domingo, 25 de fevereiro de 2018

Tertuliano - Contra Marcion




Tertuliano

Quintus Septimius Florens Tertullianus (160 a 220 EC) era, alegadamente, filho de um centurião romano de Cartago (na actual Tunísia).

Foi um prolífico autor de obras de apologia do cristianismo. Muito do que escreveu tinha como objectivo o combate às ideias que considerava heréticas mas, no fim da sua vida, ironicamente, acabou por aderir ao montanismo, uma denominação que foi considerada herética pela Igreja de Roma, a igreja dominante e futura Igreja Católica. Uma parte das ideias de Tertuliano acabaram por ser consideradas heréticas. Mas apesar disso uma boa porção das suas obras sobreviveram.

Entre outras obras "contra" escritas por Tertuliano, encontram-se: Contra Escápula, Contra Marcion, Contra Hermógenes e Contra os Valentinianos.

A obra Contra Marcion é interessante por permitir recuperar uma boa parte dos textos do marcionismo, nomeadamente o Evangelho adoptado por Marcion que seria semelhante do Evangelho de Lucas.


Contra Marcion

A obra "Contra Marcion" é um trabalho de Tertuliano, distribuído por 5 livros. Este trabalho, escrito entre 195 e 220 EC, é uma forte censura ao marcionismo, a doutrina divulgada por Marcion de Sínope.

Marcion de Sínope odiava o judaísmo, o Antigo Testamento, e qualquer pedaço do Novo Testamento - livro ou passagem - que não concordasse com ele. Isso obrigou as igrejas dominantes - principalmente a Igreja de Roma - a começar a definir um cânone (uma lista de textos permitidos). Marcion acreditava que o Deus Pai era diferente de Yahveh, o Deus detestável do Antigo Testamento. Nenhuma da literatura dele sobreviveu, o que torna a obra "Contra Marcion" a fonte primária do marcionismo.


Livros I e II

No livro I, capítulo 1, Tertuliano ocupa-se de atacar Marcion e o seu país de origem, o Pontus (zona geográfica que agora pertence à Turquia, junto ao Mar Negro). Diz que os nativos desta terra são bárbaros e incivilizados; que as mulheres do Pontus andam com os seios descobertos e gostam mais da guerra do que do casamento; e que Marcion era mais bárbaro que os animais da sua terra.

No livro I, capítulo 13, Tertuliano diz que os marcionistas depreciam a Criação alegando que Criador não seria o Deus Pai, mas um deus menor (demiurgo) que identificam com o Yahveh do Antigo Testamento.

Um boa parte da discussão dos livros I e II gira à volta da refutação do dualismo de Marcion - a existência do Deus Pai e de um outro deus, distinto e menor, que seria o Criador.


Livro III

No livro III, Tertuliano tenta demonstrar que Jesus é o Messias anunciado no Antigo Testamento.

No capítulo 5, desenvolve uma discussão sobre a escritura ter, às vezes, de ser entendida alegoricamente, e tenta explicar como funciona a profecia judaica.


Livro IV

No seu quarto livro de Contra Marcion, Tertuliano compara o evangelho marcionita com o evangelho de Lucas.

A partir das citações que Tertuliano faz, no capítulo 7, acerca do "Evangelho de Marcion" podemos perceber que este evangelho começaria assim:
"No décimo quinto ano de Tibério César, Jesus desceu [do céu] para Cafarnaum, uma cidade na Galiléia, e ensinou [na sinagoga] no Sabbath."

Tertuliano repreende aqui a doutrina de Marcion que ensinava que Jesus tinha descido dos céus ao invés de ter nascido como um humano.

O Evangelho de Lucas refere um censo (registo oficial da população) que decorreu durante o tempo em que Quirinius era governador da Síria (a partir de 6 EC) que serviu de pretexto para Maria e José viajarem para Belém, onde viria a nascer Jesus. Mas Tertuliano, no capítulo 19, atribui este censo a Gaius Sentius Saturninus, que foi governador da Síria 15 anos antes (de 9 a 7 AEC) de Quirinius.
Tertuliano, Contra Marcion, Livro IV, capítulo 19 
...há uma prova histórica de que, neste momento, um censo havia sido tomado na Judéia por Sentius Saturninus, que poderia ter satisfeito sua indagação sobre a família e a descendência de Cristo.

Existe, portanto, um lapso de cerca de 15 anos entre os dois governadores. Isto pode constituir evidência de que a versão do Evangelho de Lucas que Tertuliano conhecia ainda não teria a referência ao governador Quirinius.
Lucas 2:1-2 Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirínio era governador da Síria.

No capítulo 36, Tertuliano indica que os registos do recenseamento de Jesus certamente seriam uma boa prova de que Jesus era descendente do rei David, mas, lamentavelmente, já estariam irremediavelmente perdidos (no seu tempo, em 200 EC).

No capítulo 39, Tertuliano rejeita a ideia de que a profecia de Cristo de "guerras" nos "tempos finais" se referia à revolta judaica de 66 a 73 EC. É natural, pois esta revolta foi só a primeira de três grandes guerras dos judeus contra os romanos:
 - Primeira guerra, Grande Revolta da Judeia - de 66 a 73 EC, resolvida pelos generais romanos Flávio Vespasiano e Flávio Tito;
 - Segunda guerra, Revolta da Diáspora ou Guerra de Kitos - de 115 a 117 EC, resolvida pelo general romano Lusius Quietus ("Kitos");
 - Terceira guerra, Revolta de Bar Kokhba - de 132 a 136 EC, instigada por Simão Bar Kokhba, necessitou de muitas unidades militares romanas para ser contida e resolvida.

Quando Tertuliano escreveu, por volta de 195-200 EC, já tinha decorrido mais de 60 anos desde a última guerra entre romanos e judeus e não havia nenhum sinal de aproximação de "tempos finais". Portanto, a abordagem apocalíptica/escatológica (relativa ao "fim dos tempos") da primeira geração de cristãos estava definitivamente encerrada.


Voltando ao capítulo 7, Tertuliano critica a abordagem docética de Marcion na qual Jesus descia do céu para ser visto na Galileia, contrária à narrativa dos evangelhos (versões canónicas de Mateus e Lucas) que dizem que Jesus cresceu e viveu na Galileia.

Tertuliano, Contra Marcion, Livro IV, capítulo 7
"No décimo quinto ano do reinado de Tibério" - esta é a proposição de Marcião - "ele desceu à cidade de Cafarnaum na Galiléia" -  claro que significando que desceu do céu do Criador [Yahveh]. Ao que ele já havia descido de seu próprio céu [do Deus Pai].
Como tinha sido então o seu itinerário, para ele ser descrito como primeiro descendo de seu próprio céu e depois do céu do Criador? Pois, por que hei-de eu evitar censurar estas partes da frase uma vez que não satisfazem a exigência de uma narrativa, mas sempre acabam numa mentira ?
...
Agora, porém, quero também saber o resto da sua viagem para baixo, assumindo que ele desceu. Pois não deve ser muito agradável perguntar se é suposto ele ter sido visto em qualquer lugar. ... (Apareceu repentinamente ou foi visto durante a sua descida?)
É, pois, muito mau Romulus ter tido em Proculus uma testemunha de sua ascensão ao céu , quando o Cristo não poderia encontrar qualquer um para anunciar sua descida do céu;  justo como se a subida de um e da descida do outro, não foram efectuadas em uma e a mesma escada de falsidade ! 

Tertuliano critica as aparições de Jesus na doutrina de Marcion, porque nesta não é explicado como é que se sabe que Jesus desceu dos céus para ser visto, uma vez que ninguém observou Jesus a descer dos céus. Compara, depois, com a história de Rómulus, o primeiro rei de Roma, que, segundo a história contada por Tito Lívio e Plutarco, foi visto a subir e a descer dos céus por um homem chamado Próculo.


Livro V

No livro V, Tertuliano, confronta a doutrina de Marcion com a doutrina do apóstolo Paulo.

No capítulo 19, a "crença principal" de Marcion é identificada como proveniente da escola dos epicuristas e dos estóicos:
Tertuliano, Contra Marcion, Livro V, capítulo 19  
Mas, uma vez por todas, percebamos que o termo principal do credo de Marcion vem da escola de Epicuro, implicando que o Senhor é estúpido e indiferente. Por isso, ele se recusa a dizer que Ele é um agente a ser temido. Além disso, do lado dos estóicos, ele traz a matéria, e a coloca em paridade com o Divino Criador.

Tertuliano deve ter lido o episódio de Actos dos Apóstolos em que o apóstolo Paulo "debate" com filósofos epicuristas e estóicos em Atenas.

No capítulo 20 ele afirma: "por todo o lado, a maioria das pessoas agora pensam da nossa maneira, e não de modo herético". Que ironia Tertuliano ter, depois, aderido a uma denominação cristã - o montanismo - considerada herética pela Igreja de Roma!



Referências:
 - Against Marcion, Tertullian, Book 4
 - Against Marcion, Tertullian, Book 5
 - https://en.wikipedia.org/wiki/Tertullian


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