como arrependido e que se suicida por
remorsos, uma informação que não ocorre em Marcos.
Sobre a traição por parte do apóstolo Judas Iscariotes, é
fácil encontrar uma inconsistência: numa passagem anterior, Jesus profetiza aos
apóstolos, incluindo Judas, que eles se sentariam nos doze tronos para governar
as tribos de Israel:
Mateus 19:28 Ao que lhe disse Jesus: Em verdade vos digo a vós que me seguistes, que na regeneração, quando o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, sentar-vos-eis também vós sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel.
Ora, se isto é verdade e Judas atraiçoou Jesus, então somos
obrigados a considerar uma das seguintes hipóteses:
-
Jesus
falhou a sua profecia porque esta não se aplica a um dos apóstolos;
-
ou a
profecia está correcta: Judas, apesar de ter atraiçoado Jesus, vai mesmo
sentar-se num dos doze tronos;
-
ou,
então, o autor desta passagem desconhecia a passagem sobre o Judas traidor
porque a passagem sobre a traição foi inserida depois;
Para finalizar, o texto de Mateus 27:3-8 tem ainda um dado
muito importante: o versículo 8 diz “... tem sido chamado aquele campo, até o
dia de hoje, ...”. Note-se que a expressão “até o dia de hoje” revela que o
autor estava claramente a relatar acontecimentos remotos. Não é suposto o nome
de um lugar mudar em pouco tempo. Isto assegura-nos que o Evangelho Segundo Mateus ou, pelo menos, esta passagem sobre a
traição tenha sido escrito muito depois dos hipotéticos eventos que relata.
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