domingo, 18 de novembro de 2012

Lucas - A Grande Omissão






Quem rasgou Marcos?

Partindo do pressuposto que Marcos foi uma das fontes principais para “Lucas”, é surpreendente Lucas não incluir nenhum do material fornecido por Marcos num grande bloco que vai desde Marcos 6:47 até 8:27a (primeira metade do versículo 8:27). Isto fez com que dez episódios consecutivos da narrativa de Marcos ficassem excluidos da versão de Lucas.

Façamos a comparação dos textos em causa. O bloco de Marcos que foi omitido começa no final do episódio onde Jesus alimenta 5.000 fiéis com apenas uns poucos pães e peixes:

Marcos 6, 7, 8
Lucas 9
[primeiro milagre da multiplicação dos pães e dos peixes]
6:42 E todos comeram e se fartaram.
6:43 Em seguida, recolheram doze cestos cheios dos pedaços de pão e de peixe.
6:44 Ora, os que comeram os pães eram cinco mil homens.
[milagre da multiplicação dos pães e dos peixes]
9:17 Todos, pois, comeram e se fartaram; e foram levantados, do que lhes sobejou, doze cestos de pedaços.
6:45 Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no barco e passar adiante, para o outro lado, a Betsaida, enquanto ele despedia a multidão.
6:46 E, tendo-a despedido, foi ao monte para orar.
9:18 Enquanto ele estava orando à parte





[a grande omissão - Lucas omite vários episódios consecutivoss da narrativa de Marcos]
6:47 Chegada a tardinha, estava o barco no meio do mar, e ele sozinho em terra.
6:48 até 8:26, contém as seguintes passagens
 - Jesus anda sobre as águas
 - Jesus à volta de Genezaré
 - sobre a pureza e impureza
 - declara puros todos os alimentos
 - a mulher grega, a quem Jesus chamou cão
 - a viagem a Sídon e Decapolis
 - a cura do surdo mudo (com cuspo)
 - Segundo milagre da multiplicação dos alimentos: Jesus alimenta quatro mil
 - os discípulos, agindo como estúpidos, discutem porque não têm pão
 - a cura do cego em Betsaida (com cuspo)
8:27 E saiu Jesus com os seus discípulos para as aldeias de Cesaréia de Filipe,
e no caminho interrogou os discípulos, dizendo: Quem dizem os homens que eu sou?
achavam-se com ele somente seus discípulos; e perguntou-lhes: Quem dizem as multidões que eu sou?
8:28 Responderam-lhe eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros: Algum dos profetas.
9:19 Responderam eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros, que um dos antigos profetas se levantou.


Repare-se como “Lucas” fez a “colagem” do versículo de Marcos 6:46 com a segunda parte do versículo de Marcos 8:27, omitindo tudo o que estava de permeio.

Surgem então duas hipóteses:
-          “Lucas” conhecia a totalidade do texto de “Marcos”, mas resolveu deliberadamente encurtar a sua própria versão;
-          “Lucas” não conhecia a totalidade do texto de “Marcos”, pois tinha uma cópia danificada do texto onde faltava este bloco;



Quem rasgou Mateus?
Partindo, por outro lado, do pressuposto que Mateus foi uma das fontes principais para “Lucas”, façamos a comparação dos textos em causa. O bloco de Mateus que foi omitido começa no final do episódio onde Jesus alimenta 5.000 fiéis com apenas uns poucos pães e peixes:

Mateus 14, 15, 16
Lucas 9
[primeiro milagre da multiplicação dos pães e dos peixes]
14:20 E comeram todos e saciaram-se, e levantaram dos pedaços que sobejaram doze cestos cheios. 
14:21 E os que comeram foram quase cinco mil homens, além das mulheres e crianças.
[milagre da multiplicação dos pães e dos peixes]
9:17 Todos, pois, comeram e se fartaram; e foram levantados, do que lhes sobejou, doze cestos de pedaços.
14:22 E logo ordenou Jesus que os seus discípulos entrassem no barco e fossem adiante, para a outra banda, enquanto despedia a multidão.
14:23 E, despedida a multidão, subiu ao monte para orar à parte. E, chegada já a tarde, estava ali só. 
9:18 Enquanto ele estava orando à parte





[a grande omissão - Lucas omite vários episódios consecutivos da narrativa de Mateus]
14:24 E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas, porque o vento era contrário.
14:25 até 16:12, contém as seguintes passagens:
 - Jesus anda sobre as águas
 - Jesus à volta de Genezaré
 - sobre a pureza e impureza
 - declara puros todos os alimentos
 - a mulher grega, a quem Jesus chamou cão
 - Jesus faz curas em doentes
 - Segundo milagre da multiplicação dos alimentos: Jesus alimenta quatro mil
 - os discípulos, agindo como estúpidos, discutem porque não têm pão
16:13 E saiu Jesus com os seus discípulos para as aldeias de Cesaréia de Filipe,
interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?
achavam-se com ele somente seus discípulos; e perguntou-lhes: Quem dizem as multidões que eu sou?
16:14 E eles disseram: Uns, João Batista; outros, Elias, e outros, Jeremias ou um dos profetas.
9:19 Responderam eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros, que um dos antigos profetas se levantou.


Hipótese: “Lucas” conhecia integralmente o texto

Esta primeira hipótese não explica a “colagem” que Lucas fez, juntando partes de duas frases que fazem parte de contextos diferente. Se Lucas quisesse encurtar a sua narrativa, cortaria episódios inteiros, não iria colar metade de um episódio com metade de outro muito mais à frente.


Hipótese: a versão danificada de Marcos

Antes de avançarmos para esta hipótese é necessário lembrar que, naquele tempo, a escrita não tinha pontuação, não tinha espaços entre as palavras, só havia letras maiúsculas e a mudança de linha fazia-se sem quaisquer regras:



Seria equivalente a escrever-se em português do seguinte modo:
ENQUANTOELEESTAVAORANDOAPARTEACHAVAMSECOMELESOMENTESEUSDISCIPULOSEPERGUNTOULHESQUEMDIZEMASMULTIDOESQUEEUSOURESPONDERAMELESUNSDIZEMJOAOOBAPTISTAOUTROSELIASEAINDAOUTROSQUEUMDOSANTIGOSPROFETASSELEVANTOU...

Numa situação normal, com um texto em perfeito estado, era já muito difícil a leitura de cada frase. A falta de um conjunto de linhas ou um grande bloco de texto complicaria apenas mais um pouco a leitura, mas o leitor poderia fazer um esforço para tentar “remendar” o que não conseguia ler. Ou seja, a falta de partes do texto não era notada pelo leitor.

Esta hipótese faz mais sentido, porque, tendo uma versão danificada, “Lucas” não poderia saber que as duas frases pertenciam a contextos diferentes. Mas, ao escolhermos esta hipótese, surgem mais duas hipóteses:
-          a cópia de Marcos que “Lucas” possuía foi acidentalmente danificada, perdendo parte do seu conteúdo;
-          a cópia de Marcos que “Lucas” possuía foi censurada por alguém, antes de chegar às mãos de “Lucas”, que subtraiu partes que considerou embaraçosas.

Para ambas hipóteses é necessário também lembrar que as cópias de livros eram extremamente raras. É perfeitamente aceitável que houvesse apenas uma cópia de Marcos para toda a comunidade onde “Lucas” vivia.

O embaraçoso episódio da mulher-cão (ver: "Marcos: A mulher-cão")

Podemos, finalmente, considerar que a cópia de Marcos que “Lucas” possuía, poderá ter sido censurada por alguém, por causa do muito embaraçoso episódio, que faz parte da “grande omissão de Lucas”, sobre uma mulher grega (helénica, de origem síria e fenícia) que pede ajuda a Jesus, mas Jesus recusa-se à primeira vez argumentando que “primeiro tem de alimentar os filhos, só depois os cães”:
Marcos 7:24-30 ... certa mulher, cuja filha estava possessa de um espírito imundo, ouvindo falar dele, veio e prostrou-se-lhe aos pés; (ora, a mulher era grega, de origem siro-fenícia) e rogava-lhe que expulsasse de sua filha o demônio. Respondeu-lhes Jesus: Deixa que primeiro se fartem os filhos; porque não é bom tomar o pão dos filhos e lança-lo aos cachorrinhos. Ela, porém, replicou, e disse-lhe: Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas dos filhos. Então ele lhe disse: Por essa palavra, vai; o demônio já saiu de tua filha. E, voltando ela para casa, achou a menina deitada sobre a cama, e que o demônio já havia saído.

Com esta frase o autor mostrava (deliberadamente ou não) que os judeus, incluindo Jesus, consideravam os não-judeus como seres inferiores equivalentes a cães. Esta posição seria inaceitável para uma comunidade cristã composta por não-judeus, pois nunca iriam aceitar um Salvador que praticasse esse tipo de discriminação.

Ora, é provável que "Lucas" pertencesse a uma comunidade grega (de Filipos). E uma cópia de Marcos poderá ter sido deliberadamente subtraída de algumas partes antes de chegar à comunidade a que “Lucas” pertencia. Provavelmente, por alguma pressa ou falta de habilidade com as mãos, alguém poderá ter destruido mais texto do que aquele que realmente desejava censurar.

Para finalizar esta questão, no livro Actos é evidente que o seu autor (possivelmente, pelo menos os primeiros capítulos, o mesmo que escreveu Lucas) não sabia que Jesus tinha declarado, em Marcos 7:18-19, numa passagem que também faz parte da “grande omissão de Lucas”, que todos os alimentos são bons para se comer. O autor de Actos descreve um episódio depois da morte de Jesus onde Pedro, confrontado com a questão da alimentação, é convidado por Jesus, numa visão, a comer alimentos considerados abomináveis para os judeus (Actos 10:9-16; detalhado na secção “Pedro e o lençol gigante”).

4 comentários:

  1. Olá, Paulo.
    Recebi seu "convite", postado em Peroratio e vim ver.
    Muito interessante.
    Vou acompanhar o blog.
    Um abraço,
    Osvaldo "Peroratio" Luiz Ribeiro

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  2. A mim parece-me que a passagem da mulher-cão é a ideia que Paulo mantinha de que a salvação será oferecida ao judeu, e depois ao grego, tal como um cão espera pelo pão enquanto os seus donos comem. Não tenho a certeza se é bem isto, mas poderiam esclarecer-me por favor? Obrigado :)

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  3. Parece-me que a passagem da mulher-cão tem a ver com uma das ideias que Paulo mantinha, que tem a ver com a salvação oferecida primeiro ao judeu e depois ao grego, tal como um cão espera pelo pão do seu dono, que lhe é oferecido depois, será que tem alguma coisa a ver com isso? Por favor esclareçam-me, obrigado :)

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    1. Obrigado pelo seu interesse.
      Paulo direccionou a sua actividade no sentido de converter não-judeus. Grande parte da sua actividade decorreu em território grego ou de cultura grega.
      No episódio de Marcos, penso que ter Jesus a chamar cão a uma mulher só porque era grega poderia ser considerado muito insultuoso e um factor de não aceitação da doutrina.

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