sábado, 23 de dezembro de 2017

Século II - Gnosticismo - Valentinius




O gnosticismo engloba uma variedade de ideias e sistemas religiosos antigos, originários de comunidades judaicas do primeiro e segundo século EC. Com base em interpretações do Antigo Testamento (a Bíblia judaica), esses sistemas descrevem que o mundo material fora orginado por uma emanação (e não uma criação directa) do Deus supremo, tendo cativado o potencial divino humano num corpo físico. Este potencial divino poderia ser libertado pelo conhecimento (gnose).

As idéias e os sistemas gnósticos floresceram no mundo mediterrâneo até ao século II EC, influenciados pelos primeiros movimentos cristãos e com origem no platonismo. Após o século II, o crescimento da ortodoxia cristã, que culminou no catolicismo, provocou o declínio do gnosticismo no mundo ocidental. O gnosticismo espalhou-se até à China, através do Império Sassânida (Persas), com o maniqueísmo. O mandeismo, uma vertente gnóstica com origem no médio-oriente, ainda está vivo no Iraque.

Origens

As ideias fundamentais do gnosticismo têm origem com a filosofia de Platão, na antiga Grécia. O zoroastrismo persa também terá contribuido para o gnosticismo na mesma medida em que contribuiu muito para o judaísmo com a ideia de um deus universal em oposição ao deus tribal, Yahveh, dos judeus. No período helenístico, também começaram a ser associadas ideias dos cultos dos mistérios greco-romanos. Muitos grupos gnósticos surgem em Alexandria, uma cidade helenística do Egipto com grande população judaica. Filo de Alexandria terá contribuido bastante para esta linha de pensamento.

Muitos pensadores judeus do tempo do helenismo deveriam ficar, compreensivelmente, embaraçados com a leitura do Antigo Testamento. O Antigo Testamento retrata Yahveh, o deus dos judeus, como um ser psicótico, mesquinho e ciumento.

Terá havido um esforço filosófico para encontrar uma justificação para um retrato tão desfavorável de Yahveh. Surge então uma ideia: o texto do Antigo Testamento não era uma descrição real de acontecimentos, mas escondia alegoricamente a verdadeira descrição e natureza de Deus. Certamente Deus não teria as caracteristicas do psicótico Yahveh.

Deus seria, portanto, um ser transcendental e insondável. Mas aqui surgiam vários problemas: Deus era o Criador de um mundo material tão imperfeito? Se Deus é a origem do Bem, então qual a origem do Mal?

E, se Deus seria insondável, como é que poderia ser conhecido? A solução encontrada no gnosticismo é que existiam seres espirituais inferiores emanados por Deus, chamados Aeons, que seriam descritos como semi-deuses, arcanjos ou anjos. O conjunto destes Aeons era designado por Pleroma (traduz-se literalmente como "Tripulação"). No fundo isto era uma forma mascarada de politeísmo, em que o Pleroma não é nada mais do que um Panteão politeísta.

No cristianismo gnóstico um desses Aeons era o "Logos" ("Palavra" ou "Verbo"). Na doutrina do Evangelho de João, este Aeon é o Cristo (João 1:1).

Outro dos Aeons era Sophia ("Sabedoria") que teria, por sua vez, emanado um Demiurgo ("meio-poderoso") que seria um ser espiritual muito inferior.

Abaixo na hierarquia dos espíritos, o Demiurgo ("meio-poderoso") teria criado o mundo físico, associando os espíritos humanos a corpos físicos. Aconteceu que o mundo físico revelou-se ser imperfeito e, em resultado disso, os perfeitos espíritos humanos encontravam-se aprisionados em corpos defeituosos. Esse demiurgo, chamado Yaldabaoth, teria sido um deus semi-poderoso, demente e incompetente.

Antes do advento do mundo físico, os espíritos humanos estavam concentrados no Aeon "Anthropos". O mundo físico trouxera o cativeiro deste espíritos. O gnosticismo propunha um processo pelo qual os seres humanos aprendiam a separar a carne do espírito.

No tempo do cristianismo, Clemente de Alexandria refere-se elogiosamente sobre os cristãos gnósticos.

Ireneu, por outro lado, já faz parte do tempo em que se começa a depreciar o gnosticismo. Ireneu combateu a escola de Valentinius chamando-a de "heresia gnóstica".

Valentinius

Valentinius (cerca de 100 a 160 EC; não confundir com S. Valentino de Terni) era um candidato a bispo de Roma que iniciou seu próprio grupo quando outro candidato foi escolhido. O Valentinianismo floresceu a partir de meados do século II EC. A escola era popular, dispersando-se para o Egipto, Síria e Ásia Menor.

Segundo Clemente de Alexandria, Valentinius terá sido um discípulo de um discípulo de Paulo de Tarsus (conhecido como Apóstolo Paulo ou S. Paulo).

Valentinius produziu uma variedade de escritos, mas apenas fragmentos sobreviveram, em grande parte aqueles embutidos em citações nas críticas de seus oponentes. Sua doutrina é conhecida apenas na forma desenvolvida e modificada pelos seus discípulos. Ele ensinou que havia três tipos de pessoas: espirituais, psíquicas e materiais; e que apenas aqueles de natureza espiritual (seus próprios seguidores) receberam a gnose (conhecimento) poderiam retornar ao Pleroma divino, enquanto os de natureza psíquica (cristãos comuns) alcançariam uma forma menor de salvação e que aqueles de uma natureza material (pagãos e judeus) estariam condenados a perecer.

Nos mitos valentinianos, a criação de uma materialidade defeituosa não é devido a qualquer falha moral por parte do Demiurgo, mas devido ao facto de que ele é menos perfeito do que as entidades superiores de onde emanou. Os valentinianos tratam realidade física com menos desrespeito do que outros grupos gnósticos, e concebem a materialidade não como uma substância separada do divino, mas como atribuível a um erro de percepção na criação.

O Demiurgo, amplamente retratado como o deus do Antigo Testamento, não seria mau mas apenas ignorante quando criou o mundo material imperfeito.

Os Valentinianos tentaram descodificar sistematicamente as Epístolas (principalmente as de Paulo), alegando que a maioria dos cristãos cometeram o erro de fazer uma leitura literal das epístolas ao invés de uma leitura alegórica. Por exemplo, o conflito entre judeus e gentios descrito na Carta aos Romanos seria uma referência codificada para as diferenças entre Psíquicos (pessoas que são parcialmente espirituais mas ainda não alcançaram a separação da carne) e Pneumáticos (pessoas totalmente espirituais, do grego "pneuma", espírito). O argumento era que tal codificação era intrínseca no gnosticismo, sendo o sigilo importante para garantir a progressão adequada para a verdadeira compreensão interior.

Não há qualquer indício de que Valentinius conhecesse algum dos Evangelhos do Novo Testamento.