segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Antigo Testamento - O que é?





O Antigo Testamento é um conjunto de trinta e nove livros, ou mais (conforme a selecção de livros de que é composto), escritos ao longo de vários séculos, em várias línguas, que podem ser agrupados da seguinte maneira:


Pentateuco ou Lei (Torah para os judeus)
São cinco livros, que narram a vida de Moisés e registam a lei dos judeus. O primeiro, Génesis, inclui a cosmogonia (origem do universo e da Terra) e a história primitiva do homem, segundo a óptica dos hebreus. Os outros são Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio.

Históricos
Josué, Juizes, Samuel, Reis, Crónicas, vários de escribas, entre outros

Poesia e Sabedoria
Jó, Salmos, Provérbios, Canções

Profetas Maiores
Isaias, Jeremias, Ezequiel, Daniel

Profetas Menores
Oseias, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Zacarias, Malaquias, etc

O Antigo Testamento corresponde à bíblia hebraica, conhecida pelos judeus pela designação de Tanakh (acrónimo de três palavras hebraicas Torah-Nevi’im-Kh’tuvim, ou seja, Lei-Profetas-Escritos), cuja composição é idêntica, embora com uma organização diferente.

A existência do Antigo Testamento, tal como conhecemos hoje, deve-se, em grande parte, a um escriba chamado Esdras que, no século V AEC, no pós-exílo babilónico, compilou os livros das Crónicas, bem como o livro que tem o seu nome, Esdras. Também atribui-se-lhe o facto de ter organizado as Escrituras Sagradas judaicas, numa primeira compilação dos escritos que eram considerados sagrados.

Vejamos um sumário de alguns aspectos históricos relevantes:

Época
Descrição
até 1000 AEC
Os hebreus começam a ganhar identidade própria dentro das etnias de Canaã. Grande parte da cultura é de origem suméria e da antiga Babilónia.
até 700 AEC
Dois reinos de hebreus: Judá a sul e Israel a norte.
por volta de 700 AEC
O reino de Israel (parte norte do território hebreu) é destroçado pelos assírios. O povo israelita é distribuído pelos territórios do Império Assírio. Muitos refugiam-se em Judá.
até 600 AEC
Josias, três filhos e um neto são os últimos reis de Judá (parte sul do território hebreu) divididos entre a lealdade aos assírios e o receio de uma nova potência – a Babilónia.
O reino de Judá é conquistado pelos (neo-) babilónios. Jerusalém é destruida e a elite é deportada para Babilónia para servir o Império.
até 500 AEC
Vários escritos produzidos durante a estada em Babilónia: Ezequiel, Jeremias, Daniel (este último poderá ter sido escrito mais tarde).
por volta de 500 AEC
Os persas derrotam os babilónios. Os judeus recuperam autonomia de Jerusalém sob o Império Persa. Zorobabel lidera a reconstrução do Templo de Jerusalém.
até 400 AEC
Esdras (Ezra) compila a literatura religiosa num primeiro canon daquilo que viria a ser o Antigo Testamento.

Outros escritos aparecem em certas edições da Bíblia, mas não são plenamente reconhecidos como sendo sagrados (ou canónicos), como, por exemplo, os livros Macabeus e Judite. São chamados deuterocanónicos, porque foram canonizados depois (gr. deutero, segundo; deuterocanónicos, canonizados em segundo lugar).


Como sobreviveu o texto

A única maneira de se conservar os textos era a sua contínua cópia, uma vez que os exemplares degradavam-se com o tempo e uso. Na Antiguidade, existiam as seguintes grandes correntes de cópias do Antigo Testamento:

-     Septuaginta (ou versão LXX) - foi uma tradução grega do Antigo Testamento que surgiu no século III AEC, em Alexandria (uma cidade do Egipto que tinha uma grande população judaica de língua grega); o nome advém da tradição que diz que foram 72 sábios, a pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo (309 - 246 AEC), que traduziram os textos para o grego;

-     as traduções para o Latim só foram oficializadas a partir do século IV EC, com a introdução da Vulgata Latina por Jerónimo, que já incluía o Novo Testamento;

-    o texto Massorético - corresponde à versão oficial em hebraico, copiada segundo regras rígidas; mas, embora sendo o hebraico a língua original da maior parte dos livros do Antigo Testamento, esta corrente de cópias só se formou a partir do século VIII EC e não é claro quais foram as fontes iniciais para esta.



Entre os Rolos do Mar Morto - descobertos entre as décadas de 1940 e 1950 - foram encontradas cópias, em hebraico, de quase todos os livros do Antigo Testamento. Esses manuscritos são os mais antigos de todos os actualmente existentes, sendo contemporâneos da Septuaginta.
Só muito recentemente é que o seu conteúdo começou a ser utilizado para melhorar as traduções existentes da Bíblia.

sábado, 29 de setembro de 2007

A torre de Babel





Os homens, pouco depois do dilúvio, quando inventaram o tijolo e a argamassa, planearam construir uma grande cidade e uma torre para chegar ao céu. Enquanto executavam o projecto, Yahveh desceu para ver como decorriam as obras e disse: “Uau, a humanidade formou um povo unido com um só idioma que consegue realizar magníficos projectos; e nada do que planearem fazer lhes será difícil; vamos, desçamos e criemos muitos idiomas para que os homens não se entendam uns aos outros”. Com isto, a humanidade espalhou-se pela Terra e o projecto da torre terminou (Génesis 11:1-9).

Nesta história, Yahveh teve receio do poder dos homens quando se uniram num projecto comum. Deus teve de aplicar a antiquíssima fórmula dos conquistadores: “dividir para reinar”.


Gênesis 11:1-9
E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. E aconteceu que, partindo eles do Oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e habitaram ali. 
E disseram uns aos outros: "Eia, façamos tijolos e queimemo-los bem." 
E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume, por cal. 
E disseram: "Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra." 
Então, desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: 
"Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e, agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro." 
Assim, o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso, se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra.

Origem das Línguas vs Origem das Espécies

Outro raciocínio que poderemos fazer acerca desta história é que os antigos crentes poderiam jurar que as diferentes linguagens tinham sido originadas por este evento, tal como as espécies biológicas teriam sido originadas pelo evento da criação divina. Hoje nenhum crente da Bíblia defende que o português ou o espanhol (ou qualquer outra linguagem moderna) tiveram origem na torre de Babel, mas, apesar disso, muitos continuam a defender que a diversidade das espécies biológicas teve como origem um criador sobrenatural.


Etimologia errada de "Babel"

O autor desta história diz que o nome "Babel" está relacionado com a confusão das línguas. Mas, em acadiano (língua dos babilónios), a palavra é bab-ilu "Porta de Deus" (de bab "porta" + ilu "deus").

Hipótese: O autor desta passagem bíblica deveria ser um habitante judeu na Babilónia do século VI a.C. ou posterior. Durante muitas décadas convergiram para essa grande cidade pessoas de muitas partes do mundo, com uma grande diversidade de linguas. Por algum motivo o autor desconheceria esse pormenor histórico e criou ou adaptou esta lenda da confusão das línguas para explicar o fenómeno. Esse mesmo autor poderia observar na Babilónia algum zigurate antigo - muito anterior à sua época - e já decadente, parecendo uma torre antiga e inacabada.


O dilúvio





O Épico de Gilgamesh

A história do dilúvio que encontramos em Génesis é provavelmente baseada num poema épico cujo protagonista é um rei sumério, Gilgamesh. Neste poema, que é considerado a obra literária mais antiga do mundo, existe um trecho sobre um dilúvio destruidor cujo sobrevivente chama-se Utnapishtim em vez de Noé.

O dilúvio no épico de Gilgamesh
(após a morte de Enkidu, o grande amigo de Gilgamesh...)
Tendo ficado bastante perturbado com a morte do seu grande amigo, Gilgamesh foi à procura da imortalidade. Lembrou-se que o seu antepassado Utnapishtim tinha alcançado a vida eterna, porque os deuses o tinham salvo de um dilúvio e lhe tinham concedido imortalidade. Depois de uma viagem atribulada, Gilgamesh consegue então uma entrevista com Utnapishtim, que lhe conta a sua história: 
“Eu vivia em Shurrupak e era fiel a Ea, o deus da água. Entretanto, a deusa Ishtar começou a promover o disturbio e a guerra entre os homens. De tal modo os homens ficaram desassossegados, que os deuses nem podiam dormir, até que Enlil o deus da guerra disse aos outros: ‘Afoguemos toda a raça dos homens, pois nos tiraram o sossego!’. Mas Ea avisou-me a tempo, sussurando ao vento, de modo que eu construi um barco onde coloquei toda a semente de coisas vivas. De modo que levei a minha família bem como um casal de cada animal para dentro do barco. Durante seis dias e seis noites choveu. No sétimo dia a tempestade acalmou e por fim o barco encostou no cimo de um monte. Para verificar se as águas tinham baixado, soltei primeiro uma pomba, depois uma andorinha e depois um corvo. Os primeiros regressaram, mas o corvo não, porque tinha encontrado um local para pousar. Então, em agradecimento, ofereci um sacrifício aos deuses. Mas Enlil ao sentir o cheiro agradável do fumo do sacrifício ficou furioso e disse: ‘Escaparam alguns daqueles mortais. Quem os avisou?’. Então Ea replicou: ‘O dilúvio foi um castigo severo demais para a humanidade. Pelo menos este homem merecia ser poupado. Não o avisei, ele teve um sonho’. De modo que Enlil amansou e tocou-me na testa e também à minha mulher e ficámos imortais como os deuses.” 
Depois de relatar o dilúvio, Utnapishtim indicou a Gilgamesh o local onde brotava a planta que garantia a vida eterna. Gilgamesh colheu a planta e levou-a para Uruk, a sua cidade, decidido a experimentá-la mas, enquanto fez uma pausa para se banhar numa lagoa, veio uma serpente e comeu a planta.

Os que crêem literalmente no relato de Génesis, defendem que os sumérios escreveram esta história como uma versão modificada do verdadeiro acontecimento.



O Dilúvio no Génesis

Na versão do Antigo Testamento, o dilúvio acontece porque Yahveh deplorou ter feito a criação, afirmando: “Destruirei da face da terra o homem que criei, tanto o homem como o animal, os répteis e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito” (Génesis 6:6-7). Temos, portanto, um deus claramente decepcionado e arrependido da sua criação. Por outro lado, Yahveh afinal deixa o Homem e os animais sobreviverem, revelando-se um deus inseguro face às suas próprias decisões.

Quando Noé apeou-se da arca, fez ofertas de animais em sacrifício queimado a Deus.
Génesis 8:20-21 Edificou Noé um altar ao Senhor; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa, e ofereceu holocaustos sobre o altar. Sentiu o Senhor o suave cheiro e disse em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como acabo de fazer.

Claro que Noé não se preocupou com o facto de os animais da Terra estarem à beira da extinção, porque apenas salvou um macho e uma fémea de cada espécie, embora dos animais para sacrifício tenha salvo sete pares de cada espécie. Correu esse risco apenas para Deus sentir “um suave cheiro” a carne assada (e no livro Levítico, Yahveh é retratado como um ser obcecado pelo “cheiro repousante” da carne assada...)!

A narrativa bíblica do dilúvio também menciona o aparecimento do primeiro arco-íris, como se até esse momento as leis da refracção da luz não existissem ou nunca se tivessem manifestado (Génesis 9:12-16)!

Mais sobre o dilúvio na Bíblia: o texto sobre o dilúvio em Génesis nos capítulos 6 a 9 pode ter sido redigido a partir de duas versões distintas,


Os Egípcios

Na cronologia do Antigo Testamento, o Dilúvio ocorreu no Anno Mundi (calendário segundo a Criação) de 1656.


Passagem
Evento
Data (Anno Mundi)
Génesis 1-2 
Deus cria tudo
0
Génesis 5:3 
Adão é pai de Set aos 130
0 + 130 = 130
Génesis 5:6 
Set é pai de Enos aos 105
130 + 105 = 235
Génesis 5:9 
Enos é pai de Cainan aos 90
235 + 90 = 325
Génesis 5:12 
Cainan é pai de Maalalel aos 70
325 + 70 = 395
Génesis 5:15 
Maalalel é pai de Jarede aos 65
395 + 65 = 460
Génesis 5:18 
Jared é pai de Enoque aos 162
460 + 162 = 622
Génesis 5:21 
Enoque é pai de Matusalém aos 65
622 + 65 = 687
Génesis 5:25 
Matusalém é pai de Lameque aos 187
687 + 187 = 874
Génesis 5:28 
Lameque é pai de Noé aos 182
874 + 182 = 1056
Génesis 7:6 
O dilúvio começa aos 600 anos de Noé.
1056 + 600 = 1656



Segundo grande parte da literatura fundamentalista judaico-cristã, a Criação ou o início do calendário Anno Mundi corresponde ao ano 4000 AEC (com pequenas variações). Isto quer dizer que o Dilúvio, segundo a cronologia fundamentalista, ocorreu por volta de 2350 AEC (Anno Mundi 1656).

Mas por volta desta data já florescia a civilização egípcia, tendo continuado durante séculos. Ou seja, vejamos o absurdo:
-     os egipcios desenvolveram a sua civilização até 2350 AEC;
-     veio o Dilúvio e todos os egípcios morreram - as pirâmides e outras edificações ficam submersas;
-  depois do Dilúvio, descendentes de Noé tornaram-se egípcios e continuaram a civilização egípcia (!!!);


Outras questões

Para finalizar, ficam algumas questões:

-  Se morreram todos os humanos que estavam fora da arca, isso foi porque não havia mais nenhuma outra embarcação no mundo inteiro?
-     Como sobreviveram os peixes de água doce, uma vez que um dilúvio global causaria a mistura de águas oceânicas com águas fluviais?
-      Como sobreviveu a vegetação submersa?
-      Como sobreviveram os anfíbios, que necessitam tanto de meio aquático como de terra seca?


Os anjos excitados





Anjos excitados

Entre as primeiras histórias do Génesis está uma sobre uma “inconveniente” característica dos anjos filhos de Deus:

Génesis 6:1-3 Sucedeu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. Então disse o Senhor: O meu Espírito não permanecerá para sempre no homem, porquanto ele é carne, mas os seus dias serão cento e vinte anos.

Deus, portanto, criou os anjos com capacidade de ter desejo sexual, mas não lhes deu parceiras à sua altura, por isso, estes tiveram de tomar as filhas dos homens!


Cento e vinte anos

Curiosamente, Deus ficou receoso que, do fruto da volúpia dos anjos com as mulheres terrenas, nascessem homens imortais, por isso fixou em 120 anos o limite para a longevidade do ser humano.

Caim e Abel, o primeiro crime




Adão e Eva tiveram os dois primeiros filhos, Caim e Abel. Caim tornou-se agricultor mas Abel optou por ser pastor. Depois, como Deus gostava mais do pastor, Caim matou o seu irmão por ciúmes (Génesis 4:1-8).

Esta história poderá ser um reflexo sobre a rivalidade que sempre existiu entre agricultores e pastores, desde que foi introduzida a agricultura na vida dos homens. O agricultor odiava que os pastores passassem com os rebanhos pelos seus campos que tanto trabalho requeriam para cultivar, e o pastor odiava que o agricultor tomasse posse das terras. Porém, o agricultor é o mais poderoso, por isso o agricultor mata o pastor. O pastor morre e o agricultor é o sobrevivente.

O agricultor é mais sofisticado do que o pastor, pois tem de dominar a técnica, as ferramentas, o calendário, etc. A agricultura foi a primeira tecnologia sofisticada da história do Homem, a primeira ciência, por isso, Caim foi o primeiro a experimentar as vantagens da ciência, perante a desaprovação de Deus. O agricultor teria de devastar largas áreas florestais e outros habitats naturais para dar lugar à terra cultivada. Este foi certamente o primeiro passo na destruição da Natureza selvagem.

Isto leva-nos à história dos hebreus, que na sua origem dedicavam-se principalmente à pastorícia. Os seus vizinhos mesopotâmicos (mais tarde designados por babilónios) foram, por outro lado, os inventores da agricultura, tendo retirado desta actividade grande riqueza e poder. Daí a rivalidade entre pastores e agricultores.

Na história de Génesis, o ataque de ciúmes de Caim foi desencadeado na sequência de oferendas que ambos irmãos fizeram a Deus: Caim ofereceu vegetais do seu cultivo enquanto Abel ofereceu umas boas peças de gado. Parece que Deus não gostou da oferta vegetariana de Caim e aprovou apenas a oferta de Abel.

Mas, no fim de contas, Caim conseguiu ganhar o respeito de Deus, porque Deus só lhe dirigiu uma repreensão verbal e, logo a seguir, até prometeu-lhe protecção (“... E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse”, Génesis 4:15). Caim tinha medo de ser encontrado e morto em punição do seu crime, por isso foi viver para a terra de Node (que, em hebraico, significa “Fuga”), onde se estabeleceu com a sua mulher (Génesis 4:13-17).

Esta história acaba sem deixar resposta para as seguintes questões:
  • Caim tinha medo de quem?
  • Por que é que Deus prometeu-lhe protecção?
  • Foi ele que fundou a terra de Node ou já existia como povoação?
  • Quem era a mulher de Caim?

O primeiro pecado


A Árvore do Conhecimento

Deus avisou Adão, o primeiro homem, que não poderia comer o fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal” pois morreria, isto é, perderia a imortalidade. Poderíamos dizer que esta árvore simbolizaria a emancipação do Homem perante Deus, pois, ao comer do fruto, o Homem passaria a poder distinguir o bem do mal. Deus teria, portanto, receio que o Homem se tornasse auto-suficiente nas suas escolhas morais.

Por outro lado, poderíamos arrojar uma interpretação mais adaptada aos nossos dias. Considerando que o “conhecimento do bem e do mal” constitui a totalidade do conhecimento, a árvore que Deus referia era, portanto, a Ciência. Seria um aviso divino para o Homem não se aventurar pelos caminhos do conhecimento, pois, embora libertasse o homem da sua dependência de Deus, seria o caminho para a sua morte.

Digamos que a interpretação deste “aviso divino” estaria de acordo com os cenários apocalípticos modernos que são baseados num contexto em que o homem abusou da Ciência e deixou de a controlar. Como exemplo, a cultura do século XX deixou-nos carregados de receios de autodestruição do Homem por causa do abuso da ciência: a guerra nuclear, o buraco do ozono, a desflorestação, o aquecimento global, etc.

Esta é apenas uma das possíveis interpretações da história do primeiro pecado à luz do entendimento dos nossos dias e serve apenas para indicar a elasticidade que algumas histórias bíblicas têm. Certamente quem, há 2.500 ou mais anos, escreveu esta narrativa teria em mente outras interpretações e não estaria a pensar numa auto-destruição do Homem pela má aplicação da Ciência. Porém, é duvidoso que o autor escrevesse esta história para ser entendida literalmente, como se Adão e Eva tivessem transgredido por ter trincado um fruto colhido de uma árvore. Esta visão reduz esta história a um caso de simples rebeldia ou desobediência infantil (“não mexe, senão fica de castigo!”...).

A interpretação tradicional, para além de encarar a história literalmente, é detractora da mulher, culpando Eva da prevaricação de ter em primeiro lugar provado do fruto proibido, arrastando consigo Adão para a decadência da Humanidade.

Segundo Génesis foi uma serpente que incitou Eva a comer do fruto da árvore proibida da Ciência, retirando-lhe a imortalidade. Esta história não é única no seu conteúdo: no Épico de Gilgamesh, um antiquíssimo texto sumério, o protagonista vai à procura da imortalidade e encontra-a na forma de uma planta, mas uma serpente acaba por comê-la e, assim, também Gilgamesh perde a imortalidade.

Para finalizar, uma pergunta que podemos fazer aos que defendem a literalidade da narrativa de Génesis é: "Que idade tinha Eva quando foi enganada pela serpente?". Podemos acrescentar: "Se a serpente era Satanás, quantos anos já tinha de existência quando enganou Eva?"


O Deus Costureiro

Na sequência da desobediência, Adão e Eva verificaram que estavam nus e cobriram-se com folhas de figueira. Parece que Deus preferiu que eles se vestissem de peles...

Génesis 3:6-21 
E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. Então, foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e cobriram-se
E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e escondeu-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. 
E chamou o Senhor Deus a Adão e disse-lhe: Onde estás?
E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me... 
... E fez o Senhor Deus a Adão e a sua mulher túnicas de peles e os vestiu.


A Primeira Espada

Estamos enganados quando pensamos que foi o Homem que inventou as armas. Afinal, muito antes de o Homem sequer trabalhar os metais, já Deus tinha enviado anjos (querubins) com uma espada para proteger a entrada do Jardim do Eden...

Génesis 3:22-24 
Então disse o Senhor Deus: “Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre”. 
Por isso o Senhor Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado. Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.


O mito de Adapa

O mito bíblico do primeiro pecado parece inspirado no Mito Mesopotâmico de Adapa. Em ambas as narrativas é negada a imortalidade ao homem porque esta representaria uma perda de status para Deus.


Mitos bíblicos - crença ou crendice?





É surpreendente que, ainda hoje, muitas pessoas são levadas a crer literalmente nas histórias bíblicas sobre a criação. Esta questão é importante: estas histórias fazem parte da base de um grande edifício doutrinário e sabe-se que quando se remove a base de um edifício este acaba por cair completamente. Em algumas doutrinas, crer literalmente nestes absurdos é a única maneira de se manter coesa uma teia complexa de ensinamentos.

Para muitos crentes não é relevante que as duas narrativas da criação não sejam compatíveis. Também não importa o absurdo que é uma história em que Deus cria a noite e o dia e só mais tarde é que cria o Sol para iluminar o dia. Não importa igualmente que o mesmo relato diga que as plantas foram criadas antes do Sol, não tendo em conta o fenómeno da fotossíntese!

Outros crentes das Escrituras refugiam-se na ideia que os relatos da criação são alegorias e nada mais. Mas, para estes, fica por responder se Deus realmente criou os céus, a Terra e tudo mais! Estes crentes ficam de fora da definição mais básica de divindade que a Bíblia tem para oferecer, ou seja, se o Deus que é retratado na Bíblia foi o criador de todas as coisas! Também não conseguem extrair uma regra que diga quais os textos que devem ser interpretados como alegorias e quais devem ser interpretados literalmente.

Quanto a Deus ser definido como o criador de todas as coisas, só em Génesis e em poucas passagens noutros livros do Antigo Testamento é que é referido como tal. E Yahveh é principalmente referido como o protector dos hebreus, mas esta definição de protector tribal ou étnico não é equivalente à de criador de todas as coisas, principalmente quando verificamos que este Deus entra em competição com outros povos e os seus respectivos protectores divinos.

Por outro lado, o livro de Génesis ensina que tudo foi feito para o usufruto do Homem ao qual Deus deu plenos poderes para dominar sobre toda a criação. Esta afirmação certamente contribuiu para que o Homem (pelo menos a porção da Humanidade que foi educada com base no Antigo Testamento) se afastasse da Natureza e que, ao longo dos tempos, abusasse dos recursos naturais.


O Criacionismo Marcionista

No início do cristianismo, o papel de Deus como Criador foi posto em causa pelo marcionismo. Marcion de Sínope propôs que Yahveh era o Criador mas que não podia ser o Deus Pai devido à natureza imperfeita da Criação. Não fazia sentido que o Deus Pai, superlativo da perfeição, tivesse feito uma Criação imperfeita.


Ler também:


Os primeiros mitos - A criação




O livro de Génesis encerra os mais conhecidos contos e lendas do Antigo Testamento. Existem muitas denominações religiosas que promovem estas histórias como se se tratassem de verdadeiros factos históricos!


A criação

No primeiro e, provavelmente, mais famoso versículo da Bíblia declara-se que “Deus criou os céus e a Terra”.
Génesis 1:1 No princípio criou Deus os céus e a terra.
Na verdade, deveria traduzir-se por “No princípio os Deuses criaram os céus e a Terra”, pois nos manuscritos hebraicos, a designação divina está no plural (Elohim, plural da palavra hebraica El, Deus). Nota-se aqui uma descuidada conversão de tradições politeístas para um texto monoteísta. O autor deste versículo não conseguiu esconder um passado outrora devotado a múltiplos deuses.


Uma história com duas versões

O livro Génesis, que faz parte do Pentateuco (Torah, para os judeus), contém duas distintas histórias sobre a Criação. A primeira parece uma tradição mesopotamica (semelhante ao mito de criação babilónico, Enuma Elish) e a segunda já é uma tradição mais adaptada ao judaísmo. Na primeira, a divindade é designada por Elohim e na segunda é designada por Yahveh (nome revelado aos hebreus através de Moisés que, em português, habitualmente se escreve Javé ou Jeová mas que na maioria das traduções do Antigo Testamento aparece como “Senhor”).


Primeira versão da Criação
   Génesis 1:1-2:3 (resumo)
No princípio os deuses (heb. Elohim) criaram os céus e a Terra (completamente coberta por água), depois foram feitas as seguintes criações:
Dia 1: luz, o dia e a noite;
Dia 2: separação das águas abaixo e acima do céu;
Dia 3: terra seca, plantas;
Dia 4: Sol para iluminar de dia, Lua para a noite; e também as estrelas.
Dia 5: monstros marinhos (baleias), peixes, aves;
Dia 6: animais terrestres, répteis, insectos e, finalmente, homem e mulher para dominarem sobre o resto da criação;
Dia 7: dia de descanso; os deuses foram descansar estando muito satisfeitos com tudo o que fizeram.

Segunda versão da Criação
   Génesis 2:4-22 (resumo)
Yahveh criou o céu e a Terra.
Criou o homem (heb. Adhám), a partir do barro, numa terra sem vida, pois nunca tinha chovido, embora houvesse um jorro de vapor que brotava da terra.
Depois Yahveh criou um jardim num local chamado Éden (desse jardim partia um rio que dividia-se em quatro rios entre os quais o Tigre e o Eufrates).
No jardim, Yahveh criou plantas e, apercebendo-se que o homem estava sozinho, criou animais para lhe fazerem companhia. O homem ainda esteve entretido uns tempos com os animais, mas Yahveh entendeu que tinha de fazer uma mulher. Yahveh, criou a mulher a partir de uma costela do homem.

Uma grande diferença é que na primeira narrativa o homem e a mulher foram criados em último lugar, enquanto que na segunda, exceptuando a criação dos céus e da terra, o homem foi a primeira criação e a mulher foi a última. Na segunda narrativa, todas as coisas, incluindo a mulher, foram criadas à medida das necessidades do homem.


E... Adão pariu Eva!

Numa inversão da ordem natural das coisas, Génesis diz que foi a partir do homem que Deus criou a mulher (provocou uma anestesia geral em Adão e recolheu uma costela!). Quando Génesis foi escrito, longe iam os tempos em que os povos louvavam o poder gerador de vida que a Mulher possuía através do seu útero.

Durante milhares de anos praticou-se o culto em torno da Grande Deusa (ou a Grande Mãe). Antes da imposição de uma sociedade patriarcal dominada pelo lado masculino e agressivo, a Grande Mãe definia uma sociedade matriarcal dominada pelas leis naturais.

A Grande Deusa foi, progressivamente, substituida por um panteão de deuses e deusas e, finalmente, por um único Deus masculino.


A criação segundo Platão

No livro O Banquete, um livro onde Platão alegadamente regista discursos, um dos oradores, Aristófanes, conta que os humanos tinham sido criados como macho e fêmea unidos fisicamente num só ser. Mas, como os humanos eram demasiado férteis, em consequência da permanente intimidade entre macho e fêmea, tornaram-se numerosos e considerados uma ameaça para os deuses. Zeus decide, então, separar os humanos em dois seres diferenciados - homem e mulher - de modo a dificultar o processo reprodutivo. É desta passagem que vem a expressão platónica "alma gémea".

A narrativa de Génesis diz que Yahveh tirou uma costela de Adão para fazer Eva. No fundo, Yahveh fez o mesmo que Zeus - tornou um ser (Adão) em dois seres distintos (Adão e Eva), sem adicionar material (sem adicionar barro, neste caso, que seria a matéria que Yahveh usou para fazer o homem).

A palavra hebraica hatztzela traduzida, em Génesis 2:22, por "costela" é usada noutros versículos do antigo testamento para designar uma "câmera lateral" ligada à nave principal do Templo (1 Reis 1:6; Ezequiel 41:5,11). O autor desta passagem em Génesis quis passar uma imagem em que o homem e a mulher estavam ligados lateralmente e que Yahveh simplesmente os partiu em dois.

Portanto, na narrativa de Génesis, Yahveh não criou a mulher a partir da costela, pois previamente havia já criado homem e mulher unidos num só ser. Posteriormente Yahveh pensou que seria melhor que macho e fêmea estivessem fisicamente separados.


Referência:
 - http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/O_banquete.pdf
 - http://biblehub.com/hebrew/hatztzela_6763.htm


quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O que é a Bíblia?




Muitas pessoas consideram que a Bíblia é o livro inspirado por Deus, sagrado, verdadeiro e infalível. Estas pessoas podem também descrever a Bíblia como um guia moral e espiritual, identificando-a com a designação de Escrituras Sagradas.

Outras pessoas poderão descrever a Bíblia como sendo apenas uma colecção arbitrária de textos que incluem contos e lendas antigas.

Pondo, para já, de lado as qualificações subjectivas que cada um pode atribuir, a Bíblia é, objectivamente, uma colecção de livros que habitualmente se apresentam numa única encadernação. O número de livros varia consoante o cânon (digamos um standard), sendo que o principal dita que a Bíblia seja composta por 66 livros. Alguns destes livros já terão cerca de 2.500 anos (embora a tradição atribua maior antiguidade a alguns escritos), enquanto os mais recentes têm menos de 1.900 anos, tendo circulado isolados ou em pequenas compilações, até ao século IV, quando foi estabelecida aquela que é a actual composição da Bíblia.

Portanto, os livros da Bíblia foram redigidos num período de pelo menos seiscentos anos. Isso indica que foram muitos os autores e, de facto, foram dezenas, muitos deles anónimos.


Estrutura
O conteúdo da Bíblia está repartido por dois grandes blocos - Antigo Testamento e Novo Testamento. Para simplificar, digamos que, tal como se dividem as datas e eras em Antes de Cristo (a.C.) e Depois de Cristo (d.C.), as chamadas Escrituras Sagradas estão divididas nestes dois grandes blocos.

Aproveitemos esta referência ao modo de representar datas para definir desde já que, uma vez que aqui vamos pôr em causa a historicidade de Jesus, também chamado Cristo, em vez de Antes de Cristo (a.C.) e Depois de Cristo (d.C.), vamos utilizar as designações de Antes da Era Comum (AEC) e Era Comum (EC) respectivamente. Estas designações são perfeitamente equivalentes no que respeita à utilização do calendário, com a vantagem de serem neutras do ponto de vista de denominações religiosas.

A organização dos livros em capítulos e versículos foi iniciada apenas no século XIII EC. Aproveitamos para indicar qual vai ser a notação aqui utilizada para localizar um texto na Bíblia (Livro capítulo:versículo), por exemplo:
  • Mateus 2:10 (livro Mateus, capítulo 2, versículo 10)
  • 1 Samuel 10:3,4 (1º livro Samuel, capítulo 10, versículos 3 e 4)
  • Génesis 19 (Génesis, capítulo 19 inteiro)

Vamos começar com o Antigo Testamento e descobrir ou recapitular algumas histórias interessantes e relevantes para o entendimento da história e religião dos judeus (ou hebreus, ou israelitas). Algumas destas histórias, por serem demasido embaraçosas ou chocantes, não fazem parte dos programas de catequização de nenhuma denominação religiosa.

Objectivos





Actualmente discute-se muito sobre se Jesus realmente existiu ou se foi apenas uma personagem de literatura. A principal dificuldade é que, habitualmente, estas discussões começam com uma formulação errada e, nestes casos, nunca se chega a conclusões. Por exemplo, uma discussão iniciada pela questão “Jesus existiu?” é o mesmo que se discutir sobre se “o Zé existiu?”, tendo em conta que o nome Jesus (Yeshu ou Yehoshua) era tão comum na Palestina de há dois mil anos.

Este assunto tem de ser abordado com mais objectividade como, por exemplo, na seguinte forma: “existiu um homem chamado Jesus Nazareno (Yeshu ha-Notzri) que teve uma realidade física como aquela que está descrita na Bíblia e os eventos descritos sobre ele (ou alguns destes) aconteceram de facto?”. Esta formulação encerra a obrigação, por parte de quem questiona, de saber como é que está descrita a vida de Jesus Nazareno na Bíblia.

Através da análise de vários textos, vamos tentar identificar quais os conteúdos que podem ter sido originados pelo registo biográfico acerca de um homem de carne e osso e quais os conteúdos que podem referir-se a uma personagem fictícia, alegórica ou mítica.

Iremos analisar sobretudo os evangelhos do Novo Testamento de modo a podermos obter informações sobre a eventual existência física de Jesus mas, para melhor compreensão e enquadramento, vamos também fazer uma abordagem ao Antigo Testamento e aos restantes livros do Novo Testamento.

E, já que vamos abranger a quase totalidade da Bíblia, vamos aproveitar para tentar também responder, por exemplo, às seguintes perguntas:
  • Quem escreveu a Bíblia?
  • Como é descrito Deus no Antigo Testamento?
  • As características do Deus do Antigo Testamento são iguais às do Deus do Novo Testamento?

Obviamente não vamos nem sequer tentar obter resposta para questões relacionadas com o sobrenatural porque não se enquadram na lógica ou na razão, pertencendo apenas ao domínio da crença e da fé. Por isso, questões como as seguintes estão fora do nosso alcance:
  • Deus existe?
  • Deus tem um filho que é o Cristo?
  • Algum homem curou doentes e ressuscitou os mortos?
  • Algum homem caminhou sobre água?

O que podemos fazer neste domínio é apenas a análise crítica e comparativa dos textos que descrevem estes fenómenos sobrenaturais. Entretanto existem questões mais interessantes a que poderemos tentar obter resposta, como as seguintes:
  • Existiu algum culto religioso em torno de um ser celestial designado por Cristo, cujos crentes desconheciam completamente Jesus Nazareno (quer pessoalmente quer de relato oral ou escrito)?
  • O cristianismo nasceu sem Jesus Nazareno?

Vamos tentar limitar a nossa fonte aos conteúdos da Bíblia, embora possamos ocasionalmente recorrer a conhecimentos da história secular.