Apóstolos
Em João não existe
a distinção entre apóstolos e outros discípulos, todos os seguidores são
chamados discípulos. A palavra “apóstolo” nunca ocorre mas existe a menção
tímida da expressão “os doze” por quatro vezes:
-
no capítulo 6, em três versículos quase
consecutivos (João 6:67, 70, 71) sobre Judas;
-
quando
se refere a Tomé (João 20:24) como sendo um dos doze.
O autor nunca enumera quem são “os doze”. Não faz muito
sentido que o autor mencione esta expressão sem enumerar quem são esses doze a
não ser que a intenção do autor fosse escrever um livro que complementasse outro
ou outros; um livro que contasse o que os outros ainda não contaram. Ou, então,
o mais importante para o autor seria transmitir que Jesus estava rodeado por
doze apóstolos, embora a maior parte destes fossem irrelevantes para a
história, conferindo-lhe uma configuração zodiacal, como se rodeado pelos doze
signos do Zodíaco.
Nem todas as personagens que nos evangelhos sinópticos são
identificadas como apóstolos são sequer referidas em João. Apenas as seguintes personagens foram contempladas na
composição de “João”:
-
Simão Pedro é referido em muitas situações;
-
André,
irmão de Simão Pedro, é referido como sendo inicialmente discípulo de João
Baptista;
-
Filipe
também recebe muita atenção na redacção de João;
-
Tomé, é
chamado de Gémeo (gr. Didymus, mas em
aramaico Tomé significa “Gémeo” também), aparece como céptico sobre a aparição
de Jesus;
-
Judas
Iscariotes, como nos outros evangelhos, é referido no episódio da traição mas
também em passagens anteriores (João 6:71; 12:4; 13:2) constantemente referido
como “aquele que o iria traír”; para além disso Judas aqui é tesoureiro do
grupo;
-
não há
referências directas a Tiago e seu irmão João, sendo apenas referidos como “os
filhos de Zebedeu” apenas num versículo que faz parte de uma provável inserção
posterior (João 21:2).
Nas passagens onde estes discípulos são referidos, também surgem
os seguintes, desconhecidos nos sinópticos mas aparentemente com a mesma
importância:
-
Natanael
de Caná;
-
um
anónimo referido como “o discípulo que Jesus amava”;
Para defender a coerência entre João e os sinópticos, a tradição defende que Natanael é o apóstolo
Bartolomeu, sintetizando o nome Natanael bar Tolomeu (filho de Tolomeu), e que
o “discípulo que Jesus amava” é o apóstolo João filho de Zebedeu.
“João” conta de uma maneira muito diferente como é que André
e Pedro foram recrutados. Diz que André e outro (anónimo) eram inicialmente
discípulos de João Baptista e que se juntaram a Jesus. Depois, André foi buscar
o seu irmão Pedro. Tudo isto passa-se em Betânia “além do Jordão” (na margem
oriental do Jordão) e não na Galiléia. Nunca se menciona que alguns discípulos
eram pescadores, a não ser no capítulo 21 (que pensa-se ser, todo o capítulo,
uma inserção tardia no Evangelho de João)
em que Pedro diz “Vou pescar”.
João 1:28-43 Estas coisas aconteceram em Betânia, além do Jordão, onde João estava batizando. No dia seguinte João viu Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. ...No dia seguinte João estava outra vez ali, com dois dos seus discípulos ... Aqueles dois discípulos ouviram-no dizer isto, e seguiram a Jesus. ... André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram João falar, e que seguiram a Jesus. Ele achou primeiro a seu irmão Simão, e disse-lhe: Havemos achado o Messias (que, traduzido, quer dizer Cristo). E o levou a Jesus. Jesus, fixando nele o olhar, disse: Tu és Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro). No dia seguinte Jesus resolveu partir para a Galiléia, e achando a Filipe disse-lhe: Segue-me. ...
Para além disso, estes discípulos reconhecem
instantaneamente Jesus como sendo o Messias, Filho de Deus e Rei de Israel. Não
são nada semelhantes àqueles cépticos apáticos que aparecem nos primeiros
capítulos de Marcos.
Os seguintes personagens, identificados como apóstolos nos
sinópticos, são completamente ignorados por “João”:
-
Mateus
(que no Evangelho Segundo Mateus é o cobrador
de impostos);
-
Bartolomeu
(sem considerar a tradicional identificação com Natanael);
-
Tiago,
filho de Alfeu;
-
Tadeu; mas
é mencionado um Judas “não Iscariotes” que aparece fazendo apenas uma pergunta
a Jesus (João 14:22); este é, por tradição, o mesmo que o Judas filho de Tiago
que aparece em Lucas no lugar de um Tadeu
conforme os livros de Marcos e Mateus; estes dois nomes são
sintetizados num só: Judas Tadeu;
-
Simão,
o zelote (ou cananita);
Como atenuante para “João”, nesta lista de personagens
omitidas, se exceptuarmos Mateus, estas têm pouca relevância nos sinópticos. Vejamos,
em sinopse, uma comparação dos nomes dos apóstolos nos quatro evangelhos:
Marcos 3:16-19
|
Mateus 10:2-4
|
Lucas 6:14-16
|
João
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(*) Simão
Pedro
|
(*) Simão Pedro
|
(*) Simão Pedro
|
(*) Simão Pedro,
Cefas
|
(*) André, irmão de
Pedro
|
(*) André, irmão de
Pedro
|
André, irmão de
Pedro
|
(*) André, irmão de
Pedro
|
(*) Tiago, filho de
Zebedeu
|
(*) Tiago, filho de
Zebedeu
|
(*) Tiago, filho de
Zebedeu
|
Os filhos de
Zebedeu (só no capítulo 21)
|
(*) João, irmão de
Tiago
|
(*) João, irmão de
Tiago
|
(*) João, irmão de
Tiago
|
|
Filipe
|
Filipe
|
Filipe
|
(*) Filipe
|
Bartolomeu
|
Bartolomeu
|
Bartolomeu
|
-
|
Mateus (o cobrador
de impostos chama-se Levi, filho de Alfeu)
|
(*) Mateus, o
cobrador de impostos
|
Mateus (o cobrador
de impostos chama-se Levi)
|
-
|
Tomé
|
Tomé
|
Tomé
|
(*) Tomé, o Gémeo
|
Tiago, filho de
Alfeu
|
Tiago, filho de
Alfeu
|
Tiago, filho de
Alfeu
|
-
|
Tadeu
|
Tadeu
|
Judas, irmão de
Tiago
|
(*) Judas “não
Iscariotes”
|
Simão, o cananeu
|
Simão Cananeu
|
Simão, o zelote
|
-
|
(*) Judas
Iscariotes
|
(*) Judas
Iscariotes
|
(*) Judas
Iscariotes
|
(*) Judas
Iscariotes
|
Neste quadro estão
assinaladas, com um asterisco (*), as personagens com importância na narrativa,
isto é, aquelas que intervêm na acção ou no diálogo de cada evangelho e não
aquelas que simplesmente são nomeadas. Podemos ver que, em João, as personagens Filipe e Tomé ganham profundidade e os filhos
de Zebedeu (supostamente Tiago e João, embora não sejam referidos por nome)
perdem notoriedade. E, para mais, os filhos de Zebedeu só são referidos no
capítulo final, o capítulo 21 que, certamente, foi adicionado mais tarde.
A diferença mais flagrante é a “despromoção” de Tiago e
João, que, juntamente com Pedro, eram os companheiros da máxima confiança de
Jesus nos evangelhos sinópticos. Para compensar esta perda de notoriedade, a
tradição tratou de afirmar que João
foi escrito pelo próprio apóstolo João, filho de Zebedeu, o qual não quis
chamar muita atenção para o seu próprio papel no evangelho, escondendo-se no
anonimato de “o discípulo amado”.
Completamente obscuros permanecem Tiago filho de Alfeu e
Simão Cananeu (ou “o zelote”), no que toca às descrições encontradas no Novo Testamento. No entanto, a
elasticidade das narrativas evangélicas, permite uma reconstrução interessante:
partindo da lista de irmãos de Jesus, conforme descrita em Marcos, podemos facilmente associá-la à lista de apóstolos,
conforme a enumeração de Lucas.
Irmãos de Jesus (Marcos 6:3)
|
Apóstolos (Lucas 6:14-16)
|
José
|
Tomé (aramaico Tôm,
gémeo) não era um nome próprio, seria um irmão gémeo de Jesus; portanto, José
seria Tomé;
|
Tiago
|
Tiago, filho de Alfeu (Alfeu incluido talvez por
manipulação da narrativa);
|
Judas
|
Judas filho de Tiago, pode ter sido, numa versão anterior
de Lucas, “Judas irmão de Tiago”;
|
Simão
|
Simão, o zelote
|
Será que houve, algures no processo de construção das
narrativas evangélicas, o desejo de incluir os “irmãos de Jesus” na lista de
“apóstolos”? Será que houve, posteriormente, uma tentativa de mascarar esse
intuito?
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