domingo, 22 de setembro de 2013

Revelação - Apocalipse de João




Apocalipse

O último livro da Bíblia é o chamado Apocalipse de João, também designado de Revelação (gr. Apokalypsis). Por causa do conteúdo deste livro, hoje utiliza-se a palavra “apocalipse” para designar uma destruição relativa a “últimos dias” mas o significado original da palavra é simplesmente “visão” ou “revelação”. A palavra mais adequada para os assuntos relativos a “últimos dias” é escatologia (gr. eskatos, final).


O autor

O autor identifica-se pelo nome de João e propõe-se a descrever a revelação que lhe foi transmitida por Jesus enquanto se encontrava na ilha de Patmos.

Parece que a tradição da Igreja tomou uma direcção de modo a minimizar o número total de autores do Novo Testamento. Esta considera os seguintes nomes de personagens e autores como pertencendo todos ao mesmo homem:

João, filho de Zebedeu
Personagem dos evangelhos, apóstolo de Jesus
Evangelista anónimo
Autor do chamado Evangelho Segundo João
O idoso
Autor das cartas “joaninas”
João de Patmos
Autor de Apocalipse

Todos estes são identificados com o primeiro desta lista: João, filho de Zebedeu, irmão de Tiago, apóstolo de Jesus.


A audiência

O livro apresenta-se primeiro, nos capítulos 1 a 3, como uma carta destinada a sete congregações de sete cidades da Ásia Menor: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Todas estas localidades situam-se no território da actual Turquia. Nestes primeiros capítulos aparecem algumas mensagens particulares: por exemplo, aos de Éfeso e Pérgamo, o autor envia recomendações desfavoráveis aos “da seita de Nicolau” (quem seria este Nicolau?).

Entretanto o conteúdo evolui como um tratado teológico sobre as visões apocalípticas do Antigo Testamento.


O conteúdo

O conteúdo é altamente simbólico, em que grande parte dos significados perderam-se no tempo. No entanto, o conteúdo de Apocalipse tem alimentado a cultura apocalíptica (ou escatológica) dos últimos séculos, como por exemplo os seguintes temas populares:

Tema
Texto
Os 4 cavaleiros
Revelação 6:1-8
O número da “besta” (tradicionalmente, o Diabo) é 666
Revelação 13:18
Armagedon (heb. Har Meghid·dóhn, Monte do Megido)
Revelação 16:14-16


Os Cavaleiros do Apocalipse

O alucinado autor vê desfilar à sua frente cavalos montados por figuras com papéis bem definidos (Revelação 6:1-8):
  - um cavalo branco, montado por alguém com arco e coroa que saiu vitorioso;
  - um cavalo vermelho (cor de fogo), montado por alguém com uma espada com a missão de tirar a paz da terra e causar mortandade;
  - um cavalo preto, montado por alguém com uma balança em sua mão para, na escassez, racionar o trigo, a cevada, o azeite e o vinho;
  - um cavalo amarelo (descorado), montado por alguém chamado Morte, seguido pelo Hades como o poder de matar um quarto da terra, com guerra, fome, peste e feras.


O número da Besta

O autor de Apocalipse refere o número 666 como mais uma mensagem codificada (Revelação 13:18).
A explicação mais conhecida é que este número corresponde a "Nero" numa interpretação pela gematria judaica. Nero era o imperador quando começou a Guerra entre judeus e romanos (66 a 72 EC). Esta Guerra foi, de longe, a experiência mais traumática para os judeus desde sempre até ao século I.
O problema é que Nero morreu em 68 EC e no tempo em que Apocalipse de João (por volta de 98 EC) foi escrito já não representaria nenhuma ameaça aos judeus.


A Batalha do Armagedom

O autor refere uma batalha que iria ocorrer num local chamado Armagedom (Revelação 16:14-16).
A palavra "Armagedom" significa na linguagem coloquial dos dias de hoje uma destruição ou aniquilação total e final.
Ora, Armagedom significa literalmente Monte do Megido. Este local era conhecido na antiguidade por ser propício a confrontos militares, porque quem dominasse aquele ponto ganharia uma posição favorável para defender uma vasta área.
No Antigo Testamento existem referências a algumas batalhas que ocorreram no Monte Megido (Juízes 5; 1ºSamuel 31; 2ªCrónicas 12:3-4; 2ºReis 23:29).
A batalha mais antiga com registo histórico detalhado foi a Batalha do Megido entre o faraó Tutmose III e uma coligação rebelde de caananeus.


Os monstros míticos

Várias criaturas míticas aparecem nas visões que o narrador apresenta:
 - Um cordeiro com sete cornos e sete olhos (Revelação 5:6; 12:11; 13:8,11; 14:1,4)
 - Um grande dragão vermelho com sete cabeças e dez cornos (Revelação 12:3)
 - Um animal com forma de leopardo com sete cabeças e dez cornos  (Revelação 13:1,2)
 - Um animal com dois cornos como os de um cordeiro, mas que fala como o dragão (Revelação 13:11,17)


As doze tribos

O autor de Apocalipse redefine a lista das doze tribos de Israel segundo um critério não encontrado no Antigo Testamento.

Tribos segundo o Antigo Testamento
Tribos segundo Apocalipse 7:4-8
Filhos de Jacob
Tribos territoriais
Rubem
Rubem
Rubem
Simeão
Simeão
Simeão
Levi

Levi
Judá
Judá
Judá
Issacar
Issacar
Issacar
Zebulão
Zebulão
Zebulão

Naftali
Naftali
Naftali
Gade
Gade
Gade
Aser
Aser
Aser
José

José

Manassés
Manassés

Efraim

Benjamim
Benjamim
Benjamim

É patente a omissão da tribo de Dã e a inclusão de uma tribo de José (que, segundo Génesis, era o pai das tribos de Manassés e Efraim). A ordem pela qual as tribos foram enumeradas também não é a habitual, sendo diferente, por exemplo, da enumeração de Génesis 49:3-27. A ordenação dos filhos de Jacob, segundo Apocalipse 7:4-8, é a seguinte: Judá, Rubem, Gade, Aser, Naftali, Manassés, Simeão, Levi, Issacar, Zebulão, José, Benjamim.

É evidente, a avaliar por todo o conteúdo de Apocalipse, que o autor possuía um excelente conhecimento sobre o Antigo Testamento, por isso não se trata de um lapso. Esta redefinição das tribos só pode ter a ver com a transmissão de uma mensagem codificada. E a sua descodificação está fora do nosso alcance!


O Cristo

Uma característica reconhecível é que este livro é centrado no conceito do Cristo “Cordeiro” que se vislumbra também no Evangelho Segundo João. A designação “Cordeiro” ocorre 28 vezes em Apocalipse!

Neste aspecto o estilo é semelhante ao do Evangelho Segundo João e é provável que tenha sido escrito anteriormente pelo mesmo autor (ou um autor da mesma “escola”). Tal como em João, o autor escolhe títulos atribuídos a Yahveh (ou El-Shaddai) no Antigo Testamento e utiliza-os para qualificar Jesus.

Título
Atribuído a Yahveh (ou El-Shaddai), segundo o Antigo Testamento
Atribuído a Jesus, segundo Apocalipse e o Evangelho Segundo João
O “primeiro e o último” e “o alfa e o omega”
Isaías 44:6
Apocalipse 1:17, 18
Apocalipse 22:13, 16
Senhor dos Senhores
Deuteronómio 10:17
Apocalipse 17:14
O “que sonda os rins e coração”
Jeremias 17:10; 11:20
Apocalipse 2:1, 23
Criador
Génesis 1:1
Isaías 44:24
João 1:1-3
Pastor
Salmos 23:1
João 10:11
Rei dos Judeus
Isaías 33:22; 44:6
João 12:13-15; 19:21 (embora o título seja atribuido também nos outros evangelhos)



O livro, como outros do Novo Testamento, também não revela conhecimento do autor sobre Jesus Nazareno.




domingo, 15 de setembro de 2013

Outras Cartas Pseudo - Cartas de João



Três cartas atribuídas ao Apóstolo João

As três curtas cartas de autoria atribuida ao apóstolo João, filho de Zebedeu, não demonstram algum conhecimento sobre Jesus Nazareno. Estas cartas são tradicionalmente chamadas de “cartas joaninas”, embora em nenhuma delas o autor se identifique com o nome João.

Carta
Remetente
Destinatário
1 João
- (anónimo)
- (carta aberta?), chama “filhinhos” aos seus leitores
2 João
“o ancião” (gr. presybiteros)
“Senhora eleita”
3 João
“o ancião”
Gaio, “o amado”


1ª João e 2ª João

As duas primeiras cartas demonstram apenas um início da doutrina do Cristo homem:
1 João 4:2 Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; 
2 João 7 Porque já muitos enganadores saíram pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Tal é o enganador e o anticristo.

O autor revela preocupação com aqueles que não criam que Jesus Cristo tinha vindo como homem! Ou seja, existiam cristãos que não criam que Jesus veio à Terra - criam que Jesus era um espírito celestial que apenas se mostrou por revelação ou por aparições!

As duas primeiras “cartas joaninas” mostram que existia uma divisão entre aqueles que criam que Cristo já tinha vindo e os que não criam.

A doutrina do Cristo homem desenvolveu-se provavelmente no seguimento da decepção sobre a esperança depositada, por muito milhares de fiéis, na vinda do Cristo. Daí que se começou a divulgar que o Cristo já tinha vindo no passado - eventualmente sob a forma de um tal Jesus Nazareno mas que ninguém tinha reparado porque este Jesus era muito discreto. À medida que o tempo foi passando o Jesus Nazareno passou a ser descrito não como um homem discreto mas sim já rodeado de uma multidão de admiradores. No entanto, hoje ainda podemos ver vestígios de um Jesus discreto em Marcos.


3ª João

A Terceira Carta de João é demasiado curta e de tom pessoal (é dirigida a um fulano de nome Gaio) para se tecer qualquer comentário significativo sobre o seu conteúdo excepto que não menciona nem uma vez Jesus ou Cristo. Não podemos concluir se esta e as outras duas cartas foram originadas pelo mesmo autor.

A “cláusula joanina” que suportava a Trindade

Na Primeira Carta de João foi, em tempos, inserido um pedaço de texto, tradicionalmente chamado de “cláusula joanina”, que deu suporte à doutrina da Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só). Lia-se assim (o texto inserido está entre parentesis rectos):
1 João 5:7-8 E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que dão testemunho [ no céu, o Pai, o Verbo, e o Espírito Santo; e estes três são um. E há três que dão testemunho na terra ]: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam.

Esta “cláusula”, reconhecida como uma inserção, já foi retirada da maioria das modernas traduções do Novo Testamento, ficando o texto assim:

1 João 5:7-8 E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam. 

sábado, 14 de setembro de 2013

Outras Cartas Pseudo - Pedro, Tiago e Judas




Cartas atribuídas a Pedro

As duas Cartas de Pedro têm tradicionalmente a sua autoria atribuída ao apóstolo Pedro dos evangelhos. No entanto, podemos encontrar pontos contra esta tradição.

O autor das Cartas de Pedro mostra um excelente domínio da língua grega escrita mas, segundo a opinião veiculada pelo livro de Atos dos Apóstolos, Pedro era “iletrado”:
Atos 4:13 Então eles, vendo a intrepidez de Pedro e João, e tendo percebido que eram homens iletrados e indoutos, se admiravam; e reconheciam que haviam estado com Jesus.

A Segunda Carta de Pedro mostra os seguintes pontos específicos:
-          em 2 Pedro 2:4, o autor utiliza a palavra “Tártaro” para designar as profundezas para onde foram lançados os “anjos pecadores”; no entanto esta designação é do domínio da mitologia grega, não sendo nada provável um pescador iletrado da Galiléia dominar este tema;
-          em 2 Pedro 3:4, o autor mostra-se preocupado com aqueles que escarnecem com o comentário “Onde está a sua vinda prometida?”, referindo-se à vinda de Jesus que tardava; mas, segundo os evangelhos, Jesus já tinha vindo e até tinha estado com Pedro e com muitos outros na Terra;
-          em 2 Pedro 3:15-16, o autor menciona as cartas de Paulo como se estas formassem já um cânon de escrituras cristãs, o que só se pode admitir num estágio de grande maturidade do cristianismo, e que indica que esta carta foi escrita não antes de 80-90 EC.


Mas a passagem mais curiosa de 2 Pedro é aquela em que o autor (que não é, obviamente, o Pedro dos evangelhos) manifesta a necessidade de demonstrar que Jesus não é nenhum mito, porque "viu-o em esplendor e ouviu uma voz do céu":
2 Pedro 1: 16-18 Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas, mas nós mesmos vimos a sua majestade, porquanto ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foi dirigida a seguinte voz: "Este é o meu Filho amado, em quem me tenho comprazido." E ouvimos esta voz dirigida do céu, estando nós com ele no monte santo. 

Este autor pseudo-Pedro refere que viu Cristo em esplendor numa visão ou revelação colectiva em cima de algum monte santo. Isto está de acordo com a tese da não historicidade de Jesus pois o Cristo não necessitaria de ser humano para aparecer numa visão ou revelação aos apóstolos (bastava estes alucinarem ou fantasiarem sobre o tema). No entanto, este autor nega descaradamente que seguiu "fábulas artificialmente compostas" (ou mitos) para proclamar a vinda de Jesus Cristo!!!

O autor não parece estar inclinado a declarar que passou alguns meses a viajar e a realizar inúmeras atividades com Jesus Nazareno, tal como seria de esperar do personagem Pedro dos evangelhos. Este autor da Segunda Carta de Pedro apenas refere um episódio de revelação.

No evangelho de Marcos, no meio de todas as peripécias da narrativa, existe o episódio da transfiguração (Marcos 9:2-8) em que Jesus aparece a Pedro, Tiago e João em cima de um monte. Aqui Jesus aparece na companhia de Moisés e Elias (personagens do Antigo Testamento). É de salientar que este episódio é narrado no evangelho como sendo um acontecimento antes da crucificação de Jesus, de modo que não se trata de uma aparição pós-ressurreição.


Carta atribuída a Tiago, “irmão” de Jesus

A autoria da Carta de Tiago é tradicionalmente atribuída a Tiago, irmão de Jesus, que é uma personagem dos evangelhos (Marcos 6:3). No entanto uma prova contra esta tradição é que o autor desta carta, ensina a “lei real segundo a escritura” (segundo o Antigo Testamento) e não segundo Jesus:
Tiago 2:8 Todavia, se estais cumprindo a lei real segundo a escritura: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem.
O autor referia-se ao texto do Antigo Testamento, onde esta lei foi registada em primeiro lugar (Levítico 19:18) mas, ao contrário do que acontece nos evangelhos, não credita a Jesus a confirmação desta lei (ao contrário do que acontece em Marcos 12:31 e também em Mateus 22:39 e Lucas 10:27).
Marcos 12:28-31 Aproximou-se dele um dos escribas ... e perguntou-lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos? ...
E Jesus respondeu-lhe: ... Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.
Paulo, também mencionou esta lei sem creditá-la a Jesus:
Romanos 13:9 Com efeito: Não adulterarás; não matarás; não furtarás; não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. 
Gálatas 5:14 Pois toda a lei se cumpre numa só palavra, a saber: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.

Portanto o autor da Carta de Tiago é apenas mais um, entre os que escreveram o Novo Testamento, que desconhecia os evangelhos e Jesus Nazareno.

Este autor parece também desconhecer as fronteiras entre as Escrituras Sagradas Judaicas e outras obras escritas, pois cita um texto que não se encontra no Antigo Testamento:
Tiago 4:5 Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até ao ciúme?
Tal como Paulo, na primeira carta aos Tessalonicenses, o autor da Carta de Tiago também espera para breve o "Senhor":
Tiago 5:8 Sede vós também pacientes, fortalecei o vosso coração, porque já a vinda do Senhor está próxima.
Repare-se que este autor fala de uma "vinda" que está próxima e não um "retorno" do Senhor.

Para finalizar, mais uma curiosidade: o autor promete aos fiéis “curas milagrosas”, com os ministros a substituírem os profissionais de saúde, crendices ainda hoje encontradas em alguns cultos Pentecostais:
Tiago 5:14-15 Está doente algum de vós? Chame os anciãos da igreja, e estes orem sobre ele, ungido-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; ...

Carta atribuída a Judas, “irmão” de Jesus

Esta carta, cujo autor identifica-se com o nome "Judas irmão de Tiago", manifesta um certo receio do autor face a ataques internos do grupo a que pertencia:
Judas 4 Porque se introduziram furtivamente certos homens, que já desde há muito estavam destinados para este juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de nosso Deus, e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo.

O autor cita uma profecia que não se encontra no Antigo Testamento mas no Livro de Enoch (1º Enoch):
Judas 14-15 Para estes também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que veio o Senhor com os seus milhares de santos, para executar juízo sobre todos ...


Não há nada no texto que evidencie que este Judas fosse o irmão de Jesus referido em Marcos 6:3, nem que este autor tivesse tido qualquer contacto com Jesus Nazareno.