sábado, 23 de dezembro de 2017

Século II - Gnosticismo - Valentinius




O gnosticismo engloba uma variedade de ideias e sistemas religiosos antigos, originários de comunidades judaicas do primeiro e segundo século EC. Com base em interpretações do Antigo Testamento (a Bíblia judaica), esses sistemas descrevem que o mundo material fora orginado por uma emanação (e não uma criação directa) do Deus supremo, tendo cativado o potencial divino humano num corpo físico. Este potencial divino poderia ser libertado pelo conhecimento (gnose).

As idéias e os sistemas gnósticos floresceram no mundo mediterrâneo até ao século II EC, influenciados pelos primeiros movimentos cristãos e com origem no platonismo. Após o século II, o crescimento da ortodoxia cristã, que culminou no catolicismo, provocou o declínio do gnosticismo no mundo ocidental. O gnosticismo espalhou-se até à China, através do Império Sassânida (Persas), com o maniqueísmo. O mandeismo, uma vertente gnóstica com origem no médio-oriente, ainda está vivo no Iraque.

Origens

As ideias fundamentais do gnosticismo têm origem com a filosofia de Platão, na antiga Grécia. O zoroastrismo persa também terá contribuido para o gnosticismo na mesma medida em que contribuiu muito para o judaísmo com a ideia de um deus universal em oposição ao deus tribal, Yahveh, dos judeus. No período helenístico, também começaram a ser associadas ideias dos cultos dos mistérios greco-romanos. Muitos grupos gnósticos surgem em Alexandria, uma cidade helenística do Egipto com grande população judaica. Filo de Alexandria terá contribuido bastante para esta linha de pensamento.

Muitos pensadores judeus do tempo do helenismo deveriam ficar, compreensivelmente, embaraçados com a leitura do Antigo Testamento. O Antigo Testamento retrata Yahveh, o deus dos judeus, como um ser psicótico, mesquinho e ciumento.

Terá havido um esforço filosófico para encontrar uma justificação para um retrato tão desfavorável de Yahveh. Surge então uma ideia: o texto do Antigo Testamento não era uma descrição real de acontecimentos, mas escondia alegoricamente a verdadeira descrição e natureza de Deus. Certamente Deus não teria as caracteristicas do psicótico Yahveh.

Deus seria, portanto, um ser transcendental e insondável. Mas aqui surgiam vários problemas: Deus era o Criador de um mundo material tão imperfeito? Se Deus é a origem do Bem, então qual a origem do Mal?

E, se Deus seria insondável, como é que poderia ser conhecido? A solução encontrada no gnosticismo é que existiam seres espirituais inferiores emanados por Deus, chamados Aeons, que seriam descritos como semi-deuses, arcanjos ou anjos. O conjunto destes Aeons era designado por Pleroma (traduz-se literalmente como "Tripulação"). No fundo isto era uma forma mascarada de politeísmo, em que o Pleroma não é nada mais do que um Panteão politeísta.

No cristianismo gnóstico um desses Aeons era o "Logos" ("Palavra" ou "Verbo"). Na doutrina do Evangelho de João, este Aeon é o Cristo (João 1:1).

Outro dos Aeons era Sophia ("Sabedoria") que teria, por sua vez, emanado um Demiurgo ("meio-poderoso") que seria um ser espiritual muito inferior.

Abaixo na hierarquia dos espíritos, o Demiurgo ("meio-poderoso") teria criado o mundo físico, associando os espíritos humanos a corpos físicos. Aconteceu que o mundo físico revelou-se ser imperfeito e, em resultado disso, os perfeitos espíritos humanos encontravam-se aprisionados em corpos defeituosos. Esse demiurgo, chamado Yaldabaoth, teria sido um deus semi-poderoso, demente e incompetente.

Antes do advento do mundo físico, os espíritos humanos estavam concentrados no Aeon "Anthropos". O mundo físico trouxera o cativeiro deste espíritos. O gnosticismo propunha um processo pelo qual os seres humanos aprendiam a separar a carne do espírito.

No tempo do cristianismo, Clemente de Alexandria refere-se elogiosamente sobre os cristãos gnósticos.

Ireneu, por outro lado, já faz parte do tempo em que se começa a depreciar o gnosticismo. Ireneu combateu a escola de Valentinius chamando-a de "heresia gnóstica".

Valentinius

Valentinius (cerca de 100 a 160 EC; não confundir com S. Valentino de Terni) era um candidato a bispo de Roma que iniciou seu próprio grupo quando outro candidato foi escolhido. O Valentinianismo floresceu a partir de meados do século II EC. A escola era popular, dispersando-se para o Egipto, Síria e Ásia Menor.

Segundo Clemente de Alexandria, Valentinius terá sido um discípulo de um discípulo de Paulo de Tarsus (conhecido como Apóstolo Paulo ou S. Paulo).

Valentinius produziu uma variedade de escritos, mas apenas fragmentos sobreviveram, em grande parte aqueles embutidos em citações nas críticas de seus oponentes. Sua doutrina é conhecida apenas na forma desenvolvida e modificada pelos seus discípulos. Ele ensinou que havia três tipos de pessoas: espirituais, psíquicas e materiais; e que apenas aqueles de natureza espiritual (seus próprios seguidores) receberam a gnose (conhecimento) poderiam retornar ao Pleroma divino, enquanto os de natureza psíquica (cristãos comuns) alcançariam uma forma menor de salvação e que aqueles de uma natureza material (pagãos e judeus) estariam condenados a perecer.

Nos mitos valentinianos, a criação de uma materialidade defeituosa não é devido a qualquer falha moral por parte do Demiurgo, mas devido ao facto de que ele é menos perfeito do que as entidades superiores de onde emanou. Os valentinianos tratam realidade física com menos desrespeito do que outros grupos gnósticos, e concebem a materialidade não como uma substância separada do divino, mas como atribuível a um erro de percepção na criação.

O Demiurgo, amplamente retratado como o deus do Antigo Testamento, não seria mau mas apenas ignorante quando criou o mundo material imperfeito.

Os Valentinianos tentaram descodificar sistematicamente as Epístolas (principalmente as de Paulo), alegando que a maioria dos cristãos cometeram o erro de fazer uma leitura literal das epístolas ao invés de uma leitura alegórica. Por exemplo, o conflito entre judeus e gentios descrito na Carta aos Romanos seria uma referência codificada para as diferenças entre Psíquicos (pessoas que são parcialmente espirituais mas ainda não alcançaram a separação da carne) e Pneumáticos (pessoas totalmente espirituais, do grego "pneuma", espírito). O argumento era que tal codificação era intrínseca no gnosticismo, sendo o sigilo importante para garantir a progressão adequada para a verdadeira compreensão interior.

Não há qualquer indício de que Valentinius conhecesse algum dos Evangelhos do Novo Testamento.

domingo, 3 de setembro de 2017

Salmos - Textos de Muitos Séculos




A Bíblia é uma colecção de livros - digamos, uma biblioteca. Dentro dessa colecção de livros existe o livro Salmos que é uma colecção de 150 poemas.

Os textos que se agrupam no livro Salmos foram redigidos ao longo de séculos, atravessando várias fases da cultura dos israelitas e judeus.

  - Época canaanita (século XI até século IX AEC) - Yahveh é descrito como os deuses do panteão de Canaã (antigos fenícios)
  - Época assíria (século IX até século VII AEC) - Yahveh monta um querubim (figura da mitologia assíria)
  - Época nacionalista (século VII AEC) - Yahveh é um deus da guerra
  - Época babilónica (século VII até século VI AEC) - Yahveh é Marduk
  - Época persa (século VI até século IV AEC) - Yahveh é Ahura Mazda - deus universal


Canaã - Yahveh é Baal e El Elyon

Segundo a tradição Canaanita, da qual o judaísmo emergiu em primeiro lugar, Deus tem características muito semelhantes aos deuses Baal (deus das tempestades e montanhas) e El Elyon (o Altíssimo). Os hebreus (os judeus e os israelitas) começam a diferenciar-se dos canaanitas (restantes habitantes de Canaã, de onde se originaram os fenícios) mas continuam a partilhar da mesma cultura durante séculos.

Nos textos actuais, ainda se consegue ver que foram resultado de adaptações de textos onde figuram Baal e El Elyon como duas figuras distintas.

O nome Baal foi substituido por Yahveh, mas Elyon ficou em muitos dos Salmos - afinal era preferível que Yahveh ficasse equiparado a Elyon (o pai dos deuses) do que a Baal (deus importante mas subalterno).

Salmos 7 - [...] Eu louvarei a Yahveh segundo a sua justiça e cantarei louvores ao nome do Yahveh Elyon
Salmo 18 - [...] Yahveh trovejou nos céus; Elyon levantou a sua voz; e havia saraiva e brasas de fogo. Despediu as suas setas e os espalhou; multiplicou raios e os perturbou. 
Salmo 29 - [Yahveh é retratado como um deus ligado aos territórios do Líbano (terra dos canaaneus) ]
Salmo 47 - Aplaudi com as mãos, todos os povos; cantai a Deus com voz de triunfo. Porque Yahveh Elyon é tremendo e Rei grande sobre toda a terra.
Salmo 82 - Elohim (deuses) estão na assembleia de El [traduzido como poderosos]; julga no meio dos Elohim. [...] Eu disse: Vós sois Elohim, e vós outros sois todos filhos do Elyon.
Salmo 83 - [...] Deus meu, faze-os como que impelidos por um tufão, como a palha diante do vento. [...] assim persegue-os com a tua tempestade e assombra-os com o teu torvelinho. [...] Para que saibam que tu, a quem só pertence o nome de Yahveh, és o Elyon sobre toda a terra. 

Salmo 89 - [...] Pois quem no firmamento se iguala a a Yahveh? Quem dentre os filhos de El é semelhante a Yahveh? [...] 

Salmo 91 - Aquele que habita no esconderijo de Elyon, à sombra de Shadday [Omnipotente] descansará. Direi de Yahveh: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. [...] Porque tu, ó Yahveh, és o meu refúgio! O Elyon é a tua habitação.

Mais ... Salmos 9:2; 21:7; 46:4; 57:2; 77:10; 78:17,35,56; 87:5; 92:1; 97:9; 107:11



Assíria - Yahveh monta um querubim

Os assírios dominaram a região de Israel desde o século IX AEC. Mais tarde acabaram por extiguir o Reino de Israel, poupando o reino de Judá. Acabaram por influenciar a história dos israelitas e dos judeus durante quase dois séculos.

Revisitamos o Salmo 18, que apresenta influência canaanita na sua origem, combinado com um sabor assírio, acrescenta um elemento da mitologia assíria, o querubimPara voar, Deus necessita de recorrer a um quadrúpede alado...

Salmo 18 - Do seu nariz subiu fumaça, e da sua boca saiu fogo que consumia; carvões se acenderam dele. Abaixou os céus e desceu, e a escuridão estava debaixo de seus pés. E montou num querubim e voou; sim, voou sobre as asas do vento.


Na Assíria, o querubim era representado como uma figura alada de corpo de animal quadrúpede, cabeça humana com cornos.

Os querubins, no tempo do cristianismo, passaram a ser representados como anjos, figuras antropomórficas aladas, muitas vezes com o aspecto de uma criança com asas. Mas os anjos só foram introduzidos na cultura judaica muito mais tarde com o zoroastrianismo persa. Para além disso é difícil imaginar Yahveh montado num anjinho com asas...


Nacionalismo - Yahveh Sabaoth, Deus da Guerra 

Terá havido uma época mais militarizada dos judeus em que Yahveh figurou como Deus da Guerra (Yahveh Sabaoth, Jeová dos Exércitos).
Um cenário de crescente nacionalismo terá surgido quando Josias, rei de Judá, aproveitando o enfraquecimento do império assírio, iniciou uma campanha de expansão dos seus territórios. O nacionalismo é geralmente acompanhado de fervor bélico, favorecendo o surgimento de deidades militares.

Salmos 24 - Quem é esse Rei da glória? Yahveh dos Exércitos; ele é o Rei da glória!
Salmos 48 - Como já temos ouvido, agora também temos visto na cidade de Yahveh dos Exércitos, na cidade de nosso Deus: Deus a preserva firme para sempre.
Salmos 80 - Yahveh, Deus dos Exércitos, até quando arderá a tua ira contra as orações do teu povo?... Restaura-nos, ó Yahveh, Deus dos Exércitos; faze resplandecer sobre nós o teu rosto, para que sejamos salvos.
Salmos 84 - Até o pardal achou um lar, e a andorinha um ninho para si, para abrigar os seus filhotes, um lugar perto do teu altar, ó Yahveh dos Exércitos, meu Rei e meu Deus.


Babilónia - Yahveh/Elohim é Marduk

No período do exílio babilónico, Yahveh é equiparado a Marduk. Recordemos que Marduk, o deus principal dos babilónios, derrotou Tiamat, o monstro dos mares, para depois criar o mundo. Marduk conseguiu domar o oceano.


Salmos 65 - Tu que firmaste os montes pela tua força, pelo teu grande poder. Tu que acalmas o bramido dos mares, o bramido de suas ondas, e o tumulto das nações.
Salmos 74 - Mas tu, ó Elohim, és o meu rei desde a antiguidade; trazes salvação sobre a terra.
Tu dividiste o mar pelo teu poder; quebraste as cabeças das serpentes das águas.
Esmagaste as cabeças do Leviatã e o deste por comida às criaturas do deserto.
Tu abriste fontes e regatos; secaste rios impetuosos.
O dia é teu, e tua também é a noite; estabeleceste o sol e a lua.
Determinaste todas as fronteiras da terra; fizeste o verão e o inverno.
Salmos 89 - Tu dominas o revolto mar; quando se agigantam as suas ondas, tu as acalmas.
Esmagaste e mataste o Monstro dos Mares [Rahab]; com teu braço forte dispersaste os teus inimigos.
Salmo 93 - Yahveh reina! Vestiu-se de majestade; de majestade vestiu-se Yahveh e armou-se de poder!
O mundo está firme e não se abalará.
O teu trono está firme desde a antiguidade; tu existes desde a eternidade.
As águas se levantaram, Yahveh, as águas levantaram a voz; as águas levantaram seu bramido.
Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso do que as ondas do mar é Yahveh nas alturas.


Pérsia - Yahveh tem asas como Ahura-Mazda

No período do domínio persa, os judeus ganham autonomia religiosa, mas adaptam alguns dos seus versos existentes à iconografia de Ahura-Mazda (habitualmente retratado como uma figura antropomórfica com asas e penugem). Deus já não necessita montar um querubim para voar, pois já tem as suas próprias asas.




Também passa a haver referência a anjos (malak), figuras também antropomórficas com asas.

Salmo 91 - Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Omnipotente descansará. Direi de Yahveh: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. [...] Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas estarás seguro; a sua verdade é escudo e broquel. [...] Porque tu, ó Yahveh, és o meu refúgio! O Altíssimo é a tua habitação. [...] Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos. 
Salmos 103 - [...] Bendizei a Yahveh, anjos seus, magníficos em poder, que cumpris as suas ordens, obedecendo à voz da sua palavra. 
Salmos 104 - [...] Faz dos ventos seus mensageiros (malakim, anjos), dos seus ministros, um fogo abrasador. 
Salmos 148 - [...] Louvai-o, todos os seus anjos; louvai-o, todos os seus exércitos.


Para os persas zoroastrianos, Ahura Mazda é o único deus, universal. Depois do contacto de séculos com as superpotências os judeus acreditam, nesta época, que Yahveh é Ahura-Mazda, Marduk, o Deus dos Exércitos, o Altíssimo, etc.


sábado, 8 de julho de 2017

Evangelho de Marcos - José de Arimateia




Segundo o evangelho de Marcos, no julgamento de Jesus, todos os membros do Sinédrio (o senado judaico, que funcionava também como tribunal) condenaram Jesus à morte.
Marcos 14:64
Vós ouvistes a blasfêmia; que vos parece? E todos o consideraram culpado de morte.

José de Arimateia - uma nova personagem na narrativa

Depois da crucificação, uma nova personagem, José de Arimateia, é introduzida na narrativa como a pessoa que tratou de um sepultamento honroso para Jesus. Esta nova personagem da narrativa é descrita como "membro ilustre do Sinédrio, que também aguardava o reino de Deus" e que foi pedir a Pilatos permissão para retirar o corpo de Jesus da cruz.

Marcos 15:43
... chegou José de Arimateia, senador honrado, que também esperava o Reino de Deus, e ousadamente foi a Pilatos, e pediu o corpo de Jesus. 

Se José de Arimateia era um membro do Sinédrio então também teria condenado Jesus à morte, porque "todos o consideraram culpado" no Sinédrio!

"Marcos" elaborou esta parte da sua narrativa com base num texto de Isaías. Provavelmente, este autor pretendia inicialmente escrever que Jesus teria sido sepultado pelos seus "opressores" junto com os "ímpios" e não por um "amigo de Jesus".

Isaías 53:7-9
Ele foi oprimido, mas não abriu a boca; como um cordeiro, foi levado ao matadouro e, como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca. [...] E puseram a sua sepultura com os ímpios e com o rico, na sua morte; porquanto nunca fez injustiça, nem houve engano na sua boca.

A possível ideia inicial de "Marcos" é que Jesus cumpria, assim, o texto do Antigo Testamento em Isaías 53. Por isso, José de Arimateia é descrito como um membro do Sinédrio, ou seja, faz parte do grupo de "opressores" que condenaram Jesus à morte. Mas, sendo assim, o corpo de Jesus deveria ser depositado numa vala comum junto com os outros dois crucificados e não num túmulo individual!

Até mesmo o autor de Actos dos Apóstolos coloca as seguintes palavras na boca de Paulo num alegado discurso seu:
Actos 13:27-29
"... Por não terem conhecido a este, os que habitavam em Jerusalém e os seus príncipes, condenaram-no, cumprindo assim as vozes dos profetas que se lêem todos os sábados. E, embora não achassem alguma causa de morte, pediram a Pilatos que ele fosse morto. E, havendo eles cumprido todas as coisas que dele estavam escritas, tirando-o do madeiro, o puseram na sepultura."

Repare-se que, nesta passagem de Actos dos Apóstolos, Paulo insinua que Jesus foi sepultado pelos mesmos que o condenaram à morte (na verdade, nas suas cartas, Paulo escreveu que todos os príncipes do mundo crucificaram Jesus nunca se referindo sobre quem o teria sepultado...). Ou seja, na perspectiva do autor de Actos, Jesus teria sido sepultado pelos homens do Sinédrio. Ora, estes nunca iriam dar um funeral honroso a um condenado!

Mas esta abordagem não permitiria o episódio do túmulo vazio que é um dos pilares do cristianismo desde o século III ou IV. Assim, Jesus tinha de ser sepultado num túmulo individual para que a narrativa pudesse prosseguir em direcção a um túmulo que é, posteriormente, encontrado vazio!

Mas o túmulo vazio poderá ter sido uma das ideias mais tardias dos evangelhos. A personagem José de Arimateia foi sendo moldada nos vários evangelhos, começando por ser descrito como um membro do tribunal que condenou Jesus até ser um discípulo secreto de Jesus. Vejamos como é descrito esta personagem nos vários evangelhos do Novo Testamento:

Marcos 15:43
Mateus 27:57
Lucas 23:50-51
João 19:38
Membro ilustre do Sinédrio, que também aguardava o “reino de Deus”
Um homem rico, que era discípulo de Jesus
Membro do Sinédrio, justo e bom, que não votou contra Jesus
Discípulo secreto de Jesus.


Os evangelistas posteriores a uma hipotética versão original de "Marcos" (que não chegou aos dias actuais) terão achado que Jesus deveria ser sepultado por alguém que lhe desse um funeral honroso, disponibilizando um túmulo individual, por isso fizeram as adaptações necessárias ao texto.

O próprio texto de Marcos poderá ter sido corrompido ao acrescentarem que José de Arimateia "aguardava o Reino de Deus". Esse acrescento não deveria constar no texto original de Marcos que, muito provavelmente, registaria que o corpo de Jesus teria sido depositado numa vala comum. Recordemos que existem várias versões do Evangelho de Marcos com finalizações diversas

Onde é Arimateia?

Tal como existe um problema com "Nazaré", também não existem evidências da existência de alguma localidade, aldeia ou cidade com o nome "Arimateia" no século I.

Provavelmente, "Arimatheia" é uma palavra construída que em grego poderá significar "Cidade da Melhor Doutrina", sugerindo um sentido de humor requintado do autor do Evangelho.

No Evangelho de Pedro, evangelho não canónico, a personagem que resgata o corpo de Jesus só se chama José, não sendo identificado com a fictícia localidade de Arimateia.

Quem Sepultou Jesus, nos outros Evangelhos?

Em Marcos, José de Arimateia foi sozinho sepultar Jesus. Nos outros evangelhos, quem sepultou Jesus?

Marcos 15:43-46
Mateus 27:57-60
Lucas 23:50-53
João 19:38-40
José de Arimateia, com algumas mulheres a observar.
José de Arimateia e Nicodemos


Em Marcos e Mateus está registado que José de Arimateia, antes de se ir embora, rolou uma pedra para tapar a entrada do túmulo. Então essa pedra não seria assim tão pesada, a não ser que José de Arimateia fosse um campeão de levantamento de pesos. Mateus acrescenta que os sacerdotes e fariseus sugeriram colocar uma guarda a vigiar o túmulo não fossem os discípulos roubar o corpo de Jesus.

Evangelho de João acrescenta que Nicodemos, descrito como um príncipe (gr. archon; governante) judeu, também participou no sepultamento de Jesus (será que José de Arimateia fechou o túmulo ainda com Nicodemos lá dentro?...).

No Evangelho de Pedro, José (que não é "de Arimateia") deposita o corpo de Jesus num túmulo mas aparentemente não o fecha. O túmulo é selado com uma pedra, posteriormente, por soldados que acompanhavam um centurião, anciãos judeus e escribas.


José de Arimateia inspirado em Flávio Josefo

Na sua auto-biografia, Flávio Josefo conta como pediu a Tito que intercedesse por três de seus companheiros judeus que tinham sido crucificados. Ele diz que conseguiu que os três fossem retirados da cruz ainda vivos. Dois acabaram por morrer mas um ainda sobreviveu!

Vida de Josefo, parágrafo 75

Eu vi muitos cativos crucificados e me lembrei de três deles como meus antigos conhecidos. Fiquei muito triste com isso em minha mente, e com lágrimas nos olhos fui até Tito e contei-lhe sobre eles. Então ele imediatamente ordenou que fossem retirados e que tivessem o maior cuidado com eles, a fim de sua recuperação; no entanto, dois deles morreram nas mãos do médico, enquanto o terceiro se recuperou.


Isto não faz lembrar nada? O Jesus do Evangelho de Marcos foi crucificado junto com outros dois criminosos. E Jesus apareceu vivo depois de crucificado! 

Referências:

 - Vida de Josefo: http://www.earlyjewishwritings.com/text/josephus/life.html


segunda-feira, 26 de junho de 2017

Zoroastro - Revelação de Ahura Mazda




Ahura Mazda, ou Spenta Mainyu

Ahura Mazda, cujo nome significa "Senhor Sábio", era um deus importante na antiga mitologia persa, originalmente chamado Spenta Mainyu.

Existem evidências do culto generalizado a Ahura Mazda por volta de 600 a.C.. Os persas consideraram que ele era o criador da terra, dos céus e da humanidade, bem como a fonte de toda bondade e felicidade na terra.

A religião conhecida como zoroastrismo na Pérsia adoptou Ahura Mazda como o deus supremo. Esta foi, provavelmente, uma época de consolidação de crenças e religiões. A consolidação de várias religiões persas levou à crença num deus supremo. Foi a criação do monoteísmo.

Ahura Mazda aparece em arte e textos persas como um homem com barba vestindo um manto coberto de estrelas. Habitando lá alto no céu, ele tinha o sol como o seu olho. Na religião zoroastriana, Ahura Mazda estava associado à luz e ao fogo, aos símbolos da verdade, do bem e da sabedoria. Ele criou seis seres divinos, ou anjos, para ajudá-lo a espalhar o bem e governar o universo. Um dos anjos mais importantes foi Ahsa Vahishta ("Excelente Ordem" ou "Verdade"), patrono do fogo e espírito de justiça. Vohu Manah ("Boa Mente") era um símbolo de amor e sabedoria sagrada que acolhia almas para o paraíso.

A criação de um Deus todo-poderoso e benevolente deixa de lado uma importante questão: qual é a fonte do mal e do sofrimento? Esta questão, designada por "teodiceia", é um grande incómodo nos monoteísmos.

Os zoroastrianos tinham, inicialmente, um sistema dualista de crença em que duas forças opostas e iguais - boas e más - lutavam pelo controle do mundo. Ahura Mazda representava a luz, a verdade e o bem. O seu grande inimigo era Ahriman, o deus das trevas, da ira e da morte. Ao consolidar o monoteísmo, os zoroastrianos consideraram Ahura Mazda como a força mais poderosa, que inevitavelmente triunfaria sobre Ahriman.

Ahriman, ou Angra Mainyu

Ahriman era o deus do mal e da escuridão na mitologia persa e no zoroastrismo. Muitas vezes chamado de Druj ("a Mentira"), Ahriman era a força por trás da raiva, ganância, inveja e outras emoções negativas e prejudiciais. Ele também trouxe o caos, a morte, a doença e outros males no mundo. Na religião islâmica, ele é identificado com Iblis, o diabo.

Originalmente, Ahriman era o deus persa Angra Mainyu, um espírito destrutivo cujo irmão gémeo, Spenta Mainyu, era um espírito benevolente. Os seres humanos e os deuses tinham que escolher qual espírito deveriam servir. À medida que a religião zoroastrista se desenvolveu, Angra Mainyu tornou-se Ahriman, e Spenta Mainyu transformou-se em Ahura Mazda, o "Senhor Sábio". A história do mundo foi vista como uma luta entre essas duas forças. Ahura Mazda teve o apoio dos yazatas (anjos), enquanto Ahriman criou uma série de demónios chamados daevas para espalhar sua influência do mal, atraindo a inveja, ganância e desejo de poder dos seres humanos.

O combate entre o Bem e o Mal

A mitologia declara um período de 12.000 anos de combate.

Ahriman, em dado momento terá decidido atacar, mas Ahura Mazda consegue detê-lo durante 3.000 anos, simplesmente cantando uns hinos (Gâthas) semelhantes ao Pai Nosso do cristianismo.

Durante o tempo em que Ahriman se encontrava preso, Ahura Mazda desenvolve um plano para vencer. Cria sete arcanjos e, com estes, cria uns espíritos inferiores como sendo protótipos celestiais dos seres humanos. A estes últimos ele pergunta: "Tenho um grande conflito a começar, vocês podem ajudar-me assumindo uma forma carnal no mundo material?". Eles concordam e assim nasce a humanidade no mundo material cujo objectivo é ajudar Ahura Mazda no combate a Ahriman.

Quando Ahriman acorda, ele foge do subterrâneo e cria a Casa da Mentira, uma espécie de inferno.

Zoroastro, ou Zaratustra

Pouco se sabe sobre a vida de Zaratustra. Por exemplo, é incerto quando ele viveu. Os gregos antigos especularam que ele viveu seis mil anos antes do filósofo Platão e vários académicos dataram-no no início do século VI a.C. Outros académicos aceitam que Zaratustra é o autor dos Gâthas (uma parte do livro sagrado dos zoroastrianos, Avesta), que eles datam, em termos linguísticos, no século XIV ou XIII a.C.

Também não é claro onde Zaratustra nasceu e onde passou a primeira metade de sua vida. Todas as tribos que se converteram ao zoroastrismo inventaram lendas sobre a vida do profeta, e quase todos alegaram que o grande mestre era "um deles". Por motivos linguísticos, podemos argumentar que o autor dos Gâthas pertencia a uma tribo que vivia na parte oriental do Irão, no Afeganistão ou no Turquemenistão.

Os textos dos Gâthas não são de grande ajuda na busca pela biografia de Zaratruta. Contêm algumas informações sobre Zaratustra, mas dificilmente são dados biográficos, enquadrando-se no campo da mitologia. O Denkard, um texto em lingua Avéstica, mas muito tardio (século IX d.C.), contém um resumo de uma biografia supostamente mais antiga. Contém muitas lendas e a confiabilidade não parece muito grande. Combinando algumas narrativas obtemos o seguinte:

Zaratustra nasceu na Bactria (ou qualquer outro território ariano) como filho de um nobre não muito poderoso chamado Purushaspa e uma mulher chamada Dughdhova. Zaratustra foi o terceiro de cinco irmãos. Ele se tornou um sacerdote e parece ter demonstrado uma dedicação notável a humanos e gado. A família é chamada de Spitama, que é um título honorário que significa "mais benéfico". 
Ao nascer, Zaratustra não chorou, pelo contrário, riu sonoramente. As parteiras, vendo aquilo, admiraram-se, pois nunca tinham visto um bebé rir ao nascer.
Na vila havia um sacerdote que percebeu que aquele menino viria a ser um revolucionário do pensamento humano e que enfraqueceria o poder dos "donos" das religiões. Ele então decidiu tomar providências e procurou Pourushaspa, o pai de Zaratustra, com a seguinte conversa: "Pourushaspa Spitama, vim avisá-lo. O seu filho é um mau sinal para a nossa vila porque riu ao nascer. Ele tem um demónio. Mate-o ou os deuses destruirão os seus cavalos e plantações. Onde já se viu rir ao nascer nesse mundo triste e escuro! Os deuses estão furiosos!". 
Pourushaspa não queria matar o seu filho, mas o sacerdote insistiu. 
Na manhã seguinte Pourushaspa fez uma grande fogueira, e à frente de todos colocou Zaratustra no meio do fogo, mas ele não sofreu dano algum. O sacerdote ficou confuso. 
Zaratustra foi levado então para um vale estreito e colocado no caminho de uma boiada de mil cabeças de gado, para ser pisoteado. O primeiro boi da boiada percebeu o menino e ficou parado sobre ele, protegendo-o, enquanto o resto passava ao lado e o bebé não sofreu um só arranhão. 
O sacerdote logo arquitectou outro plano. O menino Zaratustra foi colocado na toca de uma loba que, ao invés de devorá-lo, cuidou dele até que Dughdhova, sua mãe, o veio buscar. 
Diante de tantos prodígios o sacerdote ficou envergonhado e mudou-se da vila. 
Ao crescer, Zaratustra peramburalava pelas estepes indagando-se: "Quem fez o sol e as estrelas do céu? Quem criou as águas e as plantas? E quem faz a lua crescer e minguar? Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?". 
Zaratustra viveu, até aos trinta anos, quase sempre isolado, habitando no alto de uma montanha, em cavernas sagradas. Não ingeria nenhum alimento de origem animal. 
Um dia, quando tinha trinta anos, Zaratustra meditava nas margens de um rio quando um ser estranho lhe apareceu. Ele era indescritível, tal a sua beleza e brilho. Zaratustra perguntou-lhe quem era ele, ao que teve como resposta: "Sou Vohu Mano, a Boa Mente. Vim buscar-te". E tomou-lhe a mão, e o levou para um lugar muito bonito, onde sete outros seres os esperavam. 
A Boa Mente disse-lhe então: "Zaratustra, se tu quiseres podes encontrar em ti mesmo todas as respostas que tanto buscas, e também questões mais interessantes ainda. Ahura Mazda, Deus que tudo cria e sustenta, assim escolheu partilhar a sua divindade com os seres que cria. Agora, sabendo disso, tu podes anunciar essa mensagem libertadora a todas as pessoas.” 
Zaratustra contestou: "Por que eu? Não sou poderoso e nem tenho recursos!". Os outros seres responderam em coro: "Tu tens tudo o que precisas, o que todos igualmente têm: Bons pensamentos, boas palavras e boas ações".
Entretanto, aparece-lhe um demónio de Ahriman que o tenta demover.  
Zaratustra voltou para casa e contou a todos o que lhe acontecera, e começou a pregar que havia um deus supremo, o "sábio senhor" Ahura Mazda, que criou o mundo, a humanidade e todas as coisas boas nele através de seu espírito sagrado, Spenta Mainyu. O resto do universo foi criado por outros seis espíritos, os Amesha Spentas ("imortais sagrados"). No entanto, a ordem desta criação sete vezes foi ameaçada pela mentira; Os espíritos bons e malignos estavam lutando e a humanidade teve que suportar os bons espíritos, a fim de acelerar a inevitável vitória do bem.
A sua família aceitou o que ele havia descoberto. Mas os sacerdotes o rejeitaram argumentando: "Se é assim nada há de especial em nosso serviço. De nada valem os nossos sacrifícios e perderemos o poder que nos dão os deuses ciumentos e caprichosos que servimos. Ficamos sem trabalho e passaremos fome!". Decidiram, então, dar cabo da vida de Zaratustra. 
Com sua boa mente ele entendeu que tinha que sair dali por uns tempos. Chamou seus vinte e dois companheiros e companheiras de primeira hora e fugiram com tudo o que tinham. Eles viajaram durante várias semanas até chegarem a um lugar cujo governante chamava-se Histaspes. Zaratustra procurou Histaspes e partilhou com ele a sua descoberta. 
Histaspes respondeu ao seu apelo com uma recusa: "Por que haveria de crer nesse estranho? Meus deuses são, com certeza, mais poderosos que esse Ahura Mazda!".
Após dois anos tentando convencer Histaspes, e enfrentando a mais cruel oposição, passando, inclusive, um tempo preso, um acidente com o cavalo de Histaspes ajudou a resolver a favor de Zaratustra esse impasse. À beira de morte, o cavalo tornou-se o centro de todas as atenções. Histaspes chamou sacerdotes, feiticeiros, médicos e sábios para salvar o seu cavalo. Juntos eles tentaram de tudo, inclusive oferecendo aos deuses dezenas de sacrifícios de outros cavalos. Além disso, brigaram entre si, fizeram intrigas, mas nada aconteceu, o cavalo de Histaspes só piorava. Zaratustra, que fora criado num ambiente rural, logo percebeu que ele fora envenenado. Procurando Histaspes ele sugeriu um remédio muito usado nesses casos na sua terra. Sem alternativas, embora descrente, Histaspes aceitou a ideia de Zaratustra e em dois dias seu cavalo estava de pé, sem sinal da doença. 
Todos ficaram pasmados e acharam que Zaratustra tinha operado um milagre. Ele respondeu que havia apenas usado a sua boa mente e os conhecimentos que tinha adquirido em casa. Histaspes e sua família ficaram encantados com a honestidade e simplicidade de Zaratustra, e dispuseram-se a ouvi-lo de novo, dessa vez com coração e mentes desarmados. Em pouco tempo não só Histaspes e sua família haviam sido iniciados, como também grande parte de seu povo. 
Embora Zaratustra pudesse ter usado a ocasião da cura do cavalo de Histaspes para arrogar-se poderes sobrenaturais, ele preferiu ser sincero, e foi isso o que de facto mostrou a Histaspes a sublime beleza e profundidade da mensagem.
Muitos nobres seguiram o exemplo de Histaspes para se converterem à nova religião de Zaratustra. 
Zaratustra morou na corte de Histaspes, até ser morto aos setenta e sete anos por invasores nómadas. Alguns localizam sua morte em Bactra (Afeganistão).


Conclusões

Quanto à dualidade Ahura Mazda / Ahriman, encontramos a mesma situação no judaísmo e cristianismo com a dualidade Deus / Satanás.

Quanto a paralelos entre Zoroastro e Jesus Cristo:
 - Foi ameaçado com a morte quando era bebé (Mateus 2:16-18)
 - Tornou-se uma figura pública aos trinta anos (Lucas 3:23)
 - Um espírito aparece-lhe quando se encontrava num rio (Marcos 1:9-11)
 - Foi tentado por um demónio (Marcos 1:12-13)
 - Tinha quatro irmãos (Marcos 6:3)


Ver também:
 - Ciro da Pérsia - O Direito das Nações
 - Os persas devolvem autonomia aos judeus


Referências:
 - http://www.livius.org/articles/person/zarathustra/
 - https://pt.wikipedia.org/wiki/Zaratustra
 - http://www.ancient.eu/zoroaster/
 - http://www.avesta.org/denkard/denkard.htm


segunda-feira, 5 de junho de 2017

Século II - Celsus - Contra o Cristianismo





De acordo com Orígenes (considerado um dos pais fundadores da Igreja), Celsus (Celso) era um filósofo grego do século II (do tempo do imperador Adriano e posterior) e oponente do cristianismo primitivo. Celsus seria bastante conhecido pela sua obra literária, "A Verdadeira Palavra" (ou "Verdadeiro Discurso"), que sobreviveu exclusivamente nas citações de Orígenes dele em "Contra Celsum".

Como filósofo grego anti-cristão, Celsus montou um ataque ao cristianismo. O seu trabalho escrito, que pode ser datado de cerca de 178 EC, é o primeiro ataque abrangente conhecido ao cristianismo.

Orígenes escreveu a sua refutação ou apologia cristã por volta de 248 EC, portanto cerca de 70 anos depois de Celsus. O facto de Orígenes ter investido num extenso texto (muitos volumes) para refutar o trabalho de Celsus, revela que este ainda seria muito importante no tempo de Orígenes.

Recapitulando:
 - por volta de 178 EC, Celsus escreveu "A Verdadeira Palavra" para combater ou denunciar o cristianismo
 - por volta de 248 EC, Orígenes escreveu "Contra Celsus" para refutar o trabalho de Celsus

Entretanto o trabalho de Celsus foi perdido (muito provavelmente por ser uma obra anti-cristianismo), mas pode ser reconstituído, pelo menos parcialmente, a partir do texto de Orígenes. A refutação "Contra Celsus" contém o texto original de Celsus, entrelaçado com as respostas apologéticas de Orígenes. O trabalho de Orígenes sobreviveu e, assim, preservou o texto de Celsus com ele.

O que Celsus sabia sobre o cristianismo seria através de literatura cristã - provavelmente versões primitivas dos evangelhos, principalmente do "Evangelho de Mateus" - e através de literatura judaica que satirizaria os evangelhos, provavelmente o "Sepher Toldoth Yeshu" (a história de Jesus ben Pandera).

Celsus começaria assim o seu ataque ao cristianismo:
Celsus, "A Verdadeira Palavra", reconstrução a partir de Orígenes
As associações, algumas são públicas e de acordo com as leis. Outras, porém, são secretas e ilegais. Deste último tipo é o cristianismo. Os cristãos ensinam e praticam suas doutrinas favoritas em segredo. Eles fazem isso com algum propósito, procurando escapar da pena da morte que é iminente. Perigos semelhantes foram encontrados por homens como Sócrates por causa da filosofia. Suas "festas de amor" tiveram sua origem no perigo comum, e são mais vinculativas do que qualquer juramento. 
O sistema de doutrina, a saber, o judaísmo, do qual o cristianismo depende, era bárbaro na sua origem. Neste caso, como nos outros, os gregos são mais habilidosos do que qualquer outro povo em julgar, estabelecer e tornar práticas as descobertas de nações bárbaras. 
Seu sistema de moral é comum a outros filósofos, sem nada de novo ou venerável na sua instrução, embora eles achem que as suas regulamentações a respeito da idolatria sejam peculiares. Os cristãos não consideram os deuses que são feitos com as mãos, com o argumento de que não é razoável supor que as imagens, formadas pelos mais inúteis e depravados operários, em muitos casos pagos por homens perversos, possam ser consideradas deuses. Esta é uma opinião comum que não é original no cristianismo, pois já Heráclito teria dito para este efeito: "Aqueles que se aproximam de imagens sem vida, como se fossem deuses, agem de maneira semelhante àqueles que conversam com casas". Os persas também eram da mesma opinião, segundo Heródoto.


Celsus mostra-se familiarizado com o judaísmo. Utiliza um artifício literário em que elabora um diálogo fictício entre um judeu anónimo e Jesus:
Celsus, "A Verdadeira Palavra", reconstrução a partir de Orígenes
[O Discurso do Judeu a Jesus]
"Tu, senhor, inventaste o teu nascimento de uma virgem! Tu, Jesus, nasceste numa certa aldeia judaica, de uma pobre mulher do país, que ganhava a sua subsistência na fiação. Quando ela estava grávida, foi expulsa pelo carpinteiro a quem tinha sido desposada, como condenada de adultério, e ela carregou uma criança de um certo soldado chamado Panthera. Depois de ter sido repudiada pelo marido, e vagando por um tempo, ela desgraçadamente deu à luz Jesus, que, criado como filho ilegítimo, se fez servo no Egipto por causa da sua pobreza, e tendo adquirido o conhecimento de certos poderes milagrosos, sobre os quais os egípcios se orgulham muito, retornou ao seu próprio país, exaltado por causa deles, e por meio desses poderes se proclamou um deus. 
"Como é que a ficção de seu nascimento de uma virgem difere das fábulas gregas sobre Danae, Melanippe, Auge e Antiope? Se a mãe de Jesus fosse bela, o deus cuja natureza não ama um corpo corruptível, teve relações sexuais com ela porque era bela. Era improvável que o deus tivesse uma paixão por ela, porque ela não era nem rica nem de posição real, pois nem mesmo os seus vizinhos a conheciam. Quando odiada pelo seu marido, e expulsa, não foi salva pelo poder divino, nem era a sua história credível. Tais coisas não têm conexão com o reino dos céus. A predição de que nosso Senhor deveria vir ao mundo, e o relato da estrela e dos sábios que vieram do Oriente para adorar a criança são ficções [Mateus 2:1]. 
"Quando tu, Jesus, te banhavas ao lado de João, disseste que o que tinha a aparência de um pássaro desceu sobre ti [Mateus 3:16]. Que testemunha credível viu essa aparição? Ou quem ouviu uma voz do céu declarando que eras o filho de Deus? Que prova há, salvo tua própria afirmação ou a afirmação de outra pessoa que foi punida junto contigo? Este é o teu próprio testemunho, apenas apoiado pelos que compartilhavam a tua punição, a quem tu adotas.


Orígenes teria escrito assim sobre o caso do soldado Panthera:
Orígenes, "Contra Celsus", Livro I 
CAP. XXVIII 
E, imitando um retórico treinando um aluno, ele [Celsus] apresenta um judeu, que entra numa discussão pessoal com Jesus e que fala de uma maneira muito infantil, completamente indigno dos cabelos grisalhos de um filósofo. Deixe-me tentar o melhor da minha capacidade para examinar as suas afirmações e mostrar que ele não mantém, durante a discussão, a consistência do carácter de um judeu. Pois ele o representa disputando com Jesus, e confundindo-o, como ele pensa, em muitos pontos.  
Em primeiro lugar, ele o acusa de ter "inventado seu nascimento de uma virgem" e o reprova de "nascer numa certa aldeia judaica, de uma pobre mulher do país, que ganhou sua subsistência na fiação e que foi repudiada pelo seu marido, um carpinteiro de profissão, porque ela foi condenada por adultério, que, depois de ser expulsa pelo marido, e vagando por um tempo, ela desgraçadamente deu à luz Jesus, um filho ilegítimo, que se tornou servo no Egipto por causa de sua pobreza, e tendo adquirido alguns poderes milagrosos, dos quais os egípcios se orgulham muito, voltou para o seu próprio país, muito entusiasmado por causa deles, e por isso se proclamou um deus".
Agora, como não posso permitir que nada que seja dito pelos incrédulos permaneça não examinado, mas deve-se investigar tudo desde o início, dou como minha opinião que todas essas coisas se harmonizam dignamente com as previsões de que Jesus é o Filho de Deus.
... 
CAP. XXXII 
Mas voltemos agora para quando o judeu é apresentado falando sobre a mãe de Jesus e dizendo que "quando ela estava grávida, ela foi repudiada pelo carpinteiro a quem ela tinha sido desposada, como culpada de adultério, e que ela carregou o filho de um soldado chamado Panthera". 
E deixe-nos ver se aqueles que têm cegamente inventado essas fábulas sobre o adultério da Virgem com Panthera e sua rejeição pelo carpinteiro, não inventaram essas histórias para depreciar sua milagrosa concepção pelo Espírito Santo: pois eles poderiam ter falsificado a história de uma maneira diferente, por causa de seu caráter extremamente milagroso, e não admitiram, por assim dizer, contra sua vontade, que Jesus não nasceu de nenhum casamento humano comum. Era de esperar, de facto, que aqueles que não acreditassem no nascimento milagroso de Jesus inventariam alguma falsidade. 
E eles não fazem isso de maneira credível, mas preservam o facto de que não foi por José que a Virgem concebeu Jesus, tornando a falsidade muito palpável para aqueles que podem entender e detectar tais invenções. 
É de todo razoável raciocinar, que aquele que ousou fazer tanto pela raça humana, para que, tanto gregos como bárbaros, que procuravam a condenação divina, poderiam afastar-se do mal, regulando toda a sua conduta de uma maneira agradável ao Criador do mundo, não deveria ter tido um nascimento milagroso, mas um mais vil e mais vergonhoso de todos?  
E eu perguntarei a eles como gregos, e particularmente a Celsus, se mantém ou não os sentimentos de Platão, ja que os cita, se Aquele que envia almas para dentro dos corpos dos homens [no nascimento], degradou assim aquele que ousou assim actos poderosos de ensinar tantos homens, e livrar tantos da maldade no mundo, até um nascimento mais vergonhoso do que qualquer outro, e não o apresentou ao mundo através de um casamento legal?  
Ou não está mais em conformidade com a razão, que toda alma que, por certas razões misteriosas (eu falo agora de acordo com a opinião de Pitágoras, Platão e Empédocles, a quem Celsus frequentemente cita), é introduzida num corpo e introduzida de acordo com os seus desejos e acções anteriores?  
É provável, portanto, que esta alma, também, que conferiu mais benefícios pela sua residência na carne do que a de muitos homens (para evitar alguma depreciação, não digo "todos"), precisava de um corpo não apenas superior a outros, mas investiram com todas as excelentes qualidades.


Podemos verificar a pobreza das respostas de Orígenes aos argumentos de Celsus em todo o texto de "Contra Celsus"...


Referências:
 - http://trisagionseraph.tripod.com/Texts/Celsus.html
 - http://www.earlychristianwritings.com/origen.html


domingo, 30 de abril de 2017

Século II - Actos de João



Introdução

O livro "Actos de João" não entrou no Novo Testamento, pois foi preterido em relação à obra "Actos dos Apóstolos" a qual estaria mais de acordo com a doutrina escolhida pela Igreja.

Embora o começo do livro esteja perdido, existem algumas porções largas no original grego, e uma versão latina de alguns episódios perdidos, além de alguns fragmentos dispersos.

Como com as outras obras dentro do género "Actos de Apóstolos", a narrativa segue o contexto dos anos seguintes à suposta crucificação e ressurreição de Jesus conforme tradições cristãs primitivas. A narrativa tem como fio condutor duas viagens do Apóstolo João a Éfeso, cheias de eventos dramáticos, milagres e ensinamentos.

Resumo

O texto existente começa com João e um pequeno grupo em viagem de Mileto para Éfeso.

Morre por fé insuficiente

Em Éfeso, João é esperado por um aristocrata local, Lycomedes. Este confessa que teve uma revelação do Deus de João, que o avisou de que um homem de Mileto iria curar a sua esposa que se encontrava paralisada, há sete dias, por doença. À chegada, Lycomedes lamenta-se, amaldiçoa a sua situação e, apesar dos apelos de João para ter fé em que sua esposa seria curada pelo poder de Deus, cai morto de sofrimento. Toda a cidade de Éfeso é agitada pela sua morte e o povo chega a sua casa para ver o seu corpo. João reza para que se levantem os dois para provar o próprio poder de Cristo. Tanto Lycomedes como a sua mulher levantam-se, deixando o povo de Éfeso maravilhado com o milagre.

Dress-code obrigatório

Mais tarde, durante um festival que celebra o aniversário da Deusa grega Ártemis, o povo de Éfeso tenta matar João porque foi ao templo vestido de preto, em vez de branco. João os repreende, ameaçando que o seu Deus os mataria se eles não conseguissem convencer sua Deusa a fazê-lo morrer no local. Sabendo que João tinha realizado muitos milagres na sua cidade, as pessoas que estavam no templo imploram a João para que não as mate. João então muda de ideias, usando o poder de Deus para quebrar o altar de Artemis, danificar as ofertas e ídolos dentro do templo, e colapsar metade da estrutura. O sacerdote do templo acaba por morrer esmagado pelo tecto. Ao ver essa destruição, o povo rende-se imediatamente ao Deus de João.

Insectos irritantes, mas obedientes

Num outro episódio, João, o narrador e os seus companheiros passam a noite numa estalagem infestada de percevejos. Imediatamente depois de se deitar, o autor e os outros homens com ele veem João irritado pelos insectos na cama e ouvem-no dizer: "Eu vos digo, bichos, prestem atenção: deixem vossa casa por esta noite, vão para longe dos servos de Deus!" Na manhã seguinte, o narrador, acompanhado por dois de seus companheiros de viagem, Verus e Andrónicus, encontram os insectos reunidos na entrada, esperando para voltar ao colchão da cama de João. Os três homens acordam João, que permite que as criaturas retornem à cama.

Necrofilia

Imediatamente após o encontro de João com os percevejos, o grupo viaja até à casa de Andrónicus em Éfeso. Andrónicus é casado com Drusiana, uma devota crente em Deus, que permaneceu casta até mesmo no casamento (negou sexo ao seu marido até este converter-se à mesma fé). No entanto, o seu celibato não impede os avanços de Calímacus, um membro proeminente da comunidade de Éfeso. Após as investidas deste, Drusiana adoece e morre porque acredita ter contribuído para a perversão de Calímacus. Enquanto João consola Andrónicus e muitos dos outros habitantes de Éfeso por causa da perda de Drusiana, Calímacus, determinado a ter Drusiana como sua, suborna o mordomo de Andrónicus, Fortunatus, para que possa ter acesso ao seu túmulo e violar o seu cadáver. No entanto, Calímacus descobre que o túmulo é guardado por uma serpente venenosa que morde e mata Fortunatus. Calímacus ainda tenta violar o cadáver de Druisiana, mas depara-se com um belo jovem que protege o corpo de Druisiana. O jovem faz Calímacus "morrer, para que possa viver."

Recompensa-se o criminoso

No dia seguinte, João e Andrónicus entram no túmulo de Drusiana e são cumprimentados pelo belo jovem, identificado mais tarde como Cristo, que diz que é suposto João levantar Drusiana de volta à vida antes de ascender ao céu. João faz isso, mas não antes de ressuscitar Calímacus, a fim de saber o que tinha ocorrido na noite anterior. Calímacus relata os acontecimentos da noite e mostra-se arrependido. A seguir, Drusiana é ressuscitada. Ela sente pena do outro agressor e João concede-lhe a capacidade de ressuscitar Fortunatus, com a oposição de Calímacus. Fortunatus, como não queria aceitar Cristo, foge do túmulo mas morre devido ao envenenamento causado pela mordida inicial da cobra.

Tom Docético

Quase na finalização (versículos 87 a 102), João narra a sua versão sobre a crucificação de Cristo, explicando que todos os acontecimentos foram forjados pelo próprio "Senhor" como uma encenação. João diz: "Mas no fundo eu sabia que o Senhor tinha inventado todas estas coisas simbolicamente com vista a um perdão para com os homens, para sua conversão e salvação."
João explica mesmo que o Cristo é um conjunto de conceitos e que já lhe aparecera sob em inúmeras formas (como criança, como velho, como gigante, etc).

Na terminologia cristã, docetismo (gr. dokein (parecer) / dókēsis (aparição, fantasma)), pode ser definido como a doutrina segundo a qual o fenómeno de Cristo, sua existência histórica e corporal, e, portanto, acima de tudo, a forma humana de Jesus, é apenas mera aparência, sem qualquer verdadeira realidade.

A Igreja Católica combateu o docetismo, porque preferiu a versão de que Jesus surgiu como uma criança humana nascida de uma mulher virgem tendo se tornado, em adulto, um pregador famoso na Galiléia. Jesus, portanto, sofrera e morrera na cruz tal como qualquer outro humano que fosse crucificado.



Texto (excertos)

Actos de João 
[De Mileto a Éfeso] 
18 João viaja, com um grupo, de Mileto para Éfeso e ouve uma voz dos céus que lhe diz que ele iria "dar glória ao Senhor em Éfeso".
19 Lycomedes, o pretor dos efésios, aproxima-se dos viajantes, caindo aos pés de João, dizendo:
 - "Teu nome é João? O Deus que tu pregaste te enviou para bem da minha mulher, Cleópatra, que tem paralisia incurável, desde há sete dias. Glorifica o teu Deus, curando-a e mostrando compaixão por nós.... Fui avisado que virias em salvação da minha mulher que, agora, não é nada senão o seu fôlego."
20 Quando Lycomedes entrou com João na casa onde estava sua mulher, agarrou-se aos pés de João e lamentou-se:
 - "Senhor, vê o desvanecimento da beleza, da jovem, da prestigiosa flor da minha pobre esposa Cleópatra; ...".
21 E, com muito mais palavras, aproximando-se do leito de Cleópatra, Lycomedes lamentou a sua esposa, mas João o afastou e disse:
 - "Pára com estas lamentações[...]. Não desobedeças ao que te apareceu pois sabes que receberás novamente a tua consorte. Permanece, portanto, connosco, reza ao Deus que viste, manifestando-se em sonhos. O que é, então, Lycomedes? Desperta tu também! Rejeita o sono pesado de ti: suplica ao Senhor, suplica-o por tua mulher, e ele a levantará."
Mas, para surpresa de João, Lycomedes caiu ao chão inanimado.
João, portanto, disse em lágrimas:
 - "O que é isto que aconteceu? Parece que fui traído pela voz do céu que me trouxe aqui! Que dirá esta multidão de cidadãos sobre o que sucedeu agora com Lycomedes? O homem está sem fôlego, e sei bem que não me deixarão sair vivo da casa. Por que te demoras, Senhor? Por que não cumpres a tua boa promessa? ... Levanta estes dois mortos cuja morte está contra mim."
22 E, equanto João ainda clamava, toda a cidade dos efésios correu para a casa de Lycomedes, ouvindo que ele estava morto. E João, vendo a grande multidão que havia chegado, disse ao Senhor:
 - "Agora é o tempo de reforçar a confiança em ti, ó Cristo; Agora é o tempo para nós, que estamos doentes, termos a tua ajuda, ó médico que curas livremente; Guarda-me do escárnio, entrando aqui. Peço-te, ó Jesus, ... pois tu disseste, ó Cristo, 'Pede, e te será dado'. ..."
23 E, aproximando-se de Cleópatra, tocou-lhe no rosto e disse mais umas palavras. E logo Cléopatra clamou com grande voz:
 - "Levanto-me, Senhor, salva tua serva!"
Agora, quando ela surgiu após sete dias, a cidade de Éfeso se moveu surpreendida. E Cleópatra perguntou a respeito de seu marido Lycomedes, mas João lhe disse:
 - "Cleópatra, se tu mantiveres a tua alma firme, tu terás imediatamente Lycomedes, teu marido, de volta... Vem, pois, comigo ao teu outro quarto, e tu o verás, um cadáver de verdade, mas ressuscitado pelo poder do meu Deus."
24 E Cleópatra indo com João para o seu quarto e, vendo Lycomedes morto por causa dela, ficou muda, rangeu os dentes, mordeu a língua e fechou os olhos em lágrimas. A sua calma chamou a atenção do apóstolo. João teve compaixão de Cleópatra quando viu que ela não se enfurecia nem estava fora de si, e invocou Jesus numa oração.
E o apóstolo foi para o sofá onde estava Lycomedes e, tomando a mão de Cleópatra, disse:
 - "Cleópatra [...] diz ao teu marido para se levantar e glorifica o Nome de Deus, pois ele devolve os mortos aos mortos."
E ela foi ter com seu marido e falou-lhe em conformidade, e imediatamente o levantou. E, levantando-se, ele prostrou-se imediatamente no chão beijando os pés de João.
Mas João o levantou, dizendo:
 - "Ó homem, não beijes os meus pés, mas os pés de Deus, pelo poder de quem fostes ambos ressuscitados."
25 Lycomedes e Cleópatra insistem para que João e os seus companeiros permaneçam com eles.
E Cleobius com Aristodemus e Damonicus, tocados na alma, e disseram a João: "Permaneçamos com eles." Então ele continuou ali com os companheiros.
26 Reuniram-se, pois, grandes multidões, por causa de João. E, enquanto João discursava aos que estavam ali, Lycomedes chamou um amigo que era um pintor habilidoso, pedindo-lhe que pintasse o retrato de João.
27 O pintor acabou o quadro e entregou-o. E Lycomedes pendurou-o no seu próprio quarto, com uma coroa de flores. Mais tarde, João, quando o percebeu, disse-lhe: "Meu amado filho, o que é que tu sempre fazes a sós no teu quarto quando vens do banho? Não oro contigo e com os outros irmãos? Ou há algo que nos escondes?"
E João entrou no quarto de Lycomedes e viu o retrato de um ancião decorado com uma coroa de flores, lamparinas e altares colocados diante dele. E chamou-o e disse: "Lycomedes, que significa este retrato? É algum dos teus deuses? Pelo que vejo tu ainda vives de modo pagão".
E Lycomedes respondeu-lhe: "O meu único Deus é aquele que me ressuscitou da morte com a minha mulher; mas se, junto a esse Deus, é justo que os homens que nos beneficiaram sejam chamados deuses; Tenho, pintado naquele retrato, aquele que reverencio como meu bom guia."
28 E João, que nunca tinha visto o seu próprio rosto, disse-lhe: "Por acaso troças de mim, filho? Sou assim? Como podes me provar que o retrato é o meu?" E Lycomedes trouxe-lhe um espelho. E, vendo-se no espelho e olhando atentamente para o retrato, disse: "Cristo! O retrato é como eu; mas não como eu, filho, mas como a minha imagem carnal; Pois se este pintor, que imitou o meu rosto, desejou desenhar-me num retrato, perdeu algo; As cores, os materiais, a posição das formas, a velhice, a juventude são coisas que são vistas com o olho."
29 "Mas torna-te para mim um bom pintor, Lycomedes. ...[referência a pintura metafórica]".
[...] 
30 E ordenou a Verus, o irmão que o serviu, que ajuntasse as mulheres idosas de Éfeso, e preparou, ele e Cleópatra e Lycomedes, todas as coisas para cuidar delas. Verus, então, veio a João, dizendo:
 - "Das mulheres idosas que estão aqui com mais de sessenta anos eu encontrei apenas quatro sã no corpo, e do resto [...] algumas paralizadas e outras doentes."
E quando ouviu isso, João ficou em silêncio por um longo tempo, e esfregou o rosto e orou "[...]"
31 Ora, quando toda a multidão se reuniu com Lycomedes, este dispersou-os em nome de João, dizendo:
 - "Amanhã, venham ao teatro, todos quantos quiserem ver o poder de Deus".
E a multidão, no dia seguinte, enquanto ainda estava escuro, veio ao teatro - também o procônsul ouviu-o e enviou um seu delegado com todo o povo. E um certo pretor, Andromeus, que era príncipe dos efésios naquele tempo, questionou sobre as coisas impossíveis e incríveis que João prometeu:
 - "Mas se ele diz que é capaz de fazer as coisas que eu ouvi, deixe-o entrar no teatro público, aberto, e que venha nu, sem nada nas mãos, sem dizer o nome mágico que ouvi."
32 João, sendo movido por estas palavras, ordenou que as mulheres idosas fossem levadas para o teatro. E, quando todas foram trazidas para o meio, algumas delas sobre camas e outras deitadas em sono profundo, e toda a cidade tinha corrido junta, e um grande silêncio foi João abriu a boca e começou a dizer:
33  - "Vós, homens de Éfeso, aprendam primeiro de tudo o que estou a fazer na vossa cidade, ou que grande confiança tenho para convosco, para que se manifeste a esta assembleia geral e a todos vós ..."
37 E, havendo dito isto, João, pelo poder de Deus, curou todas as doenças. 
[...] 
Ora, os irmãos de Mileto disseram a João:
 - "Permanecemos já há muito tempo em Éfeso. Se te parecer bem, vamos também a Esmirna pois já ouvimos que as obras poderosas de Deus também a alcançaram".
Andrónicus disse-lhes:
 - "Quando o mestre quiser, vamos".
Mas João disse:
 - "Vamos primeiro ao templo de Artemisa, porque também ali, se nos mostrarmos, novos servos do Senhor serão achados."
38 Dois dias depois era o aniversário do templo dos ídolos. João, pois, quando todos se vestiram de branco, vestiu-se de vestes negras e subiu ao templo. E eles o tomaram e tentaram matá-lo. João, porém, disse:
 - "Vós sois loucos para se virarem contra mim, um servo do único Deus."
E, levantando-o sobre um alto pedestal, disse-lhes:
39 - "Vós correis perigo, homens de Éfeso, [...]. Pois agora é tempo: ou vos converteis ao meu Deus, ou eu mesmo morro pela vossa deusa. Orarei na vossa presença e suplicarei ao meu Deus que vos seja dada misericórdia."
41 E, tendo assim dito, orou: "[... oração contra a idolatria ...]"
42 E como João falou estas coisas, imediatamente o altar de Ártemis foi dividido em muitos pedaços, e todas as coisas dedicadas no templo cairam, e foi rasgado em pedaços, e também mais de sete das imagens dos deuses. E a metade do templo caiu, de modo que o sacerdote foi morto pela queda do tecto. A multidão de Éfeso clamava:
 - "Único é o Deus de João; único é o Deus que tem piedade de nós, pois tu és um Deus; agora nos voltarmos para ti, contemplando as tuas maravilhas! Tem piedade de nós, ó Deus, segundo a tua vontade, e salva-nos do nosso grande erro!".
E alguns deles, deitados sobre os seus rostos, suplicaram, e alguns se ajoelharam e rogaram, e alguns rasgaram suas roupas e choraram, e outros tentaram escapar.
43 Mas João estendeu as mãos e, levantando-se em sua alma, disse ao Senhor:
 - "Glória a ti, meu Jesus, o único Deus da verdade, para que ganhes os teus servos por diversos meios".
E, tendo dito isto, disse ao povo:
 - "Levantai-vos do chão, homens de Éfeso, e orai ao meu Deus, e reconhece o poder invisível que vem à manifestação, e as obras maravilhosas que são feitas diante dos vossos olhos. Artemis deveria ter-se socorrido: seu servo deveria ter sido ajudado por ela e não ter morrido.[...]"
44 Mas o povo, levantando-se do chão, apressadamente derrubou o restante do templo do ídolo, clamando preces ao "Deus de João". E, quando João desceu do templo, muita gente o tomou, pedindo-lhe ajuda e rendendo-se a ele.
45 E João disse-lhes que ficaria em Éfeso.
46 João, pois, prosseguiu com eles, recebendo-os na casa de Andromeus. E um dos que estavam reunidos colocou o cadáver do sacerdote de Artemisa diante da porta, porque era seu parente, e entrou depressa com os demais, sem dizer nada. [...] João ressuscitou o sacerdote.
47 E [...]. O sacerdote imediatamente acreditou no Senhor Jesus e depois disso se apegou a João. 
[...] 
48 No dia seguinte, João, tendo sonhado que deveria ir para fora dos portões da cidade, levantou-se cedo e partiu para o caminho, juntamente com os irmãos.
E um certo jovem, ao ser advertido por seu pai para não tomar para si a esposa de um colega, irou-se com o seu pai. Este jovem não suportou a admoestação do seu pai e, assim, o pontapeou e o deixou morto. [...]
49 O jovem, vendo a violência da morte, e esperando ser detido, tirou a foice que estava no seu cinto e começou a correr para a sua casa. E João encontrou-se com ele e disse:
 - "Pára, ó diabo sem vergonha, e diz-me para onde vais com essa foice que tem sede de sangue".
E o jovem, perturbado, lançou o ferro no chão e disse-lhe:
 - "Fiz um acto miserável e bárbaro, eu sei, e assim decidi fazer um mal ainda pior e mais cruel, e, no fim, até mesmo morrer. Pois meu pai sempre instou para que eu vivesse em sobriedade, sem adultério e castamente, e eu não poderia suportá-lo na sua reprovação, e eu o matei. E quando vi o que estava feito, apressei-me para a mulher por quem me tornei o assassino de meu pai, com a intenção de matá-la e ao seu marido, e matar-me no fim. Pois não podia suportar sofrer o julgamento da morte."
50 Disse-lhe, pois, João:
 - "... Mostra-me onde está o teu pai. E, se eu o ressuscitar, abster-te-eis depois da mulher que se tornou um laço para ti?"
E o jovem disse:
 - "Se tu levantares o meu pai, abster-me-ei dela".
51 Quando chegaram ao lugar onde o velho estava morto, muitos transeuntes estavam ali perto. E disse João ao jovem:
 - "Miserável, não poupaste a velhice de teu pai?"
E ele, chorando e arrancando os seus cabelos, disse que estava arrependido. E João rogou ao Senhor:
 - "Tu me mostraste que eu devia partir para este lugar, tu sabias que isso aconteceria, de quem nada pode ser escondido das coisas feitas na vida, [...] agora dá vida a este velho, pois vês que o seu assassino se tornou seu próprio juiz [...]".
52 E, com estas palavras, aproximou-se do ancião e disse:
 - "[...] levanta-te, pois, e dá glória a Deus".
E o ancião, levantando-se, disse:
 - "Fui libertado de uma vida terrível e tive de suportar os muitos e terríveis insultos de meu filho e a sua falta de afecto. Para que fim me chamaste de volta, ó homem do Deus vivo?"
E João respondeu-lhe:
 - "Se tu fosses levantado apenas para o mesmo fim, era melhor para ti continuar morto. Mas levanta-te para coisas melhores".
E tomou-o e levou-o para a cidade, pregando-lhe a graça de Deus, de modo que, antes de entrar nos portões, o velho teve fé.
53 Mas o jovem, vendo o inesperado levantamento de seu pai e a sua própria salvação, tomou uma foice e se mutilou [cortou o seu pénis?], e correu para a casa em que teve a sua adúltera, e a censurou: "Por tua causa, eu me tornei o assassino de meu pai e de você dois e de mim. Tens igualmente culpa. Mas Deus teve misericórdia de mim, para que eu conheça o seu poder."
54 E voltou e disse a João, na presença dos irmãos, o que tinha feito. Mas João lhe disse:
 - "Aquele que te pôs no teu coração, jovem, para matares teu pai e tornares-te adúltero da mulher de outro homem, o mesmo também te fez pensar que era uma acção correcta mutilares o teu membro. Mas tu deverias ter acabado, não com a parte física do pecado, mas o pensamento que tornou esse membro nocivo: porque não foi isso que te prejudicou, mas as fontes invisíveis pelas quais toda emoção vergonhosa é agitada e vem à luz. Arrepende-te, pois, meu filho, desta falha, e tendo aprendido as ciladas de Satanás, terás Deus para te ajudar em todas as necessidades da tua alma". E o jovem arrependeu-se[...].
55 Quando, pois, estas coisas tinham sido feitas por ele na cidade de Éfeso, enviaram-lhe uma mensagem de Esmirna, dizendo que João não deveria permanecer apenas em Éfeso mas deveria ir a outras cidades e, em particular, ir a Esmirna.
[...] 
[De Laodicca a Éfeso] 
58 [João diz que tem de voltar a Éfeso]
59 E tendo assim dito, e despedindo-se deles, e deixando muito dinheiro com os irmãos para distribuição, ele saiu para Éfeso, enquanto todos os irmãos se lamentavam e gemiam. E lá o acompanharam, de Éfeso, Andrónicus e Drusiana e Lycomedes e Cleobius e suas famílias. E lá o seguiu Aristóbula também, que ouvira dizer que seu marido Tertullus morrera no caminho, e Aristipo com Xenofonte, e a prostituta que era casta, e muitos outros, a quem exortou em todo tempo a se unirem ao Senhor, e eles Não mais se separaria dele.
60 No primeiro dia chegámos a uma pousada deserta e, quando vimos que não havia uma cama para o João, aconteceu algo engraçado. Havia uma cama ali, mas sem cobertores, onde espalhamos os mantos que estávamos usando, e rogámos para que ele se deitasse e descansasse, enquanto nós dormíamos no chão. Mas, quando se deitou, ele incomodou-se com os percevejos da cama e, irritando-se ainda mais a meio da noite, nós ouvimos João dizer:
 - "Eu digo-vos, bichos, comportai-vos, todos vós, e deixai o vosso ninho por esta noite, e ficai quietos num só lugar, e mantenham-vos afastados dos servos de Deus".
< br /> E, enquanto nós rimos, e continuámos a conversar por algum tempo, João adormeceu. Nós, falando baixinho, não o perturbámos.
61 Mas quando o dia amanheceu, eu me levantei primeiro, e comigo Verus e Andrónicus e vimos, à porta da casa em que tínhamos ficado, um grande número de insectos ali reunidos e, enquanto nos espantámos com o cenário, João continuou dormindo. E quando despertou, declarámos-lhe o que vimos. E ele se sentou na cama e olhou para os bichos e disse: "Como vocês portaram-se bem e escutaram a minha repreensão, podem regressar ao vosso lugar". E quando ele disse isso e levantou-se da cama, os insectos correndo da porta precipitaram-se para a cama e subiram pelas suas pernas e desapareceram nas juntas. E João disse: "Estas criaturas ouviram a voz de um homem e ficaram caladas e obedeceram, mas nós que ouvimos a voz e os mandamentos de Deus desobedecemos e somos ligeiros, mas por quanto tempo?" 
62 Depois destas coisas viemos a Éfeso; e ali os irmãos, que haviam sabido durante muito tempo que João estava vindo, correram juntos [...] e muitos foram curados tocando as suas roupas.
63 E considerando que havia um grande amor e alegria inigualável entre os irmãos, um certo indivíduo, mensageiro de Satanás, enamorou-se de Drusiana, embora soubesse que ela era esposa de Andrónicus. A esse indivíduo muitos advertiram: "Não é possível para ti obter essa mulher, apesar de ela ter-se afastado do seu marido por causa da devoção. Tu ignoras que Andrónicus encerrou-a num túmulo, dizendo-lhe: 'ou és a esposa que eu tinha antes, ou morres'. E ela preferia morrer do que ficar em impureza. Se, então, ela não consentiu, por devoção, deitar-se com o seu marido, mas até mesmo persuadiu-o a ser da mesma fé que ela, achas que ela consentirá ser seduzida por ti? Afasta-te desta loucura que não tem descanso em ti: abandona esse acto que não podes realizar."
64 Os seus amigos e familiares, dizendo-lhe estas coisas, não o convenceram pois ele a cortejou descaradamente com mensagens; e ela devolvia insultos a estas mensagens e considerava o cortejo como desgraça, passou a viver sua vida em melancolia. E, após dois dias, em que Drusiana ficou na cama com depressão e com febre, ela disse que estava para "partir da vida". E na presença de João, que nada sabia de tal assunto, Drusiana partiu da vida não totalmente feliz, sim, até perturbada por causa do dano espiritual causado pelo homem.
65 Mas Andrónicus, entristecido secretamente, lamentou-se em sua alma e chorou abertamente, de modo que João o via com freqüência e lhe disse: "Com uma melhor esperança, Drusiana saíu desta vida iníqua". E Andrónicus respondeu-lhe:
 - "Sim, estou convencido disto, ó João, e não duvido em absoluto em relação à confiança no meu Deus; mas isso mesmo eu mantenho firme, que ela partiu da vida pura."
66 E quando ela foi levada, João tomou conta de Andrónicus, e agora que ele sabia a causa, ele chorou mais do que Andrónicus. E ele manteve silêncio, considerando a provocação do adversário, procurando um espaço sossegado. Então, estando os irmãos reunidos ali para ouvir a palavra para aquela que havia partido, começou a dizer:
67 - "[...longo discurso...]"
[...]
70 E, enquanto João falava ainda mais aos irmãos que desprezassem as coisas temporais em favor das coisas eternas, aquele que estava apaixonado por Drusiana, inflamado por uma terrível luxúria e possessão de Satanás de muitas formas, subornou o mordomo de Andrónicus, que era um amante do dinheiro, com uma grande soma: e ele abriu o túmulo e deu-lhe oportunidade de fazer a coisa proibida sobre o corpo morto dela. Não tendo conseguido com ela quando estava viva, ele quis ser importuno para o seu corpo morto, dizendo: "Se tu não querias ter comigo enquanto vivias, ultrajarei teu cadáver, agora que estás morta". Com este desígnio, e tendo conseguido a colaboração do abominável mordomo, pois os dois foram ao sepulcro, abriram a porta, tiraram as roupas do cadáver, dizendo:
 - "De que te serviu, pobre Drusiana? Não poderias ter feito isso na vida, o que porventura não te teria afligido, se o fizesses de boa vontade?"
71 E enquanto estes homens estavam falando assim, um espetáculo estranho foi visto, com eles merecendo o sofrimento por tais ações. Uma serpente apareceu de algum local e matou o mordomo com uma mordida. Não atacou o jovem mas enrolou-se em torno dos seus pés, sibilando terrivelmente, e quando ele caiu a serpente sentou-se sobre ele.
72 No dia seguinte veio João, acompanhado de Andrónicus e dos irmãos, ao sepulcro ao amanhecer, sendo agora o terceiro dia da morte de Drusiana, para que ali pudéssemos repartir o pão [eucaristia]. E, antes de partirem, procuraram as chaves do túmulo mas não as encontravam. João disse a Andrónicus:
 - "Pois se as chaves se perderam, Drusiana não estará no sepulcro. Mas, vamos, e as portas se abrirão por si mesmas, pois o Senhor nos ajudará."
73 E quando estávamos no lugar, por ordem do mestre, as portas se abriram e vimos, por volta do túmulo de Drusiana, um belo jovem, sorrindo. João, ao vê-lo, clamou e disse:
 - "Juntas-te a nós, Belo? Porquê?"
E ouvimos uma voz que lhe dizia:
 - "Por causa de Drusiana, a quem tu vais levantar, pois eu vinha ao encontro dela. E por causa do que morreu ao lado do seu túmulo".
E quando o belo jovem disse isto a João, subiu aos céus à vista de todos nós. E João, virando-se para o outro lado do sepulcro, viu um jovem - era Calímacus, um dos príncipes dos efésios - e uma enorme serpente dormindo sobre ele, e o mordomo de Andrónicus, que se chamava Fortunatus, morto. E ao ver os dois, João ficou perplexo, dizendo aos irmãos:
 - "Que significa tal visão? Ou por que o Senhor, que nunca me negligenciou, não me declarou o que foi feito aqui?"
74 Andrónicus, vendo esses cadáveres, correu para o túmulo de Drusiana, e vendo-a deitada, disse a João:
 - "Eu entendo o que aconteceu, bendito servo de Deus, João. Este Calímacus estava apaixonado pela minha esposa. E porque ele nunca a conquistou, embora o tenha tentado muitas vezes, subornou este mordomo maldito com uma grande soma, talvez projectando, como agora podemos ver, conseguir por seus meios a tragédia de sua conspiração, porque de facto Calímacus confessou isto a muitos, dizendo: 'Se ela não consentir em mim quando viva, ela será ultrajada quando morta'. E pode ser, mestre, que o Belo sabia e evitou que o corpo dela fosse insultado, e, portanto, fez estes dois morrerem enquanto tentavam. E pode ser que a voz que te disse: 'Levanta Drusiana', previu isso? Porque ela saiu desta vida em tristeza de espírito. Eu creio que este é um homem que se desviou. Poderei pedir para o ressuscitar, apesar de, como o outro, ser indigno de salvação. Mas uma só coisa te peço: levanta primeiro Callimaco, e ele nos confessará o que aconteceu."
75 E João, olhando para o corpo, disse ao animal venenoso:
 - "Retira-te daquele que será servo de Jesus Cristo".
E orou para que o jovem fosse ressuscitado. E logo o jovem levantou-se, e durante uma hora ficou em silêncio.
76 Mas, quando ele recuperou os sentidos, João perguntou-lhe porque entrara no sepulcro e ele respondeu, como Andrónicus lhe dissera, que se apaixonara por Drusiana. João inquiriu-lhe o que seria se ele tivesse cumprido sua intenção de profanar um corpo cheio de santidade. E ele respondeu-lhe:
 - "Como poderia eu conseguir isto quando esta besta temível golpeou Fortunatus à minha frente e, justamente, pois ele encorajou o meu delírio, quando eu já estava curado dessa loucura irracional e horrível. Mas parou-me com aquela situação em que me viste antes de me levantares. E outra coisa ainda mais maravilhosa eu vou te dizer, que eu ainda estava muito perto de matar e matar-me. Quando a minha alma estava agitada com loucura e a doença incontrolável me perturbava, eu arranquei as roupas da defunta. E vi um belo jovem cobrindo-a com o seu manto, e dos seus olhos saíram faíscas de luz em direcção aos olhos dela. E ele me proferiu: 'Callimaco, morre para que vivas'. Ora, quem era ele, não sei, servo de Deus. Mas, agora que tu aqui apareceste, eu reconheço que ele seria um anjo de Deus. [...] Por isso, rogo-te ajuda, [...], eu que serei fiel, temente a Deus, conhecendo a verdade, a qual te suplico que me seja mostrada por ti."
77 E João, cheio de grande alegria e percebendo todo o espectáculo da salvação do homem, rogou a Deus, em oração, para que o homem fosse salvo
78 E, havendo feito a súplica, João tomou Callimaco e o saudou, dizendo:
 - "Glória ao nosso Deus, meu filho, que teve misericórdia de ti, e me fez digno de glorificar o seu poder, para que te afastes da tua abominável loucura e embriaguez, e te chamou para o seu descanso e renovação da vida."
79 Mas Andrónicus, vendo Calímacus ressuscitado, suplicou a João, com os irmãos, que também levantassem Drusiana, dizendo:
 - "João, deixa que Drusiana se levante e viva a vida da qual ela desistiu por causa de Calímacus, quando ela pensou que se tinha tornado um tropeço para ele. Quando o Senhor quiser, pode tomá-la novamente para si mesmo".
E João, sem demora, foi até o seu sepulcro, e pegou-lhe na mão, e disse umas palavras.
80 E depois destas palavras João disse:
 - "Drusiana, levanta-te".
E ela se levantou e saiu do sepulcro e ficou perplexa mas, quando soube tudo o que sucedera, alegrou-se com Calímacus e glorificaram juntos.
81 E quando ela se vestiu, virou-se e viu Fortunatus deitado, e disse a João:
 - "Pai, que este homem também se levante, ainda que se tenha tornado meu traidor".
Mas Calímacus, quando a ouviu dizer isso, disse:
 - "Não, Drusiana, pois a voz que ouvi não pensou nele, mas apenas a respeito de ti, e eu vi e acreditei, pois se ele tivesse sido bom, Deus teria tido misericórdia dele também e o teria ressuscitado por meio de João. Ele julga digno de morrer quem não é digno de ressuscitar".
E disse-lhe João:
 - "Não aprendemos, filho meu, a fazer o mal pelo mal, porque Deus, embora tenhamos feito muito mal e nenhum bem para com Ele, não nos deu retribuição, mas oportunidade de arrependimento, [...], como ele a ti, também, meu filho Calímacus, perdoando o teu antigo mal te fez servo, dando-te fé na sua misericórdia. Portanto, se não queres que eu levante Fortunatus, Drusiana o fará."
82 E ela, dirindo-se para o corpo de Fortunatus, disse:
 - "Jesus Cristo, Deus dos séculos, Deus da verdade, que me concedes ver maravilhas e sinais, [...] Que eu tenho amado e afeiçoado: peço-te, ó Cristo, não recusas a tua Drusiana que te pede para levantar Fortunatus, embora ele tenha ensaiado ser meu traidor."
83 E, tomando a mão do morto, disse:
 - "Levanta-te, Fortunatus, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".
E Fortunatus levantou-se, e quando viu João no sepulcro, e Andrónicus, e Drusiana ressuscitada, e Calímacus como crente, e o resto dos irmãos glorificando a Deus, disse:
 - "Ó, que poderes estes inteligentes homens obtiveram! Eu não queria ser levantado, pois prefiro morrer, para não vê-los".
E com estas palavras fugiu e saiu do sepulcro.
84 E João, quando percebeu que Fortunatus não tinha mudado de carácter, disse:
 - "Ó natureza que não é mudada para melhor! Ó fonte da alma que permanece em impureza! [...] Que Jesus Cristo, nosso Deus, te faça perecer bem como a todos com o teu carácter".
85 E, havendo dito isto, orou João, e tomou o pão e o partiu no sepulcro e orou.
86 E tendo assim orado e dado glória a Deus, saiu do sepulcro depois de dar a todos os irmãos da eucaristia do Senhor. E quando chegou à casa de Andrónicus, disse:
 - "Irmãos, um espírito dentro de mim adivinhou que Fortunatus está prestes a morrer de envenenamento do sangue da mordida da serpente, mas que alguém vá e certifique-se se realmente sucederá".
E um dos jovens correu e o encontrou morto e veio e disse a João que ele estava morto há três horas. E João disse:
 - "Recebe o teu filho, Satanás". 
87 Havia algo que Drusiana tinha dito, que gerou perplexidade aos que estavam presentes. Drusiana tinha dito: "O Senhor apareceu-me no sepulcro na forma de João e na forma de um jovem". Porquanto, como estavam confusos e como, de certo modo, ainda não estavam firmes na fé, João disse: 
88 "Homens e irmãos, não sofreis nada estranho ou incrível no que diz respeito à vossa percepção, porquanto nós, a quem Ele escolheu como apóstolos, fomos julgados de muitas maneiras. Eu, de facto, não sou capaz de descrever as coisas que tanto vi como ouvi. Agora é necessário que eu vos explique: 
Pois, quando ele escolheu Pedro e André, que eram irmãos, veio a mim e a Tiago, meu irmão, dizendo: 'Preciso de vós, venham a mim'. E meu irmão ouvindo isso, disse:
 - 'João, por que essa criança à beira-mar nos chamou?'
E eu disse:
 - 'Que criança?'
E ele me disse novamente:
 - 'Aquela que nos convida'.
E eu respondi:
 - 'Por causa das longas horas da noite que ficámos no mar, não estás a ver bem, meu irmão Tiago. Não vês o homem que está ali, bonito, justo e de rosto alegre?'
Mas ele me disse:
 - 'A ele não vejo, irmão, mas vamos sair e veremos o que ele trará'. 
89 E assim, quando levámos o navio à terra, vimos que Ele nos ajudava a atracar o barco. E quando saímos daquele lugar, pensando em segui-lo, novamente eu vi-o como um homem calvo, com barba espessa e comprida, mas Tiago viu-o como um jovem de barba recente. Ficámos, portanto, perplexos, ambos, quanto ao que aquilo que vimos deveria significar. E depois disso, enquanto o seguíamos, nós dois ficámos a pouco e pouco ainda mais confusos quando considerámos o assunto. No entanto, a mim aconteceram coisas mais maravilhosas: quando tentava mirá-lo em privado, nunca vi seus olhos piscarem, mas permanentemente abertos; uma vezes ele me apareceu como um homem pequeno e desagradável, outras vezes como alguém tão alto que alcançava o céu; quando eu me sentava à mesa, eu me deitava sobre o Seu peito - umas vezes sentia seu peito como suave e terno, outras vezes duro como as pedras. De modo que eu pensave: 'Como é possível?' [...]. 
90 E em outra ocasião ele levou-me consigo e Tiago e Pedro, até o monte onde costumava orar, e vimos nele uma luz indescritível para um mortal. Novamente nos chamou aos três para o monte. E nós fomos outra vez, e O vimos a uma distância orando. Eu, portanto, porque ele me amou, aproximei-me Dele suavemente, como se ele não pudesse me ver, e fiquei olhando-O de trás: e vi que ele não estava vestindo roupas, mas estava nu, não como um homem, porque seus pés eram mais brancos do que a neve, de modo que a terra estava iluminada pelos seus pés, e a sua cabeça tocou o céu. De modo que eu tive medo e clamei; e ele, virando-se, apareceu como um homem pequeno, e segurou minha barba e puxou-a e disse-me:
 - 'João, não sejas céptico, mas crente, e não curioso'.
Disse-lhe eu:
 - 'Mas que fiz eu, Senhor?'
E eu vos digo, irmãos, que sofri uma grande dor onde ele agarrou a minha barba por trinta dias, [...].
91 Mas Pedro e Tiago se iraram porque eu falei com o Senhor, e acenaram para que eu viesse a eles e deixasse o Senhor em paz. E eu fui, e ambos me disseram:
 - 'Quem era aquele que estava falando com o Senhor sobre o cume do monte? Pois ouvimos os dois falarem'.
E eu, tendo em vista a sua grande graça, e a sua unidade que tem muitos rostos, e a sua sabedoria que sem cessar nos olha, disse:
 - 'Aprendereis, se pedirdes dele.'
92 Uma vez mais, quando todos nós, seus discípulos, estávamos em Genesaret dormindo numa casa, eu, sozinho, me envolvi no meu manto, observei o que ele devia fazer. Primeiro ouvi ele dizer:
 - 'João, dorme!'
E eu, fingindo dormir, vi outro semelhante a ele [dormindo], a quem também o ouvi dizer ao meu Senhor:
 - 'Jesus, aqueles que tu escolheste, ainda não crêem em ti.'
E o meu Senhor lhe disse:
 - 'Tu dizes bem, porque são homens.' 
93 Outra glória também vos digo, irmãos. Por vezes, quando eu O tocava, sentia um corpo material e sólido, e outras vezes, parecia-me imaterial e como se Ele não existisse de modo nenhum. [...] Muitas vezes, quando eu caminhava com ele, nunca via as suas pegadas. [...].
94 Antes de ser levado pelos judeus sem lei, que também eram governados pela sua serpente sem lei, Ele reuniu-nos todos e disse:
 - 'Antes que eu seja entregue a eles, cantemos um hino ao Pai'
E assim sai para o que está diante de nós.
Ele nos ordenou, pois, que formássemos um círculo, segurando as mãos uns dos outros, e ele próprio, em pé no meio [...]. Começou então a cantar um hino:
 - 'Glória a ti, Pai [...]'
95 Por isso, enquanto damos graças, eu digo:
 - 'Eu seria salvo, e eu salvaria. Amen.
    Eu seria solto, e eu iria solto. Amen.
     [...]
    Glória a ti, Pai. Amen. 
97 Assim, tendo dançado connosco, o Senhor saiu. E nós, como homens desviados ou atordoados com o sono, fugimos dessa maneira e daquilo. Eu, então, quando o vi sofrer, nem mesmo segui o seu sofrimento, mas fugi para o Monte das Oliveiras, chorando pelo que tinha acontecido. E quando ele foi crucificado na sexta-feira, à sexta hora do dia, a escuridão veio sobre toda a terra. E o meu Senhor, que estava no meio da caverna e a iluminava, dizendo:
 - 'João, a multidão lá em baixo, em Jerusalém, pensa que eu estou a ser crucificado e perfurado com lanças e juncos, e que são-me dados fel e vinagre para beber. Mas a ti falo, e o que eu digo, ouve. Coloco-te na tua mente subir a este monte, para que possas ouvir as coisas que um discípulo deve aprender do seu mestre e um homem do seu Deus.' 
98 E assim falando, mostrou-me uma cruz de luz fixa, e sobre a cruz uma grande multidão sem forma; e nela havia uma forma e uma semelhança. E eu vi o próprio Senhor acima da cruz, não tendo qualquer forma, mas apenas uma voz, e uma voz não tão familiar para nós, mas doce e bondosa e verdadeiramente de Deus, dizendo-me: 
 - 'João, é necessário que se ouça estas coisas de mim. Às vezes Jesus, às vezes Cristo, às vezes Porta, às vezes O Caminho, às vezes Pão, Semente, Ressurreição, Filho, Pai, Espírito, Vida, Verdade, Fé, Graça. E por estes nomes é chamado como para os homens: mas o que é na verdade, tal como concebido em si e como falado connosco, é a marcação de todas as coisas [...]
101 Nada, pois, das coisas que disserem de mim, eu sofri. Sim, esse sofrimento também que eu mostrei a ti e ao resto na dança, eu o chamarei de mistério. [...] Tu ouvis que eu sofri, mas não sofri; Que eu não sofri, mas sofri; Que fui traspassado, mas não fui ferido; Que fui enforcado, mas eu não fui enforcado; Que sangrei, mas não sangrei.' 
[...] 
102 Quando ele me falou estas coisas, e outras que eu não sei como dizer, ele foi levado, e ninguém da multidão o viu. E quando desci, ri de todos com desprezo, porquanto me tinha dito as coisas que disseram a seu respeito; Mas no fundo eu sabia que o Senhor inventou todas estas coisas simbolicamente com vista a um perdão para com os homens, para sua conversão e salvação.
[...] 
105 E, havendo entregado estas coisas aos irmãos, partiu João com Andrónicus para andar. E Drusiana também seguiu distante com todos os irmãos, para que eles pudessem contemplar os actos que foram feitos por ele, e ouvir o seu discurso em todos os momentos no Senhor.

[...]
106 João continuou com os irmãos, regozijando-se no Senhor. No dia seguinte, sendo o dia do Senhor, e todos os irmãos estando reunidos, ele começou a dizer-lhes: [...]
109 E ele pediu pão, deu graças assim: [...]
110 Então dividiu o pão e deu a todos nós, orando sobre cada um dos irmãos para que fosse digno da graça do Senhor e da Santíssima Eucaristia. [...]
111 Depois disse a Verus: Toma contigo dois homens, com cestos e pás, e segue-me. E Verus sem demora fez como ordenado. O bem-aventurado João, pois, saiu da casa para fora das portões, tendo se afastado. E quando chegou ao sepulcro de um certo irmão nosso, disse aos jovens: Cavem, meus filhos. E eles cavaram e ele insistia com eles ainda mais: 'Cavem mais fundo a fossa'. [...]. E, quando os jovens terminaram a fossa como ele desejava, ele atirou as suas vestes para o fundo da fossa [...] e orou.
[...]
115 e havendo-se em todas as partes, ele se levantou e disse: Tu estás comigo, Senhor Jesus Cristo: e deitou-se na fossa para onde tinha atirado suas vestes. E, havendo dito para nós: 'Paz seja convosco, irmãos', ele deixou o espírito em alegria.



Referências.
 - http://www.earlychristianwritings.com/text/actsjohn.html