Os autores dos evangelhos fizeram todas as diligências, que
a sua arte de escrita permitiu, para culpar os judeus e dar uma imagem positiva dos romanos - em particular de Pilatos - no que toca à sentença e morte de Jesus. Esta posição não é nada consistente com os dados
históricos, que mostram um Pilatos cruel e impiedoso, mas permitiu que o
cristianismo pudesse desenvolver-se no seio do Império Romano.
Os diversos relatos sobre o julgamento de Jesus têm algumas
inconsistências que, em conjunto, põem em dúvida todo este episódio.
Sumo-sacerdote
Ao compararmos o texto de João com o dos sinópticos,
ficamos sem saber se Jesus foi levado directamente ao sumo-sacerdote ou não:
Marcos 14:53
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Mateus 26:57
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Lucas 22:54
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João 18:13,24
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Foi levado directamente ao sumo-sacerdote (que chama-se
Caifás, em Mateus)
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Foi levado primeiro a Anás, sogro de Caifás, e depois
a Caifás o sumo-sacerdote
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No Evangelho de João,
é introduzida uma novidade: Jesus foi primeiro levado a Anás, alegadamente o sogro
de Caifás. Anás é também referido em Lucas
numa lista de personagens com o objectivo de enquadrar historicamente a data em
que João Baptista começou a aparecer em público (Lucas 3:1-2). “Lucas” diz que
Anás e Caifás eram sumo-sacerdotes na data em que ocorreram os acontecimentos
que relata. Esta é uma das provas da influência que Lucas teve na redacção de João:
Lucas 3:1-2 No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia, ... sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto.
Mas em termos de enquadramento histórico, registos indicam
que Anás (ou Ananias ben Seth) foi sumo-sacerdote de 6 a 15 EC e que Caifás foi
sumo-sacerdote de 18 a 36 EC. Os apologistas da igreja costumam afirmar que,
naquela data, haviam dois sumo-sacerdotes em simultâneo em Jerusalém: Anás e
Caifás. Ora isso seria o mesmo que haver simultaneamente dois Papas em Roma.
Sacerdotes e escribas
Vejamos, agora, quando é que os sacerdotes e escribas se
reuniram para interrogar Jesus:
Marcos 14:53
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Mateus 26:57
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Lucas 22:66
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João
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Na noite da detenção, depois de ser levado ao
sumo-sacerdote
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Na noite da detenção, antes de ser levado ao
sumo-sacerdote
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Na manhã seguinte à detenção
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Só menciona que o sumo-sacerdote interrogou Jesus
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Em Marcos e Mateus, os sacerdotes e escribas reunem-se
de emergência e à noite para interrogar Jesus. Isto põe em causa se estes homens
teriam direito a uma vida privada, principalmente na época das maiores
festividades judaicas em que os sacerdotes teriam tanto trabalho.
Outra característica das versões de Marcos e Mateus é que os
sacerdotes formularam, naquela mesma noite, a condenação de Jesus à morte
(Marcos 14:64; Mateus 26:66).
Barrabás
Os evangelhos mencionam que Pilatos invocou o costume de se
libertar um preso na Páscoa, por isso oferece a escolha aos judeus entre
Barrabás e Jesus, um deles seria libertado. Mas de onde vinha esse costume do
qual não se encontram provas históricas?
Marcos 15:6
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Mateus 27:15
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Lucas 23:17
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João 18:39
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Era costume do próprio Pilatos
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Era uma obrigação de Pilatos (o versículo é uma
reconhecida inserção)
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Era um costume dos próprios judeus.
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Pilatos, perante a multidão, coloca Jesus lado a lado com um
criminoso chamado Barrabás. Não fica claro qual era a acusação que pendia sobre
Barrabás, isto é, de que crimes era acusado:
Marcos 15:7
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Mateus 27:16
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Lucas 23:19
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João 18:40
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Agitador e assassino
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Um preso notório
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Agitador e assassino
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Ladrão
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No fim os judeus acabam por escolher libertar Barrabás. No
caso do relato de João, até poderia ser possível, pois Barrabás é
declarado como um simples ladrão. No caso de Marcos e Lucas, não
seria nada provável o governador romano libertar um agitador e assassino. O
autor de Mateus provavelmente apercebeu-se disso e, portanto, omite que
Barrabás seria um agitador e assassino, qualificando-o apenas como um “preso
notório”.
Este é mais um episódio que os autores dos evangelhos
escreveram para convencer o leitores do quão magnânimo Pilatos foi no
julgamento de Jesus e o quão culpados foram os judeus de não terem aproveitado
a oportunidade que Pilatos lhes ofereceu para absolver Jesus.
Mas agora estamos em condições para avançar para a
explicação do porquê desta personagem ter aparecido no texto de Marcos e depois propagado para os outros
evangelhos.
Em alguns textos fora do Novo
Testamento, Barrabás é chamado de Jesus Barrabás, mas nos evangelhos
canónicos ficou apenas o nome Barrabás. Ora, Barrabás em aramaico significa
“Filho do Pai” (bar-Abbas) e o
objectivo era escolher quem é que ficaria livre e quem é que seria morto:
-
Jesus
Filho do Pai, ou
-
Jesus
Filho do Homem, Rei dos Judeus.
Barrabás era o alter-ego
de Jesus, ou seja, o Filho do Pai que ficaria livre e Jesus, o Filho do Homem,
o Rei do Judeus, seria morto.
Por outro lado, é possível que “Marcos” tivesse a intenção de retratar uma sátira ao ritual judaico do Yom Kippur, o Dia do Perdão.
Por outro lado, é possível que “Marcos” tivesse a intenção de retratar uma sátira ao ritual judaico do Yom Kippur, o Dia do Perdão.
Pilatos é bom, Herodes nem por isso
Apenas “Lucas” menciona que Pilatos, depois de saber que
Jesus era galileu o enviou a Herodes Antipas, que estava em Jerusalém a
festejar a Páscoa, justificando que este é que era o responsável pela Galiléia
e pelos galileus. Os outros evangelhos não mencionam nenhuma intervenção de Herodes
no julgamento de Jesus.
Marcos
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Mateus
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Lucas 23:7-11
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João
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Não menciona Herodes
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Pilatos enviou Jesus a Herodes, que o interrogou e
depois devolveu a Pilatos.
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Não menciona Herodes
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Uma vez que “Lucas” é o único autor que diz que Jesus foi
interrogado por Herodes, também entra em inconsistência sobre quem escarneceu de
Jesus e colocou-lhe o manto púrpura:
Marcos 15
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Mateus 27
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Lucas 23
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João 19
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Pilatos manda espancar Jesus.
Soldados de Pilatos colocam um manto púrpura e uma
coroa de espinhos e escarnecem de Jesus.
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Guardas de Herodes escarnecem de Jesus e colocam-lhe um
manto púrpura.
Pilatos diz que pode castigar Jesus mas não executar. Pilatos
não manda espancar Jesus.
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Pilatos manda espancar Jesus.
Soldados de Pilatos colocam um manto púrpura e uma
coroa de espinhos e escarnecem de Jesus.
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Nesta passagem, “Lucas” vai mais além que os outros
escritores do evangelho na absolvição da culpa de Pilatos e dos soldados
romanos, ao transferir para Herodes e sua guarda o episódio em que Jesus é escarnecido
e desacreditado. O Pilatos de Lucas é
uma pessoa realmente impecável, pois nem sequer manda açoitar Jesus antes da
crucificação.
Reconstrução a partir dos quatro evangelhos
Segundo Marcos, Jesus
foi preso, julgado e crucificado em muito poucas horas, pois foi preso de noite,
algum tempo após a ceia de Páscoa, e crucificado às 9h da manhã do dia seguinte.
Combinando as informações dos quatro evangelhos, façamos a
reconstrução de todo o processo desde a detenção de Jesus até à sua
crucificação:
Secção
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Descrição
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João 18:12,13
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De noite, Jesus é detido e levado para a casa de Anás,
sogro de Caifás, para ser interrogado
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João 18:24
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Jesus é levado à casa do sumo sacerdote (Caifás)
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Marcos 14:53
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Na casa de Caifás reunem-se todos os principais dos
sacerdotes, e os anciãos, e os escribas
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Marcos 14:55-59
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Tentam encontrar testemunhas de acusação, sem sucesso,
porque estas contradiziam-se
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Lucas 22:63-65
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Jesus é mantido preso durante o resto da noite,
esperando pelo julgamento no Sinédrio (tribunal) pela manhã
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Marcos 15:1
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Ao amanhecer, mais um julgamento com todo o Sinédrio:
decidem levar Jesus a Pilatos
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Lucas 23:4-5
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Interrogado por Pilatos, Jesus declara-se inocente;
judeus fazem mais acusações
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Lucas 23:7
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Pilatos resolve enviar Jesus a Herodes Antipas, porque
Jesus era da Galiléia
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Lucas 23:9
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Jesus é interrogado por Herodes Ântipas
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Lucas 23:11
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Jesus é humilhado e vestido com um manto real; Herodes
devolve Jesus a Pilatos
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Lucas 23:13
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Pilatos reúne, mais uma vez, os sacerdotes, os magistrados
e o povo
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Lucas 23:14-24
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Pilatos, contra a opinião dos judeus, defende a
inocência de Jesus, mas aqueles exigem a crucificação
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Mateus 27:15-26
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Pilatos pede para o povo escolher, entre Jesus e
Barrabás, quem deve ser solto;o povo escolhe o criminoso Barrabás
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João 19:1-13
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Pilatos insiste na libertação de Jesus
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Mateus 27:26
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Jesus é açoitado
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Mateus 27:27-31
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Jesus é despido, vestido com um manto e uma coroa de
espinhos, é humilhado e, depois, vestido novamente com suas roupas
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Marcos 15:25
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Jesus é crucificado às 9h da manhã (terceira hora do
dia, considerando que a primeira é às 7h da manhã)
|
Tudo isso numa só noite e até às nove horas da manhã do dia
seguinte!
Numa altura em que toda a gente estava ocupada com a Páscoa,
a mais importante festividade judaica! Os sacerdotes, principalmente, teriam
muito trabalho para preparar e conduzir as festividades!
Pilatos aparece no Credo como Passos Coelho no Governo.
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