domingo, 9 de setembro de 2018

Século II - Plínio, o Jovem




Plínio, o Jovem (c. 61 a 114 EC)


Como era o cristianismo nos séculos I e II?.

Os primeiros escritos que temos atribuídos a cristãos são as cartas de Paulo - as cartas autênticas de Paulo, já que várias delas são falsificações, mas há pelo menos sete cartas autênticas - escritas nos anos 50 EC.

Nas suas cartas, Paulo refere que a sua actividade já teria uns 15 anos, admitindo, também, que existiam uns outros apóstolos em actividade em tempos anteriores a ele. Portanto é provável que o grupo a que Paulo pertencia tenha tido origem nos anos 20 ou 30 EC.

Os evangelhos canónicos só aparecem cerca de vinte a quarenta anos depois das cartas de Paulo - foram escritos entre 70 e 110 EC.

Mas a primeira vez que lemos genuinamente sobre os cristãos de parte de algum autor não cristão (há algumas afirmações sobre Josefo mencionar cristãos antes mas são duvidosas) vem de uma carta de Plínio, o Jovem (c. 61 a 114 EC) ao imperador Trajano em 112 EC.

Plínio, o Jovem, quando era governador da Bitínia (que fica no que é agora o norte da Turquia), recebeu uma denúncia contra cristãos. Plínio não sabia o que fazer sobre isso, então escreveu ao imperador Trajano (imperador de 98 a 117 EC), dizendo basicamente "Eu nunca lidei com cristãos antes, e não sei de que crimes eles são supostamente culpados", explicando o procedimento que considerou adequado, e perguntando ao imperador Trajano se tinha procedido bem.

Carta de Plínio a Trajano (carta 97)  
Senhor,
É regra para mim submeter-te todos os assuntos sobre os quais tenho dúvidas, pois quem mais poderia orientar-me melhor em minhas hesitações ou me instruir na minha ignorância? 
Nunca participei de inquéritos contra os cristãos. Assim, não sei a quais factos e em que medidas devem ser aplicadas penas ou investigações judiciárias. Também me pergunto, não sem perplexidade: deve-se considerar algo com relação à idade, ou a criança deve ser tratada da mesma forma que o adulto? Deve-se perdoar o arrependido ou o cristão não lucra nada tendo voltado atrás? É punido o nome de “cristãos”, mesmo sem crimes, ou são punidos os crimes que o nome deles implica? 
Esta foi a regra que eu segui diante dos que me foram deferidos como cristãos: perguntei a eles mesmos se eram cristãos; aos que respondiam afirmativamente, repeti uma segunda e uma terceira vez a pergunta, ameaçando-os com o suplício. Os que persistiram mandei executá-los pois eu não duvidava que, seja qual for a culpa, a teimosia e a obstinação inflexível deveriam ser punidas. Outros, cidadãos romanos portadores da mesma loucura, pus no rol dos que devem ser enviados a Roma. 
Bem cedo, as acusações se espalharam, como geralmente acontece, por causa dos procedimentos em andamento, e vários incidentes ocorreram. 
Recebi uma denúncia anónima, contendo grande número de nomes. Os que negavam ser cristãos ou tê-lo sido, se invocassem os deuses segundo a fórmula que havia estabelecido, se fizessem sacrifícios com incenso e vinho para a tua imagem (que eu havia mandado trazer junto com as estátuas dos deuses) e, se além disso, amaldiçoavam a Cristo – coisas estas que são impossíveis de se obter dos verdadeiros cristãos – achei melhor libertá-los. 
Outros, cujos nomes haviam sido fornecidos por um denunciante, disseram ser cristãos e depois o negaram: haviam sido e depois deixaram de ser, alguns há três anos, outros há mais tempo, alguns até há vinte anos. Todos estes adoraram a tua imagem e as estátuas dos deuses e amaldiçoaram a Cristo, porém, afirmaram que a culpa deles, ou o erro, não passava do costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer do sol, para cantar um hino a Cristo como a um deus; de obrigarem-se, por juramento, a não cometer crimes, roubos, latrocínios e adultérios, a não faltar com a palavra dada e não negar um depósito exigido na justiça. Findos estes ritos, tinham o costume de se separarem e de se reunirem novamente para uma refeição comum e inocente, sendo que tinham renunciado à esta prática após a publicação de um edito teu onde, segundo as tuas ordens, se proibiam as associações secretas. 
Então achei necessário arrancar a verdade, por meio da tortura, de duas escravas que eram chamadas ministrae, mas nada descobri além de uma superstição irracional e sem medida. Por isso, suspendi o inquérito para recorrer ao teu conselho.
O assunto parece-me merecer a tua opinião, principalmente por causa do grande número de acusados. Há uma multidão de todas as idades, de todas as condições e dos dois sexos, que estão ou estarão em perigo, não apenas nas cidades mas também nas aldeias e campos onde se espalha o contágio dessa superstição; contudo, creio ser possível contê-la e exterminá-la.
Com certeza, sei que os templos desertos até há pouco, começam a ser novamente frequentados; que as solenidades sagradas até há pouco interrompidas, são retomadas; e que, por toda a parte, voltam a vender-se a carne das vítimas, até há pouco sem compradores. Disto pode-se concluir que uma multidão de pessoas poderia ser recuperada se fosse aceite o arrependimento delas.


Temos também a carta do imperador Trajano de resposta:

Seguiste a atitude correta, exactamente a que devias ter, no exame das causas daqueles que te foram denunciados como cristãos. 
Não há como se estabelecer uma regra geral, que tenha valor de norma fixa. [Porém,] não deve ser objecto de investigação por iniciativa oficial. Se forem denunciados e confessarem, devem ser condenados observando-se a seguinte restrição: aquele que negar ser cristão, mesmo sendo suspeito com relação ao passado, e oferecer prova clara disso, sacrificando aos nossos deuses, seja perdoado por seu arrependimento.
Quanto às denúncias anónimas, não devem ser consideradas em nenhuma acusação, pois são um exemplo detestável e não são dignas da nossa época.


É importante referir que esta altura já os Evangelhos existiam por cerca de trinta anos.

Mas quem era Plínio, o Jovem?
  • Nasceu em 61 EC - por volta do tempo do incêndio de Roma, sobre o qual Nero alegadamente culpou os cristãos;
  • Foi um senador romano por 25 anos;
  • Foi o equivalente ao chefe da polícia de Roma, durante vários anos;
  • Foi o equivalente de Procurador Geral para todo o império por vários anos;
  • Foi co-presidente de todas as províncias - o posto mais elevado que se poderia ter, respondendo directamente ao próprio imperador;
  • Foi governador de várias províncias;

Ele teve todos estes cargos antes de ele escrever esta carta sobre os cristãos por volta de 112 EC (já perto do fim da sua vida).

É importante considerar isso porque se houvesse alguém no Império Romano que soubesse algo sobre os cristãos, deveria ser Plínio, mas ele demonstra não saber nada sobre os cristãos, como se nunca tivesse estado presente num julgamento de cristãos nem soubesse do que eles poderiam ser acusados.

O que isso indica é que, mesmo em 112 EC, para uma religião que começou nos anos 30 EC, os cristãos eram um movimento muito insignificante. Sim, depois de quase 80 anos de evangelização da religião em muitas comunidades do império, os cristãos ainda passavam despercebidos face às autoridades romanas!

Plínio, então, alegou que havia uma lei na sua província (e em várias outras províncias neste tempo) contra a associações ilegais. Tipicamente, os governos proibiam associações de qualquer tipo, mas eventualmente atribuíam licenças a alguns grupos. Os grupos que se reuniam sem obter uma licença do governador eram considerados uma ameaça à ordem pública ou potencial traição ao estado.

Os cristãos referidos na denúncia que Plínio recebeu não tinham uma licença e, basicamente, Plínio decidiu processá-los por associação ilegal - não por serem cristãos ou por seguirem uma religião diferente da religião romana mas simplesmente pela razão política de se reunirem sem uma licença do governo.

A história oficial da Igreja refere que o cristianismo teve uma crescimento formidável em número de adeptos logo a partir de 33 EC. Mas a inesperada ignorância de Plínio trai este conceito.

Na realidade, em 112 EC, o cristianismo era um pequeno culto marginal - só descolou e dominou os números da população depois de Constantino (272-337 EC), o primeiro imperador que se converteu ao cristianismo.

Outro conceito que a ignorância de Plínio sobre os cristãos trai é a alegação (por parte de Tácito) de que Nero culpou os cristãos do incêndio de Roma em 64 EC. Se em 112 EC os cristãos eram desconhecidos para Plínio, como é que eram suficientemente conhecidos para Nero os culpar (justamente ou injustamente) de um crime em 64 EC? Plínio deveria, no mínimo, saber que os cristãos já tinham sido acusados anteriormente (50 anos antes) de um grave crime.


Referências:
 - Letters of Pliny the Younger and the Emperor Trajan
 - Pliny the Younger on Christians


sábado, 30 de junho de 2018

Resumo do século I




Alguns acontecimentos do século I relevantes para a Palestina ou para o desenvolvimento do cristianismo:

7 AEC - Gaius Sentius Saturninus deixa de ser governador da Síria (Tertuliano, cerca de 200 anos depois, alegou que Jesus nasceu neste ano ou antes).
4 AEC - Morte de Herodes o Grande; os seus domínios na Palestina são divididos entre três dos seus filhos: Arquelau, Ântipas e Filipe. 
2 AEC - Atronges lidera uma revolta contra Arquelau. 
6 EC - Herodes Arquelau (filho de Herodes o Grande) é forçado a exilar-se da Judeia; a Judeia passa a ser governada directamente por Roma com o prefeito Coponius
6 EC - O governador romano da Síria, Quirinius, ordena um censo na Judeia para começar a cobrar impostos (o Evangelho de Lucas alega que foi neste ano que Jesus nasceu); Judas Galileu lidera uma revolta. 
9 EC - Ambívulus substitui Coponius como prefeito da Judeia. 
10 EC - Tito Lívio escreve sobre a deificação de Rómulus em "Ab Urbe Condita", como se Rómulus fosse uma personagem histórica. 
12 EC - Rufus substitui Ambívulus como prefeito da Judeia. 
14 EC - Augusto morre e Tibério sucede-lhe como imperador de Roma.
15 EC - Valerius Gratus substitui Rufus como prefeito da Judeia. 
19 EC - Com o objectivo de expulsar judeus de Roma, Tibério recruta 4000 homens judeus residentes para serviço militar na Sardenha.
20 EC - Filo de Alexandria, escreve sobre como o Antigo Testamento (a Bíblia dos judeus) tem mensagens codificadas sobre o Filho de Deus. 
26 EC - Pilatos chega à Judeia como novo prefeito, substituindo Valerius Gratus; a chegada dos seus soldados a Jerusalém causa tumultos na população. 
30 EC - Distúrbios em Jerusalém por Pilatos ter usado dinheiro do Templo para a obra de construção de um aqueduto (na passagem em que o historiador Flávio Josefo descreve este episódio sobre Pilatos foi feito um acréscimo fraudulento que diz que "foi neste tempo que Jesus existiu") 
34 EC - João Baptista tem grande sucesso como líder religioso e, aparentemente, conquista seguidores na Galileia, Pereia, Judeia e Nabateia. 
35 EC - Herodes Ântipas (filho de Herodes o Grande) repudia Fasaelis, filha do rei nabateu Aretas IV, para casar com Herodias; com isto acaba com a aliança entre Galileia e Nabateia. 
36 EC - João Baptista é preso e executado por criticar publicamente o divórcio e o novo casamento de Herodes Ântipas. 
36 EC - Pilatos é demitido na sequência de um violento incidente com um grupo de samaritanos fanáticos; Marcelus substitui Pilatos como prefeito da Judeia. 
37 EC - A Nabateia (Aretas IV) ataca a Galileia (Herodes Ântipas), violando a Pax Romana e causando enormes prejuízos naquele território; Ântipas apela ao imperador Tibério que auxiliasse numa retaliação contra a Nabateia; com a morte de Tibério, o ataque à Nabateia não chega a consumar-se.
37 EC - Tibério morre. Calígula torna-se imperador de Roma. 
37 EC - Nasce em Jerusalém Yosef ben Matityahu, mais tarde conhecido como Flávio Josefo
39 EC - Herodes Ântipas é forçado a exilar-se da Galiléia. Herodes Agripa, seu sobrinho, toma o seu lugar. 
40 EC - O imperador Calígula ordena a colocação de uma estátua sua no Templo de Jerusalém; Herodes Agripa (neto de Herodes o Grande) pede-lhe para reconsiderar. 
41 EC - Herodes Agripa torna-se rei da Judeia. 
41 EC - Calígula é assassinado e Cláudio torna-se imperador de Roma. 
41 EC - Filo de Alexandria escreve "Embaixada a Gaio [Calígula]" - sobre como integrou um conjunto de diplomatas judeus para convencer Calígula a desistir de colocar uma estátua no Templo de Jerusalém; nessa obra refere Pilatos como um exemplo daquilo que um governante não deverá fazer nunca.
44 EC - Herodes Agripa morre e Roma volta a governar a Judeia com Cuspius Fadus. 
44 EC - Teudas, alegado profeta, exortou o povo a segui-lo com seus pertences ao Jordão; prometeu que abriria caminho no rio secando-o, imitando Josué; o prefeito Cuspius Fadus enviou uma tropa de cavaleiros em busca dele e seu bando, matou muitos deles, e tomou outros cativos, decapitando Teudas. 
46 EC - Tiberius Alexandre, sobrinho de Filo de Alexandria, substitui Cuspius Fadus como prefeito da Judeia. 
48 EC - Cumanus substitui Tiberius Alexandre como prefeito da Judeia. 
49 EC (aprox.) - Cláudio expulsa os judeus de Roma (Suetónio diz que foi por causa de um agitador chamado Chrestus).
51 EC - Data provável da mais antiga carta de Paulo - aos Tessalonicenses
52 EC - Antónius Felix substitui Cumanus como prefeito da Judeia; Eleazar, salteador que actuou na Judeia durante vinte anos, desde a década de 30 EC, foi capturado por Antónius Félix. 
54 EC - Cláudio morre (envenenado) e Nero torna-se imperador de Roma. 
56 EC - Herodes Agripa II torna-se rei da Judeia, mas Roma continua a administrar o território. 
55 EC - Um alegado profeta conhecido como "O Egípcio" reuniu 30.000 adeptos, convocando-os para o Monte das Oliveiras, em frente a Jerusalém, prometendo que, a seu comando (imitando Josué em Jericó, Josué 6:20), os muros de Jerusalém cairiam e que ele e seus seguidores se apoderariam da cidade; o governador Antónius Félix, confrontou militarmente esta multidão; o profeta escapou, mas os que estavam com ele foram mortos ou capturados, e a multidão dispersou. 
60 EC - Festus substitui Antónius Felix como prefeito da Judeia; um "profeta libertador" de nome desconhecido, prometeu ao povo "independência e alívio das suas misérias" se o seguissem até o deserto; tanto o líder quanto os seguidores foram mortos pelas tropas de Festus.  
62 EC - O prefeito da Judeia, Festus, morre. Enquanto não chegou o substituto de Festus, houve uma disputa em Jerusalém pelo cargo de sumo-sacerdote. Um dos candidatos era Jesus filho de Damneus. O irmão deste Jesus chamava-se Tiago e foi apedrejado junto com outros.
62 EC - Albinus substitui Festus como prefeito da Judeia; um alegado profeta, Jesus ben Ananias, começa a pregar em Jerusalém com muito alarido; é julgado por Albinus. 
64 EC - Grande incêndio de Roma. É provável que Nero tenha apontado os judeus como culpados desse crime (em vez dos "cristãos" como registado mais tarde por Tácito).
66 EC - Começa a Grande Revolta dos Judeus contra os Romanos; Menahem ben Judas, filho de Judas Galileu, atacou a fortaleza Massada com a sua hoste e armou os seus seguidores com as armas lá armazenadas, seguindo para Jerusalem, onde capturou a fortaleza Antónia; encorajado pelo sucesso, comportou-se como um rei e reivindicou a liderança das tropas de todas as facções envolvidas na guerra contra os romanos; a revolta dos judeus foi confrontada pelos romanos comandados por Vespasiano e Tito. 
67 EC - Jesus ben Sapphias, começou por ser líder de um bando de marinheiros (pescadores?) e mendigos, mas com a revolta dos judeus na Galileia tornou-se principal magistrado na cidade de Tibérias. 
67 EC - Josefo, comandante militar na Galiléia pelo lado dos Judeus, rende-se a Vespasiano; torna-se colaborador dos romanos.  
68 EC - Clemente de Roma escreve carta aos Coríntios (antes da destruição do Templo de Jerusalém). 
68 EC - Nero suicida-se e segue-se um ano de instabilidade em Roma com três imperadores: Galba, Oto e Vitelius. 
69 EC - Jesus ben Ananias morre durante o cerco de Jerusalém. 
69 EC - Vespasiano retorna a Roma e torna-se imperador, iniciando a dinastia Flaviana. 
70 EC - Os romanos invadem Jerusalém e destroem o Templo; mesmo quando Jerusalém já estava em processo de destruição pelos romanos, um profeta anunciou ao povo que Deus lhes ordenou que viessem ao Templo, para ali receber sinais milagrosos de sua libertação; aqueles que vieram encontraram a morte nas chamas quando os romanos incendiaram o Templo. 
71 EC - Josefo viaja com Tito para Roma; fica a viver com a corte romana e adopta o nome Flávio Josefo em honra da família Flaviana. 
72 EC - Os romanos derrotam o último reduto da resistência judaica em Masada. 
75 EC - Flávio Josefo escreve "Guerra dos Judeus" onde descreve os feitos de Jesus ben Ananias
75 EC - Justus de Tibérias escreve sobre a história dos judeus desde tempos remotos até ao seu tempo. 
79 EC - Vespasiano morre; Tito, seu filho, torna-se imperador de Roma. 
80 EC - Data da provável elaboração do Evangelho de Marcos. 
81 EC - Tito morre; Domiciano, seu irmão, torna-se imperador de Roma. 
94 EC - Josefo escreve "Antiguidades Judaicas". 
96 EC - Domiciano é assassinado, extinguindo-se a dinastia Flaviana; Nerva torna-se imperador de Roma.
98 EC - Nerva morre; Trajano torna-se imperador de Roma, iniciando o melhor período do império, até 117 EC.


E sobre Jesus da Nazaré? Nada!

Ler também:
 - Evangelhos Canónicos: enquadramento histórico
 - Os romanos na Palestina
 - Século I - Profetas, Messias, Bandidos e Loucos
 - Resumo do Século II


Referências:


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Século I - Pilatos




Fontes

Cristãs

Nos evangelhos, Pilatos recusou-se a condenar Jesus de Nazaré mas, perante uma multidão de judeus histéricos, foi forçado a executá-lo. Infelizmente, a verdade histórica está pouco presente nos evangelhos, que são tratados teológicos. Escritos nas últimas décadas do primeiro século, os autores queriam mostrar que o cristianismo não era uma organização subversiva. Estas histórias sobre as dúvidas de Pilatos e sobre a agitação judaica podem ter sido exageradas, se não inventadas.

Judaicas

Se nos voltarmos para as fontes judaicas, encontramos o problema oposto. Escrevendo depois da guerra entre os judeus e os romanos de 66-70 EC, o historiador judeu Flávio Josefo tenta explicar ao público não-judeu que o mau exercício de poder por parte de certos governantes locais acrescentava combustível a um incêndio latente. Seria um recado às elites romanas para não escolherem governantes prepotentes para administrarem as províncias do império.

No texto conhecido como "Embaixada a Gaio [Calígula]", Filo de Alexandria inclui uma carta do príncipe judeu Herodes Agripa (neto de Herodes o Grande) ao imperador Calígula, escrita por volta de 40 EC, na qual a tentativa deste de ter a sua estátua erguida no Templo de Jerusalém é comparada à anterior tentativa de Pilatos de ter escudos pagãos colocadas no seu palácio de Jerusalém. Segundo o autor desta carta, Pilatos foi corrigido pelo imperador Tibério, cujo comportamento é apresentado como exemplar. Para apresentar Tibério como um governante virtuoso, Pilatos tinha que ser apresentado como incompetente. Além disso, deve-se notar que Agripa queria se tornar rei da Judéia; um retrato negativo da administração romana poderia convencer o imperador de que haveria uma necessidade prática para a sua ascensão. A carta serviu ambos os propósitos: Calígula recuou e Herodes Agripa foi nomeado rei da Judéia.


Cronologia

Para se entender melhor o que aqui se expõe, vejamos um resumo dos acontecimentos relevantes:
4 AEC - Morte de Herodes o Grande; os seus domínios na Palestina são divididos entre três dos seus filhos: Arquelau, Ântipas e Filipe.
6 EC - Herodes Arquelau (filho de Herodes o Grande) é forçado a exilar-se da Judeia; a Judeia passa a ser governada directamente por Roma com o prefeito Coponius.
26 EC - Pilatos chega à Judeia como novo prefeito, substituindo Valerius Gratus; a chegada dos seus soldados a Jerusalém causa tumultos na população.
30 EC - Distúrbios em Jerusalém por Pilatos ter usado dinheiro do Templo para a obra de construção de um aqueduto.
36 EC - Pilatos é demitido na sequência de um violento incidente com um grupo de samaritanos fanáticos; Marcelus substitui Pilatos como prefeito da Judeia.
40 EC - O imperador Calígula ordena a colocação de uma estátua sua no Templo de Jerusalém; Herodes Agripa (neto de Herodes o Grande) pede-lhe para reconsiderar.
41 EC - Herodes Agripa torna-se rei da Judeia.
41 EC - Filo de Alexandria escreve "Embaixado a Gaio [Calígula]".
66 EC - Começa a Grande Revolta dos Judeus contra os Romanos; a revolta foi confrontada pelos romanos comandados por Vespasiano e Tito.
67 EC - Flávio Josefo, comandante militar na Galiléia pelo lado dos Judeus, rende-se a Vespasiano; torna-se colaborador dos romanos.
75 EC - Flávio Josefo escreve "Guerra dos Judeus".
94 EC - Flávio Josefo escreve "Antiguidades Judaicas". 
Ver mais:

O incidente com os ícones pagãos

Pilatos chegou a Cesaréia (capital administrativa da Judeia) por volta de 26 EC. Quase imediatamente começaram os problemas: os seus soldados trouxeram símbolos pagãos para Jerusalém (cidade sagrada para os judeus) e quase toda a população marchou para Cesaréia, implorando ao novo governador que removesse estes objectos ofensivos.

Existem três relatórios sobre o incidente.

O mais antigo é escrito por Filo nos anos quarenta e é extremamente hostil a Pilatos, pelas razões acima descritas. Filo era um homem adulto em 26 EC, no entanto, não estava presente em Jerusalém, mas sim em Alexandria. Portanto, Filo escreve sobre algo que lhe terá sido relatado por terceiros.

Filo de Alexandria, "Embaixada a Gaio", 299-305
Pilatos era um oficial que havia sido nomeado prefeito da Judéia. Com a intenção de aborrecer os judeus em vez de honrar Tibério, ele colocou escudos dourados no palácio de Herodes, na Cidade Santa, que antes não tinha nenhuma figura nem nada mais que fosse proibido, mas apenas a inscrição mais breve possível, que afirmava duas coisas - o nome do dedicador e aquele da pessoa em cuja honra a dedicação foi feita.
Mas quando os judeus em geral souberam dessa acção, que já era amplamente conhecida, eles escolheram como seus porta-vozes quatro filhos do rei [Herodes, o Grande], que gozavam de prestígio igual ao dos reis, e seus descendentes, seus próprios oficiais, e imploraram a Pilatos que desfizesse a sua inovação na forma dos escudos, e não violasse seus costumes nativos, que até então tinham sido invariavelmente preservados por reis e imperadores.
Quando Pilatos, que era um homem de disposição inflexível, teimosa e cruel, obstinadamente recusou, eles gritaram: "Não cause uma revolta! Não cause uma guerra! Não quebre a paz! Desrespeito às nossas antigas leis não traz honra! Não faça de Tibério uma desculpa para insultar a nossa nação, pois ele não quer que nenhuma das nossas tradições seja abolida! Se você disser que ele [Tibério] deseja isso, mostre-nos algum decreto ou algo do tipo, para que deixemos de o incomodar e a passemos a apelar ao nosso senhor [Tibério] por meio de uma embaixada".
Essa última observação exasperava Pilatos sobretudo, pois temia que, se realmente enviassem uma embaixada, eles também fizessem acusações contra o resto de sua administração, especificando em detalhes sua venalidade, sua violência, seus roubos, seus assaltos, sua comportamento abusivo, suas freqüentes execuções de prisioneiros inexperientes e sua ferocidade selvagem sem fim.
Então, como ele era uma pessoa rancorosa e raivosa, ele estava em um sério dilema; pois ele não tinha a coragem de remover o que ele havia estabelecido, nem o desejo de fazer qualquer coisa que agradasse seus súbditos, mas ao mesmo tempo estava ciente da firmeza de Tibério nesses assuntos. Quando os oficiais judeus viram isso, e perceberam que Pilatos estava lamentando o que havia feito, embora não quisesse mostrá-lo, escreveram uma carta a Tibério, alegando o caso com a maior ênfase possível.
Que palavras, que ameaças proferidas por Tibério contra Pilatos quando ele as leu? Seria supérfluo descrever sua raiva, embora ele não fosse facilmente levado à raiva, já que sua reacção fala por si mesma.
Pois, imediatamente, sem sequer esperar até o dia seguinte, ele escreveu a Pilatos, censurando-o e repreendendo-o mil vezes por sua nova audácia e dizendo-lhe para remover os escudos imediatamente e levá-los da capital para a cidade litoral de Cesaréia, [...] a ser dedicada no templo de Augusto. Isso foi devidamente feito. Dessa forma, tanto a honra do imperador quanto a política tradicional em relação a Jerusalém foram igualmente preservadas.


Um outro relato sobre o incidente foi escrito por Flávio Josefo na obra "Guerra dos Judeus", que foi publicada nos anos setenta. O relato será baseado em fontes orais pois Josefo não era nascido em 26 EC.

Flávio Josefo, Guerra dos Judeus, Livro II, 9:2-3 
Pilatos, enviado por Tibério como prefeito da Judéia, introduziu em Jerusalém - coberto pela noite - as efígies de César naquilo que são chamadas de estandartes.
Este procedimento, quando o dia rompeu, despertou imensa comoção entre os judeus. Os que se encontravam no local estavam consternados, considerando que suas leis foram pisoteadas, já que essas leis não permitem que nenhuma imagem seja erguida na cidade; enquanto a indignação dos habitantes da cidade agitava os conterrâneos, que se aglomeravam em multidões.
Indo apressadamente ter com Pilatos a Cesaréia, os judeus imploraram que ele removesse os estandartes de Jerusalém e respeitasse as leis de seus antepassados. Quando Pilatos se recusou, eles prostraram-se ao redor de seu palácio e, durante cinco dias e noites, permaneceram imóveis naquela posição.
No dia seguinte, Pilatos sentou-se na tribuna do grande estádio e, convocando a multidão com a aparente intenção de se lhe dirigir, fez um sinal combinado com os soldados armados para cercar os judeus.
Encontrando-se cercados por um triplo anel de tropas, os judeus ficaram impressionados com essa visão inesperada. Pilatos, depois de ameaçar matá-los, se eles se recusassem a admitir as imagens de César, fez sinal aos soldados para desembainharem as espadas.
Então os judeus, como por acção conjunta, lançaram-se em um corpo no chão, estenderam seus pescoços, e exclamaram que preferiam morrer do que transgredira Lei. Superado com espanto diante de tão intenso zelo religioso, Pilatos deu ordens para a imediata remoção dos estandartes de Jerusalém.


Josefo recontou sua história, nos anos noventa, quando escreveu "Antiguidades Judaicas".
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 18.770
Pilatos, governador da Judéia, enviou dos quartéis de inverno de Cesaréia a Jerusalém tropas que traziam em seus estandartes a imagem do imperador, o que é tão contrário às nossas leis que nenhum outro governador antes dele o fizera.
As tropas entraram de noite, e por isso apenas no dia seguinte é que se percebeu. Imediatamente os judeus foram em grande número procurar Pilatos em Cesaréia e durante vários dias rogaram-lhe que removesse aqueles estandartes. Ele negou o pedido, dizendo que não o poderia fazer sem ofender o imperador. Mas como eles continuavam a insistir, ordenou aos seus soldados, no sétimo dia, que secretamente se conservassem em armas e subiu em seguida ao tribunal que mandara erguer de propósito no local dos exercícios públicos, porque era o lugar mais apropriado para escondê-los. 
Os judeus, porém, insistiam no pedido. Ele então deu o sinal aos soldados, que os envolveram imediatamente por todos os lados, e ameaçou mandar matá-los se continuassem a insistir e não voltassem logo cada qual para a sua casa. A essas palavras, eles lançaram-se todos por terra e apresentaram-lhe a garganta descoberta, para mostrar que a observância de suas leis lhes era muito mais cara que a própria vida. Aquela constância e zelo tão ardentes pela religião causou tanto assombro a Pilatos que ele ordenou que se levassem os estandartes de Jerusalém para Cesaréia.


Interpretação

Existem duas diferenças marcantes entre estes relatos. Para começar, Filo sabe sobre uma petição de quatro filhos do rei Herodes mas não nos diz nada sobre os cinco dias de protestos que Josefo refere. A outra diferença é que Flávio Josefo acha que o objecto da revolta eram estandartes do exército com a imagem do imperador, enquanto Filo menciona escudos dourados com uma inscrição. Diferenças como essas são esperadas quando a palavra falada é a forma mais importante de comunicação.

Quaisquer que sejam suas diferenças, Filo e Flávio ​​Josefo têm uma coisa em comum. Eles não contam a história do ponto de vista de Pilatos ou dos romanos, mas contam uma história judaica, que é extremamente hostil ao governador. Mas é improvável que Pilatos tenha deliberadamente provocado os judeus. Apenas um anti-semita o teria feito, e o imperador Tibério era inteligente demais para enviar um antissemita à Judéia. Os romanos podiam ser mestres duros, mas não eram idiotas.

Deve ter sido um incidente impensado. Provavelmente os soldados não sabiam que era proibido trazer seus estandartes (ou escudos) para a cidade sagrada.


O Tesouro do Templo

Josefo conta sobre outro incidente violento que envolveu o governador da Judeia. Pilatos exigiu dinheiro do Templo judaico para pagar a construção de um aqueduto - para fornecer água a Jerusalém - e o povo revoltou-se por se tratar de dinheiro sagrado.

Josefo, por volta de 75 EC, narrou o episódio em "Guerra dos Judeus":
Flávio Josefo, Guerra dos Judeus, Livro II, 9:4  
Noutra ocasião, [Pilatos] provocou um novo tumulto ao gastar na construção de um aqueduto o tesouro sagrado conhecido como korban - a água era trazida de 400 estádios de distância. Indignada com este procedimento, a populaça formou um cordão à volta de tribuna de Pilatos, que estava de visita a Jerusalém, e cercou-o com grandes clamores. Ele, prevendo o tumulto, tinha misturado um grupo de soldados com a multidão, armados mas disfarçados à civil, com ordens para não usarem as armas mas para espancarem quaisquer agitadores à mocada. Da tribuna, deu o sinal combinado. Pereceu um grande número de Judeus, alguns das pancadas que sofreram e outros espezinhados pelos companheiros na debandada que se seguiu. Acobardada pelo destino das vítimas, a multidão ficou reduzida ao silêncio.


E voltou a contar, por volta de 95 EC, em "Antiguidades Judaicas":
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 18.771
Em seguida, Pilatos tentou retirar dinheiro do tesouro sagrado para fazer vir a Jerusalém, pelos aquedutos, a água cujas nascentes distavam uns duzentos estádios. O povo ficou de tal modo revoltado que veio em grupos numerosos queixar-se e rogar-lhe que não continuasse aquele projecto. E, como acontece ordinariamente no meio de uma população exaltada, alguns chegaram de dizer-lhe palavras injuriosas. Ele ordenou então aos soldados que escondessem cacetes debaixo da túnica e rodeassem a multidão. Quando recomeçaram as injúrias, sinalizou aos soldados para que executassem o que havia determinado. Eles não somente obedeceram, como fizeram mais do que ele desejava, pois espancaram tanto os sediciosos quanto os indiferentes. Os judeus não estavam armados, e por isso muitos morreram e vários foram feridos. E a sedição terminou.

Como curiosidade, é na sequência deste texto sobre Pilatos que aparece o famoso "Testimonium Flavianum", a duvidosa passagem onde supostamente Flávio Josefo menciona Jesus como uma personagem histórica.


O incidente com os Samaritanos

Em 36 EC, um impostor, imitando Josué, reuniu uma multidão de samaritanos para subirem ao monte Gerizim, considerada a mais sagrada das montanhas. Assegurou-lhes que lá lhes mostraria relíquias sagradas ali depositadas - alegadamente - por Moisés. A multidão, crendo nele, reuniu-se, com armas, numa aldeia na base da montanha. Enquanto se preparavam para a escalada, o número de adeptos foi crescendo rapidamente, parecendo a preparação de uma revolta armada mas, antes que pudessem ascender, Pilatos interceptou-os e aprisionou alguns e matou outros.

Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 18.775 
Os samaritanos não foram menos atormentados nem isentos de amarguras. Um impostor, que com nada se importava, para agradar ao povo e ganhar-lhe o afeto, ordenou-lhes que se reunissem no monte Gerizim, que nesse país é considerado um lugar santo, prometendo-lhes fazer ver os vasos sagrados que Moisés havia enterrado. Com tal promessa, tomaram as armas e, esperando os que deviam juntar-se a eles de todos os lados para subir o monte, sitiaram a aldeia de Tirataba; mas Pilatos os precedeu; avançou com sua cavalaria, ocupou o monte, atacou-os perto daquela aldeia, pô-los em fuga, prendeu vários, mandou cortar a cabeça aos chefes.
Os mais ilustres samaritanos foram procurar Vitélio, governador da Síria, que tinha sido cônsul, acusaram Pilatos de ter cometido muitos assassínios, afirmaram que eles não tinham pensado em se rebelar contra os romanos e disseram que se haviam reunido perto de Tirataba, somente para resistir às suas violências.
Vitélio, ante essas queixas, mandou Marcelo, seu amigo, para cuidar do governo da Judéia e ordenou a Pilatos que fosse justificar-se perante o imperador.
Assim, sendo obrigado a obedecer, ele encaminhou-se para Roma, depois de ter governado a Judéia por dez anos, mas Tibério morreu antes que ele lá tivesse chegado.

Na sequência deste incidente, Pilatos foi acusado de violência excessiva e, assim, o governador Vitélius demitiu-o.


Tácito sobre Pilatos

Na obra de Tácito encontramos uma referência a Pilatos, mas que encontra-se numa passagem duvidosa sobre Jesus.
Ver aqui: 


Pilatos na Arqueologia

Moedas

Em matéria de arqueologia, existem moedas cunhadas por Pilatos. Ao que parece, como prefeito, Pilatos tinha permissão para cunhar moedas de denominação de baixo valor. Pequenas moedas de cobre.




Inscrição

Uma pedra esculpida com uma inscrição parcialmente intacta atribuída e mencionando Pôncio Pilatos foi descoberta em Cesaréia Marítima em 1961. O artefato é particularmente significativo porque é um achado arqueológico de uma inscrição romana autêntica do século I que menciona o nome "[Pont]ius Pilatus". É contemporâneo da vida de Pilatos e está de acordo com o que se sabe de sua carreira.

É provável que Pilatos tenha estabelecido sua base em Cesaréia Marítima - o local onde a pedra foi descoberta, já que aquela cidade havia substituído Jerusalém como capital administrativa e quartel-general militar da província em 6 DC, Pilatos provavelmente viajava para Jerusalém, a cidade central da população judaica da província, somente quando necessário. 

A pedra de Pilatos está atualmente localizada no Museu de Israel em Jerusalém. Réplicas em gesso podem ser encontradas no Museu Arqueológico de Milão, Itália, e em exibição na própria Cesaréia Marítima.




Conclusões

Os dois autores judeus, Filo e Josefo, mostram um Pilatos demasiado intransigente e violento. Os evangelhos descrevem um Pilatos demasiado brando.

Em suma, podemos concluir que os evangelhos não representam a verdade histórica quando nos mostram um Pilatos bem-intencionado, mas fraco. Por outro lado, as duas fontes judaicas têm suas próprias agendas.


Referências:
 - https://www.livius.org/articles/person/pontius-pilate/pontius-pilate-8/
 - https://earlyjewishwritings.com/text/philo/book40.html

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Revelação 12 - A Mulher Celestial





Revelação 12 contém muitos elementos de astrologia, reforçando a tese de que o cristianismo originou-se não só do judaísmo mas também de outras superstições e práticas antigas.
Revelação 12:1-2
E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do Sol, tendo a Lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. E estava grávida e com dores de parto e gritava com ânsias de dar à luz. 

A referência "mulher vestida do sol, com pés na lua, e coroa de estrelas" só pode referir-se a uma interpretação astrológica de uma observação dos céus. Tendo o sol e a lua na mesma imagem pode dizer-se que se trata de um eclipse solar.

No site da NASA podemos consultar a lista dos eclipses solares. Encontramos um eclipse interessante que ocorreu no equinócio da primavera de 71 EC (em 20 de Março).

Estamos a falar de poucos meses após a destruição de Jerusalém pelos romanos, na sequência de uma longa e horrível guerra. Portanto, um eclipse solar pouco tempo depois de um tão marcante evento para os judeus pode ter feito o autor de Revelação escrever sobre o significado do eclipse.



Este eclipse pôde ser observado muito perfeitamente na Grécia, onde existiam algumas comunidades cristãs (ou, mais rigorosamente, comunidades judaicas proto-cristãs). Também em Roma e na Anatólia (actualmente Turquia), também com comunidades cristãs, pôde ser observado em forma parcial.

Usando o site YourSky, usando parâmetros como:
 - Data: 0071-03-20 09:00:00
 - Localização: 38ºN,23ºE (Grécia, por exemplo Corinto) ou até mesmo 32ºN,35ºE (Jerusalém)



Isto é uma representação dos objectos celestes dessa data e local. Verificamos que a constelação Andrómeda ocupa o centro.

Será Andrómeda a mulher referida no texto de Revelação 12? Continuemos a narrativa:

Revelação 12:3-4
E viu-se outro sinal no céu, e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres e, sobre as cabeças, sete diademas. E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho.

A mulher está prestes a dar à luz. Um dragão aproxima-se para tentar devorar o nascituro. Será o mesmo dragão de sete cabeças, mencionado no capítulo 17 e também no capítulo 13?

Andrómeda, na mitologia grega, era filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopeia. Foi oferecida como sacrifício a um monstro marinho (Cetus, cuja constelação também seria visível durante o eclipse) mas salva por Perseu, que a tomou como esposa.

Continuemos:
Revelação 12:5-6
E deu à luz um filho, um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono. E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada durante mil duzentos e sessenta dias.

Durante a fase total do eclipse é possível ver as estrelas, mas quando o Sol reaparece por detrás da Lua, as estrelas desaparecem da nossa visão.

Assim, Andrómeda "fugiu" (desapareceu) e o Sol reaparece como um nascimento.

A mulher esconde-se durante 1260 dias, que representa três anos e meio. Muito provavelmente uma referência à duração da guerra judeo-romana que decorreu, principalmente em Jerusalém, de 66 a 70.

A criança que nasceu deveria representar todos os novos fiéis que a nova fé judaica, agora sem o Templo de Jerusalém, iria produzir. Essa nova fé judaica tornar-se-ia o cristianismo.

Continuando, vemos Perseu (referido disfarçadamente como "Miguel") a combater o monstro:
Revelação 12:7-9
E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão; e batalhavam o dragão e os seus anjos, mas não prevaleceram; nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.

Continuando para o versículo 13, vemos que a mulher recebe asas de águia.
Revelação 12:13-14
E, quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o varão. E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente. 

Mais uma clara referência astrológica, pois a constelação de Áquila (Águia) seria visível no céu.

Para concluir resta referir que o autor de Revelação inspirou-se em astrologia e mitologia grega para escrever este capítulo de Revelação.

Este texto sobre uma mulher celestial que dá à luz pode ter sido inicialmente escrito com a intenção de narrar o nascimento celestial de Jesus, mas parece uma alegoria para o nascimento de uma nova fé.


Referências:
 - https://eclipse.gsfc.nasa.gov/SEsearch/SEsearchmap.php?Ecl=00710320
 - http://www.fourmilab.ch/cgi-bin/Yoursky


domingo, 4 de março de 2018

Revelação 17 - Roma é uma Prostituta




Revelação 17

O capítulo 17 de Revelação (ou Apocalipse de João) é um tratado contra Roma escrito de modo criptográfico e metafórico. O autor terá escrito desta forma de modo a escapar a alguma censura política do seu texto.

O autor conta uma visão e uma revelação de um anjo. O anjo mostra-lhe uma prostituta montada num monstro de sete cabeças.

Revelação 17:1-6
E veio um dos sete anjos que tinham as sete taças e falou comigo, dizendo-me:
- "Vem, mostrar-te-ei a condenação da grande prostituta que está assentada sobre muitas águas, com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam na terra se embebedaram com o vinho da sua prostituição."
E levou-me em espírito a um deserto, e vi uma mulher assentada sobre uma besta de cor escarlate, que estava cheia de nomes de blasfêmia e tinha sete cabeças e dez chifres. E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlate, adornada com ouro, e pedras preciosas, e pérolas, e tinha na mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua prostituição. E, na sua testa, estava escrito o nome: Mistério, a Grande Babilônia, a Mãe das Prostituições e Abominações da Terra. E vi que a mulher estava embriagada do sangue dos santos e do sangue das testemunhas de Jesus. E, vendo-a eu, maravilhei-me com grande admiração. 

O anjo acaba por explicar a visão, começando por identificar as sete cabeças dos monstro com sete montes:
Revelação 17:7-9 
E o anjo me disse: Por que te admiras? Eu te direi o mistério da mulher e da besta que a traz, a qual tem sete cabeças e dez chifres. A besta que viste foi e já não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição. E os que habitam na terra (cujos nomes não estão escritos no livro da vida, desde a fundação do mundo) se admirarão vendo a besta que era e já não é, mas que virá. Aqui há sentido, que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada. 

Ora, qualquer habitante do Império Romano daquele tempo estaria habituado à referência das sete colinas de Roma. Sem indicar explicitamente Roma, o leitor perceberia do que tratava este texto: a decadência que se observava no império romano. Mas de que tempo se tratava?

Revelação 17:10-18 
E são também sete reis: cinco já caíram, e um existe; outro ainda não é vindo; e, quando vier, convém que dure um pouco de tempo. E a besta, que era e já não é, é ela também o oitavo, e é dos sete, e vai à perdição. E os dez chifres que viste são dez reis, que ainda não receberam o reino, mas receberão o poder como reis por uma hora, juntamente com a besta. Estes têm um mesmo intento e entregarão o seu poder e autoridade à besta. Estes combaterão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, porque é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão os que estão com ele, chamados, eleitos e fiéis. E disse-me: As águas que viste, onde se assenta a prostituta, são povos, e multidões, e nações, e línguas. E os dez chifres que viste na besta são os que aborrecerão a prostituta, e a porão desolada e nua, e comerão a sua carne, e a queimarão no fogo. Porque Deus tem posto em seu coração que cumpram o seu intento, e tenham uma mesma ideia, e que deem à besta o seu reino, até que se cumpram as palavras de Deus. E a mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra.

As sete cabeças são também reis:
 - "Cinco já caíram": Júlio César, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio
 - "Um existe" (o sexto rei): Nero
 - "Um ainda não veio mas quando vier vai durar pouco tempo" (o sétimo rei): em 68/69, três homens apoderaram-se das instituições de Roma - Galba, Oto e Vitélio - mas cada um deles durou tão pouco tempo que podem contar como apenas um rei.

A própria besta é o oitavo rei:
 - O oitavo rei: Vespasiano, que comandou as tropas romanas contra a rebelião dos judeus que se iniciou em 66 EC, tendo o seu filho, Tito, saqueado Jerusalém e chacinado milhares de judeus em 70 EC.

O autor de Revelação 17 terá elaborado este texto durante o reinado de Vespasiano (entre 69 e 79 EC), mas quis criar a ilusão de que o tinha escrito durante o reinado de Nero (entre 54 e 68 EC).

Dez chifres, dez reis

O anjo refere mais dez reis que, de início, combateriam o "Cordeiro", mas que depois se virariam contra a "besta", ou seja, contra o oitavo rei de Roma (Vespasiano). Estes dez reis seriam dez reinos clientes de Roma, reinos que prestariam vassalagem a Vespasiano, mas que depois se virariam contra o Império, segundo a óbvia expectativa do autor. O autor nutria uma secreta esperança de que o império romano se desmoronasse durante o reinado de Vespasiano, derrotado pelos reis clientes.

O autor terá contado em uma dezena os reinos mais importantes associados ao império romano - reinos clientes - os quais poderiam ser entre os seguintes: Ponto, Bósforo, Arménia, Capadócia, Cilícia, Calcis, Comagena, Homs, Mauritânia, Numídia, etc.

O tema de um monstro de sete cabeças com dez chifres também foi abordado no capítulo 13 de Revelação, mas sem a prostituta a bordo. Não se sabe se os capítulos 13 e 17 foram escritos pela mesma pessoa, mas parece que o capítulo 17 é um refinamento do capítulo 13.

Por outro lado, o autor usa o mesmo estilo de Daniel do Antigo Testamento, especialmente comparável ao capítulo 7 de Daniel que contém também uma visão de dez chifres que representam dez reis.


O período de 66 a 70 EC

Para se entender as expectativas dos judeus do primeiro século, é necessário entender o que se passou na Judeia e em Roma durante o período chave de 66 a 70 EC.

O Templo de Jerusalém, uma abundante fonte de rendimento para uma minoria da aristocracia judaica, era governado pelas famílias de sacerdotes alinhados com o poder romano. O sumo-sacerdote era nomeado por Roma.

Mas o Templo gerava controvérsia entre vários grupos judaicos:
 - Algumas facções rebeldes queriam apoderar-se do Templo e, consequentemente, da respectiva fonte de rendimento
 - Algumas facções religiosas eram contra o mercantilismo do Templo (tal como, mais tarde, Martinho Lutero foi contra o mercantilismo da Igreja Católica)

O que unia as várias facções era o ódio ao poder instituído e garantido por Roma à minoria aristocrática.

Em 66 EC começou uma rebelião na Judeia e Galileia, liderado por João de Giscala, entre outros. Nero enviou o general Vespasiano para conter a rebelião.

Em 67 EC Vespasiano conseguiu conter a revolta na Galiléia, tendo seguido para a Judeia com o seu filho Tito.

Em 68 EC Nero suicida-se (para não ter de enfrentar uma execução, pois fora condenado à morte), seguindo-se mais de um ano de instabilidade em Roma. Seguiram-se três imperadores, durando poucos meses cada um: Galba, Oto e Vitélio.

Este período de instabilidade em Roma, deu alguma folga à rebelião na Judeia. Enquanto Roma resolvia os problemas internos, combater a rebelião na Judeia não estava nas suas prioridades. Os judeus sonham com um desmoronamento definitivo de Roma que lhes daria a independência.

Sem a pressão de um inimigo comum, a rebelião judaica transforma-se numa guerra civil. João de Giscala quis tomar o poder em Jerusalém, mas tinha alguns rivais como Simão bar Giora e Eleazar ben Simão.

Em 69 EC, a guarda pretoriana proclama Vespasiano como imperador. Roma estabiliza as suas instituições.

Na Judeia, Tito cerca Jerusalém e, em 70 EC, a cidade é invadida e saqueada. Milhares de judeus são mortos e o Templo foi destruído. Isto deixa toda a comunidade mundial de judeus em estado de choque.

Durante algum tempo, os judeus - incluindo o autor de Revelação 17 - continuaram a pensar que Vespasiano não duraria muito tempo no poder e que Roma enfraqueceria de novo brevemente. Não esperavam que a dinastia flaviana iniciada por Vespasiano durasse até 96 EC.

O Templo de Jerusalém foi destruído para nunca mais ser reconstruído. Este templo era o centro do judaísmo. O judaísmo teve de ser repensado para poder existir sem o Templo. Daqui saíu o judaísmo moderno (judaísmo rabínico) e o cristianismo.


domingo, 25 de fevereiro de 2018

Tertuliano - Contra Marcion




Tertuliano

Quintus Septimius Florens Tertullianus (160 a 220 EC) era, alegadamente, filho de um centurião romano de Cartago (na actual Tunísia).

Foi um prolífico autor de obras de apologia do cristianismo. Muito do que escreveu tinha como objectivo o combate às ideias que considerava heréticas mas, no fim da sua vida, ironicamente, acabou por aderir ao montanismo, uma denominação que foi considerada herética pela Igreja de Roma, a igreja dominante e futura Igreja Católica. Uma parte das ideias de Tertuliano acabaram por ser consideradas heréticas. Mas apesar disso uma boa porção das suas obras sobreviveram.

Entre outras obras "contra" escritas por Tertuliano, encontram-se: Contra Escápula, Contra Marcion, Contra Hermógenes e Contra os Valentinianos.

A obra Contra Marcion é interessante por permitir recuperar uma boa parte dos textos do marcionismo, nomeadamente o Evangelho adoptado por Marcion que seria semelhante do Evangelho de Lucas.


Contra Marcion

A obra "Contra Marcion" é um trabalho de Tertuliano, distribuído por 5 livros. Este trabalho, escrito entre 195 e 220 EC, é uma forte censura ao marcionismo, a doutrina divulgada por Marcion de Sínope.

Marcion de Sínope odiava o judaísmo, o Antigo Testamento, e qualquer pedaço do Novo Testamento - livro ou passagem - que não concordasse com ele. Isso obrigou as igrejas dominantes - principalmente a Igreja de Roma - a começar a definir um cânone (uma lista de textos permitidos). Marcion acreditava que o Deus Pai era diferente de Yahveh, o Deus detestável do Antigo Testamento. Nenhuma da literatura dele sobreviveu, o que torna a obra "Contra Marcion" a fonte primária do marcionismo.


Livros I e II

No livro I, capítulo 1, Tertuliano ocupa-se de atacar Marcion e o seu país de origem, o Pontus (zona geográfica que agora pertence à Turquia, junto ao Mar Negro). Diz que os nativos desta terra são bárbaros e incivilizados; que as mulheres do Pontus andam com os seios descobertos e gostam mais da guerra do que do casamento; e que Marcion era mais bárbaro que os animais da sua terra.

No livro I, capítulo 13, Tertuliano diz que os marcionistas depreciam a Criação alegando que Criador não seria o Deus Pai, mas um deus menor (demiurgo) que identificam com o Yahveh do Antigo Testamento.

Um boa parte da discussão dos livros I e II gira à volta da refutação do dualismo de Marcion - a existência do Deus Pai e de um outro deus, distinto e menor, que seria o Criador.


Livro III

No livro III, Tertuliano tenta demonstrar que Jesus é o Messias anunciado no Antigo Testamento.

No capítulo 5, desenvolve uma discussão sobre a escritura ter, às vezes, de ser entendida alegoricamente, e tenta explicar como funciona a profecia judaica.


Livro IV

No seu quarto livro de Contra Marcion, Tertuliano compara o evangelho marcionita com o evangelho de Lucas.

A partir das citações que Tertuliano faz, no capítulo 7, acerca do "Evangelho de Marcion" podemos perceber que este evangelho começaria assim:
"No décimo quinto ano de Tibério César, Jesus desceu [do céu] para Cafarnaum, uma cidade na Galiléia, e ensinou [na sinagoga] no Sabbath."

Tertuliano repreende aqui a doutrina de Marcion que ensinava que Jesus tinha descido dos céus ao invés de ter nascido como um humano.

O Evangelho de Lucas refere um censo (registo oficial da população) que decorreu durante o tempo em que Quirinius era governador da Síria (a partir de 6 EC) que serviu de pretexto para Maria e José viajarem para Belém, onde viria a nascer Jesus. Mas Tertuliano, no capítulo 19, atribui este censo a Gaius Sentius Saturninus, que foi governador da Síria 15 anos antes (de 9 a 7 AEC) de Quirinius.
Tertuliano, Contra Marcion, Livro IV, capítulo 19 
...há uma prova histórica de que, neste momento, um censo havia sido tomado na Judéia por Sentius Saturninus, que poderia ter satisfeito sua indagação sobre a família e a descendência de Cristo.

Existe, portanto, um lapso de cerca de 15 anos entre os dois governadores. Isto pode constituir evidência de que a versão do Evangelho de Lucas que Tertuliano conhecia ainda não teria a referência ao governador Quirinius.
Lucas 2:1-2 Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirínio era governador da Síria.

No capítulo 36, Tertuliano indica que os registos do recenseamento de Jesus certamente seriam uma boa prova de que Jesus era descendente do rei David, mas, lamentavelmente, já estariam irremediavelmente perdidos (no seu tempo, em 200 EC).

No capítulo 39, Tertuliano rejeita a ideia de que a profecia de Cristo de "guerras" nos "tempos finais" se referia à revolta judaica de 66 a 73 EC. É natural, pois esta revolta foi só a primeira de três grandes guerras dos judeus contra os romanos:
 - Primeira guerra, Grande Revolta da Judeia - de 66 a 73 EC, resolvida pelos generais romanos Flávio Vespasiano e Flávio Tito;
 - Segunda guerra, Revolta da Diáspora ou Guerra de Kitos - de 115 a 117 EC, resolvida pelo general romano Lusius Quietus ("Kitos");
 - Terceira guerra, Revolta de Bar Kokhba - de 132 a 136 EC, instigada por Simão Bar Kokhba, necessitou de muitas unidades militares romanas para ser contida e resolvida.

Quando Tertuliano escreveu, por volta de 195-200 EC, já tinha decorrido mais de 60 anos desde a última guerra entre romanos e judeus e não havia nenhum sinal de aproximação de "tempos finais". Portanto, a abordagem apocalíptica/escatológica (relativa ao "fim dos tempos") da primeira geração de cristãos estava definitivamente encerrada.


Voltando ao capítulo 7, Tertuliano critica a abordagem docética de Marcion na qual Jesus descia do céu para ser visto na Galileia, contrária à narrativa dos evangelhos (versões canónicas de Mateus e Lucas) que dizem que Jesus cresceu e viveu na Galileia.

Tertuliano, Contra Marcion, Livro IV, capítulo 7
"No décimo quinto ano do reinado de Tibério" - esta é a proposição de Marcião - "ele desceu à cidade de Cafarnaum na Galiléia" -  claro que significando que desceu do céu do Criador [Yahveh]. Ao que ele já havia descido de seu próprio céu [do Deus Pai].
Como tinha sido então o seu itinerário, para ele ser descrito como primeiro descendo de seu próprio céu e depois do céu do Criador? Pois, por que hei-de eu evitar censurar estas partes da frase uma vez que não satisfazem a exigência de uma narrativa, mas sempre acabam numa mentira ?
...
Agora, porém, quero também saber o resto da sua viagem para baixo, assumindo que ele desceu. Pois não deve ser muito agradável perguntar se é suposto ele ter sido visto em qualquer lugar. ... (Apareceu repentinamente ou foi visto durante a sua descida?)
É, pois, muito mau Romulus ter tido em Proculus uma testemunha de sua ascensão ao céu , quando o Cristo não poderia encontrar qualquer um para anunciar sua descida do céu;  justo como se a subida de um e da descida do outro, não foram efectuadas em uma e a mesma escada de falsidade ! 

Tertuliano critica as aparições de Jesus na doutrina de Marcion, porque nesta não é explicado como é que se sabe que Jesus desceu dos céus para ser visto, uma vez que ninguém observou Jesus a descer dos céus. Compara, depois, com a história de Rómulus, o primeiro rei de Roma, que, segundo a história contada por Tito Lívio e Plutarco, foi visto a subir e a descer dos céus por um homem chamado Próculo.


Livro V

No livro V, Tertuliano, confronta a doutrina de Marcion com a doutrina do apóstolo Paulo.

No capítulo 19, a "crença principal" de Marcion é identificada como proveniente da escola dos epicuristas e dos estóicos:
Tertuliano, Contra Marcion, Livro V, capítulo 19  
Mas, uma vez por todas, percebamos que o termo principal do credo de Marcion vem da escola de Epicuro, implicando que o Senhor é estúpido e indiferente. Por isso, ele se recusa a dizer que Ele é um agente a ser temido. Além disso, do lado dos estóicos, ele traz a matéria, e a coloca em paridade com o Divino Criador.

Tertuliano deve ter lido o episódio de Actos dos Apóstolos em que o apóstolo Paulo "debate" com filósofos epicuristas e estóicos em Atenas.

No capítulo 20 ele afirma: "por todo o lado, a maioria das pessoas agora pensam da nossa maneira, e não de modo herético". Que ironia Tertuliano ter, depois, aderido a uma denominação cristã - o montanismo - considerada herética pela Igreja de Roma!



Referências:
 - Against Marcion, Tertullian, Book 4
 - Against Marcion, Tertullian, Book 5
 - https://en.wikipedia.org/wiki/Tertullian


domingo, 11 de fevereiro de 2018

Actos - Paulo em Atenas é Sócrates




Paulo em Atenas

(Adaptação de um artigo de  Kenneth Humphreys - Paul in Athens)

Em Actos 17:15-34 lemos que, numa viagem missionária, o apóstolo Paulo visitou Atenas e permaneceu sozinho na cidade. Até aqui tudo bem, porque isto até é confirmado pelo próprio Paulo em Tessalonicenses 3:1.

Actos 17:15-34 (resumo) 
Paulo chega a Atenas com os seus companheiros. Estes partem e deixam-no lá sozinho.
Paulo ia todos os dias à sinagoga debater com judeus e à Àgora (praça central da cidade) debater com gregos.
Alguns filósofos epicuristas e estóicos, suspeitando que Paulo era um pregador de deuses estrangeiros, levam-no ao Areópago (onde funcionava o tribunal).
No Areópago, Paulo começa por insultar os gregos acusando-os de serem "demasiado supersticiosos". Diz saber que os gregos, para além dos templos dos deuses conhecidos, tinham também um santuário dedicado ao "deus desconhecido" e que ele vinha anunciar esse deus que eles já honravam.
Paulo cita poetas gregos para apoiar o seu argumento.
Alguns gregos ficam interessados e crêem na mensagem de Paulo.
Paulo deixou a cidade e nunca mais voltou.


Mas como é que o autor de Actos dos Apóstolos soube o que se passou com Paulo em Atenas, uma vez que Paulo permaneceu lá desacompanhado? E como é que soube o que é que os filósofos atenienses disseram uns aos outros antes de levaram Paulo ao Areópago?

Será que todo este episódio de Actos sobre "Paulo em Atenas" é uma construção do autor? Uma história simbólica do triunfo cristão sobre o paganismo?


Atenas clássica

O autor de Actos retrata Atenas com os traços da época clássica grega. Tudo o que refere de Atenas é a Ágora ("praça") e o Areópago ("colina de Ares", ou colina de Marte, onde funcionava o tribunal) - lugares comuns que qualquer estudante da língua e cultura grega teria aprendido na escola.

Mas no tempo de Paulo (por volta de 50 EC) a área da Ágora já não era um espaço aberto. Atenas, neste tempo, fazia parte de uma colónia romana, que passou por pesadas reconstruções ao longo de muitas décadas. A Ágora encontrava-se repleta de edifícios, seguindo a moda romana de construção intensa e especulação imobiliária, desde o tempo do imperador Augusto.

Na sequência de uma guerra e de um longo cerco, a cidade de Atenas foi destruída e saqueada por Sula em 86 AEC.

A restauração de Atenas começou sob Augusto, a partir de 27 AEC, com a limpeza da área a norte da Acrópole e a construção de um novo fórum ao estilo romano, o "Mercado de César e Augusto". Este era o novo centro comercial da cidade.

No nordeste da antiga Ágora, foi construída uma basílica colunada para uso da administração romana. Marcus Agrippa, genro do imperador Augusto, construiu uma enorme sala de espectáculos, o edifício Odeon, com capacidade para mais de mil pessoas, bem no centro da área que tinha sido a velha Ágora. E este edifício estava rodeado por outros templos.

Surpreendentemente o autor de Actos menciona também uma sinagoga, mas não é conhecida nenhuma comunidade judaica, naquele tempo, em Atenas, suficientemente grande para ter uma sinagoga.


Paulo vs Filósofos Gregos

O drama central desenrola-se com um encontro entre Paulo e filósofos gregos, especificamente epicuristas e estóicos.

O altar ao deus desconhecido

Paulo aparentemente encontrou um altar dedicado ao "deus desconhecido" - uma descoberta notável, considerando que mais ninguém o fez até ao presente. De dezenas de milhares de inscrições gregas, nenhuma inscrição dedicada a um "deus desconhecido" jamais foi encontrada.

Paulo revela aos filósofos "ignorantes" que essa divindade desconhecida, que os gregos já veneravam sem o saber, era o Deus dos judeus, Yahveh. Tendo em conta que os atenienses só dedicavam santuários aos deuses relevantes para a sua cultura, o deus dos judeus nunca se teria qualificado a um templo em Atenas.

Filósofos supersticiosos

Paulo começou o seu discurso referindo-se aos filósofos gregos como "demasiado supersticiosos" ou "demasiado religiosos".

Que ironia acusar os epicuristas de supersticiosos quando eles eram não só racionalistas sóbrios como, na prática, ateus! Para eles, os deuses, se é que existiam, não criaram o mundo nem se importavam com os humanos.

Quanto aos estóicos, estes também não tinham grande apego pelo irracional. Para eles, Deus era uma força racional ou "logos" que permeava todas as coisas.

Filósofos polícias

Bizarramente, em Actos, os filósofos agem como polícias, detendo Paulo e levando-o ao Areópago (colina dedicada ao deus grego Ares, ou Marte para os romanos).

O pretexto que os filósofos apresentaram para levar Paulo ao Areópago foi porque o queriam ouvir. O autor de Actos acrescenta que "todos os atenienses e estrangeiros residentes de nenhuma outra coisa se ocupavam senão de dizer e ouvir alguma novidade." (Actos 17:21). Uma acusação de que os atenienses, em geral, eram ociosos.

Mas era nessa colina rochosa que habitualmente eram realizados os julgamentos de homicídios!


Paulo é Sócrates

O autor de Actos quis recriar o ambiente do famoso julgamento de Sócrates, que teria ocorrido uns 400 anos antes. Há demasiadas coincidências para duvidar que essa seria a sua intenção.

Sócrates

Sócrates (cerca de 469 a 399 AEC) foi um filósofo da antiguidade clássica grega, creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental. Uma figura enigmática, conhecida principalmente através das obras de dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de Aristófanes.

Sócrates não acreditava na democracia. Achava que escolher governantes (votar) era uma actividade muito complexa e não um mero exercício de intuição. Os governantes deveriam ser filósofos escolhidos por filósofos (governo de elites esclarecidas).

Sócrates, já idoso, foi acusado de corromper a juventude, de renunciar os deuses de Atenas e de introduzir novos deuses. Foi julgado, condenado e executado.

Sócrates é figura central em livros de Platão - por exemplo, no livro O Banquete (Symposium) ou no conjunto de dez livros A República (Politeia).

Platão escreveu também uma série de livros com supostos diálogos que Sócrates teve por volta da data do seu julgamento.
 - Eutífron, com Sócrates a caminho do tribunal para conhecer as acusações que lhe foram movidas pelo jovem Meleto;
 - Apologia, com a descrição do julgamento;
 - Críton, com a visita de seu amigo mais querido ao cárcere;
 - Fédon, com os últimos instantes de vida e o discurso sobre a imortalidade da alma.


Paulo em Actos dos Apóstolos

Em Actos dos Apóstolos, a "acusação" preparada para Paulo foi a seguinte:
Actos 17:18 
Uns diziam: "Que quer dizer este paroleiro?" E outros: "Parece que é pregador de deuses estranhos."

Esta acusação era idêntica à de Sócrates: a introdução de deuses estranhos em Atenas -
Apologia de Sócrates, por Platão 
- Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.

Paulo é apresentado como um grande filósofo, equiparado a Sócrates:
 - Paulo, como Sócrates, expôs seus pontos de vista na Ágora antes de ser julgado.
 - Paulo, como Sócrates, começa o seu discurso com "Homens de Atenas!".
 - Paulo, como Sócrates, não era democrata ou igualitário. Paulo acreditava que as pessoas comuns eram como ovelhas, precisando de uma direcção firme por um pastor sábio. Sócrates acreditava que as pessoas comuns não tinham habilidade suficiente para escolher os seus governantes.
 - Segundo Actos, Paulo ouviu a voz do "Senhor" que o guiou para a sua missão. Sócrates dizia-se inspirado por uma voz a que se referia como o seu daemon ("divindade", "espírito").
 - Paulo, no seu curtíssimo discurso, referiu-se a poetas. Sócrates refere mesmo que uma das principais disputas na sua acusação dizia respeito a poetas. 

Em Actos dos Apóstolos, Atenas não é uma cidade, mas uma metáfora para toda a tradição filosófica grega - ou seja, pensamento racional.

Paulo faz um discurso no Areópago mas abandonou o local sem debater com os filósofos. O cristianismo não estava interessado num debate com o racionalismo grego - estava fanaticamente determinado a destruí-lo!

Para o autor de Actos, a filosofia era um engano perigoso, o racionalismo é uma obsessão de elites ociosas! (Actos 17:21)


sábado, 3 de fevereiro de 2018

Génesis Sumério - O Dilúvio de Ziusudra




Génesis de Eridu

O Génesis de Eridu é um texto sumério que trata dos mesmos temas que os famosos primeiros capítulos da Bíblia: a criação do Homem e um Grande Dilúvio. A acção principal da narrativa é a história de um herói, Ziusudra, que sobrevive a um Grande Dilúvio.

Já nos debruçámos sobre o Épico de Atrahasis e sobre o Épico de Gilgamesh (em que o herói chama-se Utnapishtin), ambos referindo um Grande Dilúvio tal como o Génesis de Eridu. Estes textos têm muito em comum. A referência à cidade de Shuruppak como centro da acção nas três narrativas não é coincidência, mas evidência de que são versões da mesma história escritas em épocas diferentes, sendo o Génesis de Eridu a mais antiga destas três versões mesopotâmicas.

Para além dos textos mesopotâmicos, o Génesis de Eridu inspirou também a narrativa bíblica do Dilúvio, e algumas fontes gregas e romanas. Beroso, o conhecido autor babilónico do século III AEC, escreveu, em grego, sobre o herói Ziusudra (Xisuthros).

Génesis de Eridu terá sido redigido na Suméria, a parte sul da antiga Babilónia. Foi encontrado numa tábua com escrita suméria cuneiforme do século XVII AEC, da qual apenas cerca de um terço do texto sobreviveu.

Devido ao elevado estado de degradação da tábua cuneiforme, o texto apresenta muitas lacunas. O texto original deveria começar com a criação do Homem, continuando com o estabelecimento da realeza e uma lista de cidades. Em seguida, vem uma lista dos governantes antediluvianos e a decisão suprema do deus Enlil de destruir a humanidade. A razão invocada pelo deus está em falta no texto degradado mas pode ser inferido a partir das versões posteriores de Atrahasis e Gilgamesh: o incómodo barulho produzido pelos homens.

Ziusudra

Ziusudra é rei de Shuruppak e vidente que, numa visão, testemunha o conselho dos deuses e a sua decisão, e entende que algo terrível está prestes a acontecer. Depois disso, o deus Enki, falando do outro lado de uma parede, explica a Ziusudra o que ele já entendeu.

O conselho de Enki, para construir um barco grande, deve ter sido mencionado, mas encontra-se em falta. A história continua com uma descrição do Dilúvio, que dura sete dias e noites. Depois de deixar a arca, Ziusudra sacrifica e encontra Utu, o deus do sol. O final da história é um discurso de Enki, e a apoteose de Ziusudra, que viverá para sempre no país mitológico de Dilmun, no extremo leste, onde Utu ergue-se.


O texto

A adaptação aqui do Génesis de Eridu foi feita a partir de uma tradução de Thorkild Jacobson. Começa após uma longa lacuna, na qual a criação do homem deve ter sido descrita.

[... criação do homem...] 
A Deusa Criadora (Nintur) pensa sobre a humanidade 
Nintur chamou a atenção:
"Pensemos na minha humanidade, quão esquecidos estão, e ao meu cuidado, as criaturas de Nintur. Que eu os traga de volta, que eu traga as pessoas de volta ao seu caminho.
Que eles venham e construam cidades e lugares de culto, para que eu possa me refrescar na sua sombra.
Que eles coloquem os tijolos para as cidades de culto em pontos puros, e que eles encontrem lugares para adivinhação em pontos puros!"
Ela deu instruções para a purificação, e como chorar pela clemência, as coisas que arrefecem a ira divina, [...] aperfeiçoou o serviço divino e as funções augustas, disse às regiões vizinhas: "Que eu institua a paz lá!"
Quando An, Enlil, Enki e Ninhursaga criaram as pessoas de cabeça escura, eles fizeram os pequenos animais que surgiram da terra e estes surgiram da terra em abundância e passaram a existir, como conveniente, gazelas, burros selvagens e bestas de quatro patas no deserto.
[...parte grande perdida; talvez uma história de uma tentativa fracassada de construir uma cidade...]

Criação da realeza 
[ ...] "Que eu o aconselhe, que eu o faça supervisionar o trabalho deles, que ele ensine a nação a segui-lo, fielmente, como gado!"
Quando o ceptro real descia do céu, a coroa augusta e o trono real já estavam descendo do céu, o rei exerceu regularmente em perfeição os augustos serviços e cargos divinos, e colocou os tijolos das cidades em locais puros.
Elas foram chamadas por nome e foram lhes atribuídas cestas de meio-alqueire.

As primeiras cidades 
A primeiro das cidades, Eridu, ela deu ao líder Nudimmud,
o segundo, Bad-Tibira, ela deu ao Príncipe e ao Sagrado,
O terceiro, Larak, ela deu a Pahilsag,
O quarto, Sippar, deu ao galante Utu,
O quinto, Shuruppak, ela deu a Ansud.
A essas cidades, que foram intituladas pelos nomes, foram atribuídas cestas de meio-alqueire, foram limpos os canais, revestidos de blocos de argila purpúrea seca ao vento, que conduziam a água.
A limpeza dos canais estabeleceu um crescimento abundante. 
[Parte grande perdida, na qual os reis antediluvianos devem ter sido mencionados. Trabalhando nos canais e nos campos, eles produziram tanto barulho, que o supremo deus Enlil persuadiu os outros deuses a destruir a humanidade.] 
Naquele dia, Nintur chorou sobre suas criaturas e a santa Inanna estava cheia de tristeza sobre o povo dela, mas Enki tomou conselho com seu próprio coração.
An, Enlil, Enki e Ninhursaga, os deuses do céu e da terra, juraram pelos nomes de An e Enlil.

Visão de Ziusudra 
Naquela época, Ziusudra era rei e sacerdote de purificação. Ele esculpiu, sendo um vidente, o deus da vertigem e ficou em admiração ao lado dele, redigindo seus desejos com humildade.
Enquanto ele permanecia lá regularmente, dia após dia, algo que não era um sonho aparecia: uma conversa, um juramento de juramentos pelo céu e pela terra, um toque de gargantas [juramento pela vida], e os deuses trazendo seus inimigos para Kiur.

Conselho de Enki 
E enquanto Ziusudra estava ali ao lado, continuou ouvindo:
"Volta-te para a parede à minha esquerda e escuta!
Deixa-me falar uma palavra no muro para que possas entender o que eu digo. Tu podes prestar atenção ao meu conselho! Pela nossa mão, uma enchente irá varrer as cidades das cestas de meio-alqueire e o país. A decisão, de que a humanidade deve ser destruída, foi feita. Um veredicto, um comando da assembleia, não pode ser revogado, nenhuma ordem de An e Enlil ficou conhecida por ter sido cancelada. Nunca o seu reinado, o seu termo, foi retirado; ...
Agora ... o que te tenho a dizer... "
[Lacuna; Enki ordena que Ziusudra construa a arca e carregue com pares de animais.]

O dilúvio 
Todos os ventos malignos, todos os ventos tormentosos se juntaram num só e, com eles, o Dilúvio varreu as cidades das cestas de meio-alqueire por sete dias e sete noites.
Depois do dilúvio ter varrido o país, depois que o vento maligno lançou o grande barco nas grandes águas, o sol saiu espalhando luz sobre o céu e a terra.

O sacrifício de Ziusudra 
Ziusudra então abriu uma janela no grande barco e o gentil Utu enviou sua luz para o interior do grande barco.
Ziusudra, o rei, subiu a Utu, e beijou o chão perante ele.
O rei sacrificou bois, foi pródigo com as ovelhas, com bolos de cevada, ... ele repartiu com ele ... o zimbro, a planta pura das montanhas, ele colocou no fogo...
[Lacuna; Enlil irado por encontrar sobreviventes, mas Enki explica-se] 

Fim do discurso de Enki 
"Tu aqui juraste pelo sopro da vida do céu, pelo sopro da vida da terra que ele realmente está aliado contigo; vocês lá, An e Enlil, juraram pelo sopro da vida do céu, o sopro da vida da terra, que ele está aliado com todos vocês. Ele desembarcará os pequenos animais que surgiram da terra!"

Recompensa de Ziusudra
O rei Ziusudra subiu perante de An e Enlil, beijando o chão;
An e Enlil, depois de homenageá-lo, concederam-lhe vida como a de um deus,
fizeram um sopro duradouro de vida, como o de um deus, descer para ele.
Naquele dia fizeram o rei Ziusudra, conservador dos pequenos animais e da semente da humanidade, ir viver para o leste sobre as montanhas de Dilmun.


Referências:
 - https://en.wikipedia.org/wiki/Sumerian_creation_myth
 - http://www.livius.org/articles/misc/great-flood/flood2/
 - http://www.livius.org/sources/content/oriental-varia/eridu-genesis/?
 - https://www.penn.museum/collections/object/97591